Maria Clara Lucchetti Bingemer*
O centenário do grande escritor mineiro Guimarães Rosa não pode passar despercebido nesses “destaques” virtuais que são nossa coluna semanal aqui no Amaivos. E falar de Rosa é voltar a “Grande Sertão Veredas”, considerado por muitos críticos e escritores a obra maior em romance da literatura brasileira que tem sido, ao longo de sua história, ocasião de reflexões várias, provindas de diferentes campos