Trecho de Sobrados e Mucambos, do Mestre de Apipucos, Gilberto Freyre.
Mas antes, duas coisas sobre o trecho:
1. Quem deseja se enredar por essa discussão do Patrimônio Histórico; para aqueles que amam estudar o Brasil e suas nuances familiares, políticas, habitacionais, sexuais e alimentares; para aqueles que desejam encontrar motivos para usar o ponto-e-vírgula (;) nos seus textos, Sobrados e Mucambos é leitura obrigatória;
2. Para quem simplesmente gosta de literatura e deseja ler um dos textos mais aprazíveis, Sobrados e Mucambos.
*********
O túmulo monumental ou o jazigo chamado perpétuo ou a simples cova marcada com uma cruz de madeira - prolongamentos das casas-grandes, depois dos sobrados, das casas térras, dos mucambos, hoje das últimas mansões ou casas puramente burguesas e do numeroso casario pequeno-burguês, camponês, pastoril e proletário - é, como a própria casa, uma expressão ecológica de ocupação ou domínio do espaço pelo homem. O homem morto ainda é, de certo modo, homem social. E, no caso de jazigo ou de monumento, o morto se torna expressão ou ostentação de poder, de prestígio, de riqueza dos sobreviventes, dos descendentes, dos parentes, dos filhos, da família. O túmulo patriarcal, o jazigo chamado perpétuo, ou de família, o que mais exprime é o esforço, às vezes pungente, de vencer o indivíduo a própria dissolução integrando-se na família, que se presume eterna através de filhos, netos, descentedes, pessoas do mesmo nome. E sob esse ponto de vista, o túmulo patriarcal é, de todas as formas de oucupação de espaço cuja arquitetura, cuja escultura, cuja simbologia continua e até aperfeiçoa a das casas-grandes e dos sobrados dos vivos, requintando-se, dentro de espaços imensamente menores que os ocupados por essas casas senhoriais, em desafios ao tempo. Esses desafios têm assumido, no Brasil, a forma de imagens ou figuras de dragões, leões, anjos, corujas, folhas de palmeira ou de louro, santos, da própria Virgem, do próprio Cristo: símbolos de imortalidade. Símbolos ou figuras que, feitas de mármore, de bronze, de outros materiais nobres, guardam os jazigos privilegiados - jazigos com pretensões a eternos - como que defendendo-os, até que chegue o dia de juízo, de ladrões, de ímpios, de enchentes, de bichos imundos, das tempestades, dos raios, das profanações dos muleques. Um tanto à maneira dos cães defenderem as casas dos senhores vivos, defendidas, também, simbólica ou misticamente, por figura de santos, de anjos, de leões, de dragões e por plantas profiláticas, aquelas outras figuras simbólicas guardam as casas dos mortos ricos ou ilustres. Casas guarnecidas quase sempre de palmeiras. As palmeirás-imperiais (sic) se tornaram, na ecologia patriarcal do Brasil, a marca ou o anúncio de habitação ou casa nobre, com pretensões a eterna ou imortal; e também a marca de cemitérios ilustres ou dos túmulos monumentais.
Vãs pretensões. A ruína ou degradação dos sobrados, das casas nobres, das casas-grandes, dos próprios túmulos ou jazigos de família mais suntuosos, é tão freqüente, no Brasil, que parece revelar, no brasileiro, singular negligência pelo que foi obra ou fundação de antepassado ou de avô morto. Não neguemos ao brasileiro esse defeito que, aos olhos dos entusiastas do Progresso com P maiúsculo, se apresenta, talvez, como qualidade: os mortos que não penurbem (sic) as atividades criadoras dos vivos com as sobrevivências de suas criações já arcaicas. A verdade é que, desintegrado o patriarcado, aquelas casas, aqueles sobrados, aqueles túmulos, só raramente podem ser mantidos por uma sociedade pós-patriarcal ou - como diria o professor Carl C. Zimmermann - "atomística", como, em suas formas dominantes, grande parte da brasileira de hoje. À decadência de famílias por três, quatro, cinco ou seis gerações patriarcalmente opulentas, teria de corresponder o que vem acontecendo, entre nós: a ruína, por abandono, de velhas casas-grandes de fazenda ou de engenho; ou a sua transformação em fábricas, asilos, quartéis, refúgios de fantasmas de subúrbio ou de malandros de cais. A transformação, também, de antigos sobrados urbanos ou suburbanos, outrora habitações de famílias solidamente patriarcais, em hospitais, cortiços, "cabeças-de-porco", prostíbulos, escolas, museus; conventos, colégios, pensões, hotéis, fábricas, oficinas, depósito de mercadorias, armazéns.
Quanto aos túmulos suntuosos - os jazigos de família ou chamados perpétuos - sua conservação é dispendiosa. Excede, freqüentemente, à capacidade econômica dos descendentes dos senhores ricos que levantaram tais monumentos nos dias de sua máxima opulência patriarcal.
Ocorre-nos, a este propósito, a recordação de curiosa experiência: a de termos um dia comparecido ao enterro de velha senhora pernambucana, muito amiga das pessoas mais velhas da nossa famílila materna. Chegados ao cemitério de Santo Amaro verificamos que éramos apenas três os que acompanhávamos o corpo da velhinha ao túmulo. Pelo que pedimos a um estranho que nos ajudasse a conduzir o caixão, da porta do cemitério ao túmulo. Caminhamos cemitério adentro, por entre palmeiras-imperiais, até o jazigo da família da morta.
Era um túmulo com alguma coisa de monumental. Mandara-o levantar família opulenta do tempo do Império. Seu chefe fora ministro de Pedro II. Abandonado, arruinado, sujo, o túmulo patriarcal abria-se naquela tarde de chuva, longos anos depois de falecido o de sobrado de azulejo da Boa Vista, de dono de carruagem forrada de veludo e guarnecida de lanternas de prata, para receber o corpo magro e vestido simplesmente de chita branca com salpicos azuis de uma pobre velha sua neta - cujo enterro não chegara a atrair as clássicas seis pessoas necessárias para a condução decente de qualquer ataúde. Entretanto, por um contraste irônico, aquele corpo de velha pobre e moradora de casa térrea, ia sepultar se não em cova rasa - igual àquela em que, outro dia triste, vimos sumir-se na terra preta, e pegajenta do mesmo cemitério de Santo Amaro do Recife o corpo de um Wanderley antigo e autêntico, velho flamengamente louro e alvo, filho de senhor de engenho do sul de Pernambuco e dono, nos seus dias de senhor-moço, de alguns dos melhores cavalos e de alguns dos mais bravios galos de briga daqueles sítios - mas num jazigo de família com alguma coisa de monumental.
Não era sem razão que a gente antiga do Recife chamava o beco que ia do centro da cidade ao cemitério de Santo Amaro de "Quebra Roço". "Roço" é brasileirismo que quer dizer - ensina Mestre Rodolfo Garcia - "presunção, vaidade, orgulho". E é como o tempo - e através do tempo, a dissolução das instituições, e não apenas a dos indivíduos - age sobre as casas e os túmulos - mesmo os monumentais, e não apenas os modestos: quebrando-lhes o roço. O roço do que o patriarcado no Brasil teve de mais ostensivo, isto é, a sua arquitetura característica - casas-grandes, sobrados, monumentos fúnebres: criações de pedra e cal, de mármore, de bronze com que as famílias patriarcais ou tutelares pretendiam firmar seu binômio não só no espaço como no tempo - vem sendo quebrado à vista de toda gente.
Para acompanharmos a degradação dos valores menos visíveis, característicos da poderosa instituição, é que necessitamos de estudá-la nas suas intimidades mais sutis e esquivas. E essas intimidades não as alcança apenas o estudo histórico ou sociológico; algumas delas só se abrem ao conhecimento ou ao estudo psicológico; várias vezes só ao conhecimento poético, vizinho do cientificamente psicológico. Elas precisam de ser estudadas em nós mesmos ou nos nossos avós - produtos ou reflexos, ao mesmo tempo que animadores, e não apenas portadores, da instituição. Nas pessoas e não apenas nas formas impessoais em que histórica e sociologicamente se objetivou ou materializou o patriarcado no Brasil.
Freyre, Gilberto. Sobrados e Mucambos : decadência do patriarcado e desenvolvimento do urbano. 16ª ed. - São Paulo: Global, 2006. - (Introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil; 2). pp. 45-48.
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Algumas coisas pós-texto:
1. A menção a um antigo Wanderley. Este trecho é da Introdução à segunda edição de Sobrados e Mucambos, de 1951. Sei, por saber e pelas minhas pesquisas, das rusgas e desavenças intelectuais entre Allyrio Meira Wanderley e Gilberto Freyre. Pela crítica (muitas vezes injusta, hoje, mas perdoável, à época) que Allyrio fez ao mestre recifense no seu livro Os Carneiros Cinzentos, é possível ter uma noção de onde ia parar a briga. Mas nunca tive sequer confirmação de alguma réplica a Allyrio. Apenas numa carta, à qual tive acesso, o próprio Allyrio comenta com seu correspondente que alguém lhe teria dito que Freyre ficara muito magoado com os artigos cruéis que o paraibano escreveu. Em Casa Grande & Senzala (1933), Freyre já tratara da família Wanderley, dos seus traços característicos físicos e familiares. Mas aqui em Sobrados e Mucambos, essa menção a esse Wanderley decadente me inspira cuidados. A primeira edição é de 1936, cuja Introdução não fala nada dos Wanderleys. Os artigos de Allyrio só saíram durante os anos 1945-1947. A citação quase incidental do triste fim que esse senhor de engenho teve, que era do sul de Pernambuco, é interessante, apesar da família de Allyrio ser territorialmente outra. Confabulações à parte, a decadência persegue Allyrio Meira Wanderley. Nos seus romances, famílias decadentes. Na vida real, morreu jovem e soterrado pela história intelectual brasileira; os pais do escritor, que não deixavam de pertencer a uma família tradicional e opulenta, terminaram suas vidas pobres, acolhidos na casa do antigo vaqueiro da fazenda dos Meira Wanderley (segundo depoimentos recolhidos em pesquisa).
2. Morte e Vida Severina. Não percam de vista a possibilidade de ler este trecho selecionado em comparação ao poema do também pernambucano João Cabral de Melo Neto. Especialmente o trecho em que Severino encontra com as mortes no Sertão. A tragicidade da decadência patriarcal só fez sentido com a evocação de uma imagem, que ganha mais relevo narrativo porque foi presenciada pelo Autor. Percebam como cada elemento faltante - três pessoas conhecidas da defunta e mais um estranho(!) para carregar o caixão até o túmulo, e não seis; a roupa fúnebre - aumentam no leitor a impressão de decadência e de como eles aparecem agigantados em importância de simbologia para essa outrora tão opulenta elite. Perguntem-se se há o sentimento de alguma perda simbólica para os lavradores que enterram o agricultor no poema de João Cabral. Ironicamente, há um ganho material: a terra que ele nunca teve agora ELA O TERÁ. Não quero aventar a possibiliadade de que, brutalizados pela vida árdua, agindo como bichos de um romance de Zola, os camponeses perderam o apelo ao sagrado enterrando seus mortos de qualquer jeito, sem qualquer consideração. Mas as sensações de degradação ou decadência são quase ausentes já que, no máximo, o que se perdia era o único que se tinha, a vida. Tal qual Gilberto Freyre, Severino é testemunha e precisa sê-lo para levar sua angústia e descrença até o limite vendo toda a desgraça ao longo do Capibaribe, até chegar no Recife. Mas não é "roço" que se quebra nesse trajeto. É a fé, a alma, a sensibilidade, a última coisa que o torna Homem. As duas situações são até muito semelhantes no que diz respeito ao fato de serem vidas humanas que deixam tristemente o mundo. Mas no caso da velhinha, essa dor é muito mais mediada pelo fator simbólico, expressivamente maior em quem é herdeiro de famílias que já estavam muito distantes da materialidade crua de certos aspectos da vida, imersas em preocupações distintas de quem não precisa se deter naturalmente com a vida (o que farei para comer hoje?). O camponês, exatamente por ser materialmente mais próximo dessas necessidades, naturalmente mais ligado à vida, morre mediado por outros elementos - menos simbólicos e mais diretos (breve lição aprendida lendo Tolstói - e fica a indicação: o conto Três Mortes). Percebam ainda que o sentido da história, de quem "está por cima", é de degradação. O futuro é tenebroso. Embora Freyre seja um daqueles que busquem conciliação e enxergue, algumas vezes, com bons olhos as mudanças estruturais na sociedade com a decadência patriarcal, ainda assim, prevalece o sombrio decadentismo. Thomas Mann e José Lins do Rego se encontram muitas vezes aqui. Na contramão, percebam como em Morte e Vida Severina, tipologicamente representante dos que "estavam por baixo", existe a redenção. O futuro se abre, no rebento de uma vida, como possibilidade de conter a boa-nova. Ainda que numa vida severina.
Excurso: continuo essa discussão aqui no Jerimum Beta.
Mas antes, duas coisas sobre o trecho:
1. Quem deseja se enredar por essa discussão do Patrimônio Histórico; para aqueles que amam estudar o Brasil e suas nuances familiares, políticas, habitacionais, sexuais e alimentares; para aqueles que desejam encontrar motivos para usar o ponto-e-vírgula (;) nos seus textos, Sobrados e Mucambos é leitura obrigatória;
2. Para quem simplesmente gosta de literatura e deseja ler um dos textos mais aprazíveis, Sobrados e Mucambos.
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O túmulo monumental ou o jazigo chamado perpétuo ou a simples cova marcada com uma cruz de madeira - prolongamentos das casas-grandes, depois dos sobrados, das casas térras, dos mucambos, hoje das últimas mansões ou casas puramente burguesas e do numeroso casario pequeno-burguês, camponês, pastoril e proletário - é, como a própria casa, uma expressão ecológica de ocupação ou domínio do espaço pelo homem. O homem morto ainda é, de certo modo, homem social. E, no caso de jazigo ou de monumento, o morto se torna expressão ou ostentação de poder, de prestígio, de riqueza dos sobreviventes, dos descendentes, dos parentes, dos filhos, da família. O túmulo patriarcal, o jazigo chamado perpétuo, ou de família, o que mais exprime é o esforço, às vezes pungente, de vencer o indivíduo a própria dissolução integrando-se na família, que se presume eterna através de filhos, netos, descentedes, pessoas do mesmo nome. E sob esse ponto de vista, o túmulo patriarcal é, de todas as formas de oucupação de espaço cuja arquitetura, cuja escultura, cuja simbologia continua e até aperfeiçoa a das casas-grandes e dos sobrados dos vivos, requintando-se, dentro de espaços imensamente menores que os ocupados por essas casas senhoriais, em desafios ao tempo. Esses desafios têm assumido, no Brasil, a forma de imagens ou figuras de dragões, leões, anjos, corujas, folhas de palmeira ou de louro, santos, da própria Virgem, do próprio Cristo: símbolos de imortalidade. Símbolos ou figuras que, feitas de mármore, de bronze, de outros materiais nobres, guardam os jazigos privilegiados - jazigos com pretensões a eternos - como que defendendo-os, até que chegue o dia de juízo, de ladrões, de ímpios, de enchentes, de bichos imundos, das tempestades, dos raios, das profanações dos muleques. Um tanto à maneira dos cães defenderem as casas dos senhores vivos, defendidas, também, simbólica ou misticamente, por figura de santos, de anjos, de leões, de dragões e por plantas profiláticas, aquelas outras figuras simbólicas guardam as casas dos mortos ricos ou ilustres. Casas guarnecidas quase sempre de palmeiras. As palmeirás-imperiais (sic) se tornaram, na ecologia patriarcal do Brasil, a marca ou o anúncio de habitação ou casa nobre, com pretensões a eterna ou imortal; e também a marca de cemitérios ilustres ou dos túmulos monumentais.
Vãs pretensões. A ruína ou degradação dos sobrados, das casas nobres, das casas-grandes, dos próprios túmulos ou jazigos de família mais suntuosos, é tão freqüente, no Brasil, que parece revelar, no brasileiro, singular negligência pelo que foi obra ou fundação de antepassado ou de avô morto. Não neguemos ao brasileiro esse defeito que, aos olhos dos entusiastas do Progresso com P maiúsculo, se apresenta, talvez, como qualidade: os mortos que não penurbem (sic) as atividades criadoras dos vivos com as sobrevivências de suas criações já arcaicas. A verdade é que, desintegrado o patriarcado, aquelas casas, aqueles sobrados, aqueles túmulos, só raramente podem ser mantidos por uma sociedade pós-patriarcal ou - como diria o professor Carl C. Zimmermann - "atomística", como, em suas formas dominantes, grande parte da brasileira de hoje. À decadência de famílias por três, quatro, cinco ou seis gerações patriarcalmente opulentas, teria de corresponder o que vem acontecendo, entre nós: a ruína, por abandono, de velhas casas-grandes de fazenda ou de engenho; ou a sua transformação em fábricas, asilos, quartéis, refúgios de fantasmas de subúrbio ou de malandros de cais. A transformação, também, de antigos sobrados urbanos ou suburbanos, outrora habitações de famílias solidamente patriarcais, em hospitais, cortiços, "cabeças-de-porco", prostíbulos, escolas, museus; conventos, colégios, pensões, hotéis, fábricas, oficinas, depósito de mercadorias, armazéns.
Quanto aos túmulos suntuosos - os jazigos de família ou chamados perpétuos - sua conservação é dispendiosa. Excede, freqüentemente, à capacidade econômica dos descendentes dos senhores ricos que levantaram tais monumentos nos dias de sua máxima opulência patriarcal.
Ocorre-nos, a este propósito, a recordação de curiosa experiência: a de termos um dia comparecido ao enterro de velha senhora pernambucana, muito amiga das pessoas mais velhas da nossa famílila materna. Chegados ao cemitério de Santo Amaro verificamos que éramos apenas três os que acompanhávamos o corpo da velhinha ao túmulo. Pelo que pedimos a um estranho que nos ajudasse a conduzir o caixão, da porta do cemitério ao túmulo. Caminhamos cemitério adentro, por entre palmeiras-imperiais, até o jazigo da família da morta.
Era um túmulo com alguma coisa de monumental. Mandara-o levantar família opulenta do tempo do Império. Seu chefe fora ministro de Pedro II. Abandonado, arruinado, sujo, o túmulo patriarcal abria-se naquela tarde de chuva, longos anos depois de falecido o de sobrado de azulejo da Boa Vista, de dono de carruagem forrada de veludo e guarnecida de lanternas de prata, para receber o corpo magro e vestido simplesmente de chita branca com salpicos azuis de uma pobre velha sua neta - cujo enterro não chegara a atrair as clássicas seis pessoas necessárias para a condução decente de qualquer ataúde. Entretanto, por um contraste irônico, aquele corpo de velha pobre e moradora de casa térrea, ia sepultar se não em cova rasa - igual àquela em que, outro dia triste, vimos sumir-se na terra preta, e pegajenta do mesmo cemitério de Santo Amaro do Recife o corpo de um Wanderley antigo e autêntico, velho flamengamente louro e alvo, filho de senhor de engenho do sul de Pernambuco e dono, nos seus dias de senhor-moço, de alguns dos melhores cavalos e de alguns dos mais bravios galos de briga daqueles sítios - mas num jazigo de família com alguma coisa de monumental.
Não era sem razão que a gente antiga do Recife chamava o beco que ia do centro da cidade ao cemitério de Santo Amaro de "Quebra Roço". "Roço" é brasileirismo que quer dizer - ensina Mestre Rodolfo Garcia - "presunção, vaidade, orgulho". E é como o tempo - e através do tempo, a dissolução das instituições, e não apenas a dos indivíduos - age sobre as casas e os túmulos - mesmo os monumentais, e não apenas os modestos: quebrando-lhes o roço. O roço do que o patriarcado no Brasil teve de mais ostensivo, isto é, a sua arquitetura característica - casas-grandes, sobrados, monumentos fúnebres: criações de pedra e cal, de mármore, de bronze com que as famílias patriarcais ou tutelares pretendiam firmar seu binômio não só no espaço como no tempo - vem sendo quebrado à vista de toda gente.
Para acompanharmos a degradação dos valores menos visíveis, característicos da poderosa instituição, é que necessitamos de estudá-la nas suas intimidades mais sutis e esquivas. E essas intimidades não as alcança apenas o estudo histórico ou sociológico; algumas delas só se abrem ao conhecimento ou ao estudo psicológico; várias vezes só ao conhecimento poético, vizinho do cientificamente psicológico. Elas precisam de ser estudadas em nós mesmos ou nos nossos avós - produtos ou reflexos, ao mesmo tempo que animadores, e não apenas portadores, da instituição. Nas pessoas e não apenas nas formas impessoais em que histórica e sociologicamente se objetivou ou materializou o patriarcado no Brasil.
Freyre, Gilberto. Sobrados e Mucambos : decadência do patriarcado e desenvolvimento do urbano. 16ª ed. - São Paulo: Global, 2006. - (Introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil; 2). pp. 45-48.
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Algumas coisas pós-texto:
1. A menção a um antigo Wanderley. Este trecho é da Introdução à segunda edição de Sobrados e Mucambos, de 1951. Sei, por saber e pelas minhas pesquisas, das rusgas e desavenças intelectuais entre Allyrio Meira Wanderley e Gilberto Freyre. Pela crítica (muitas vezes injusta, hoje, mas perdoável, à época) que Allyrio fez ao mestre recifense no seu livro Os Carneiros Cinzentos, é possível ter uma noção de onde ia parar a briga. Mas nunca tive sequer confirmação de alguma réplica a Allyrio. Apenas numa carta, à qual tive acesso, o próprio Allyrio comenta com seu correspondente que alguém lhe teria dito que Freyre ficara muito magoado com os artigos cruéis que o paraibano escreveu. Em Casa Grande & Senzala (1933), Freyre já tratara da família Wanderley, dos seus traços característicos físicos e familiares. Mas aqui em Sobrados e Mucambos, essa menção a esse Wanderley decadente me inspira cuidados. A primeira edição é de 1936, cuja Introdução não fala nada dos Wanderleys. Os artigos de Allyrio só saíram durante os anos 1945-1947. A citação quase incidental do triste fim que esse senhor de engenho teve, que era do sul de Pernambuco, é interessante, apesar da família de Allyrio ser territorialmente outra. Confabulações à parte, a decadência persegue Allyrio Meira Wanderley. Nos seus romances, famílias decadentes. Na vida real, morreu jovem e soterrado pela história intelectual brasileira; os pais do escritor, que não deixavam de pertencer a uma família tradicional e opulenta, terminaram suas vidas pobres, acolhidos na casa do antigo vaqueiro da fazenda dos Meira Wanderley (segundo depoimentos recolhidos em pesquisa).
2. Morte e Vida Severina. Não percam de vista a possibilidade de ler este trecho selecionado em comparação ao poema do também pernambucano João Cabral de Melo Neto. Especialmente o trecho em que Severino encontra com as mortes no Sertão. A tragicidade da decadência patriarcal só fez sentido com a evocação de uma imagem, que ganha mais relevo narrativo porque foi presenciada pelo Autor. Percebam como cada elemento faltante - três pessoas conhecidas da defunta e mais um estranho(!) para carregar o caixão até o túmulo, e não seis; a roupa fúnebre - aumentam no leitor a impressão de decadência e de como eles aparecem agigantados em importância de simbologia para essa outrora tão opulenta elite. Perguntem-se se há o sentimento de alguma perda simbólica para os lavradores que enterram o agricultor no poema de João Cabral. Ironicamente, há um ganho material: a terra que ele nunca teve agora ELA O TERÁ. Não quero aventar a possibiliadade de que, brutalizados pela vida árdua, agindo como bichos de um romance de Zola, os camponeses perderam o apelo ao sagrado enterrando seus mortos de qualquer jeito, sem qualquer consideração. Mas as sensações de degradação ou decadência são quase ausentes já que, no máximo, o que se perdia era o único que se tinha, a vida. Tal qual Gilberto Freyre, Severino é testemunha e precisa sê-lo para levar sua angústia e descrença até o limite vendo toda a desgraça ao longo do Capibaribe, até chegar no Recife. Mas não é "roço" que se quebra nesse trajeto. É a fé, a alma, a sensibilidade, a última coisa que o torna Homem. As duas situações são até muito semelhantes no que diz respeito ao fato de serem vidas humanas que deixam tristemente o mundo. Mas no caso da velhinha, essa dor é muito mais mediada pelo fator simbólico, expressivamente maior em quem é herdeiro de famílias que já estavam muito distantes da materialidade crua de certos aspectos da vida, imersas em preocupações distintas de quem não precisa se deter naturalmente com a vida (o que farei para comer hoje?). O camponês, exatamente por ser materialmente mais próximo dessas necessidades, naturalmente mais ligado à vida, morre mediado por outros elementos - menos simbólicos e mais diretos (breve lição aprendida lendo Tolstói - e fica a indicação: o conto Três Mortes). Percebam ainda que o sentido da história, de quem "está por cima", é de degradação. O futuro é tenebroso. Embora Freyre seja um daqueles que busquem conciliação e enxergue, algumas vezes, com bons olhos as mudanças estruturais na sociedade com a decadência patriarcal, ainda assim, prevalece o sombrio decadentismo. Thomas Mann e José Lins do Rego se encontram muitas vezes aqui. Na contramão, percebam como em Morte e Vida Severina, tipologicamente representante dos que "estavam por baixo", existe a redenção. O futuro se abre, no rebento de uma vida, como possibilidade de conter a boa-nova. Ainda que numa vida severina.
Excurso: continuo essa discussão aqui no Jerimum Beta.
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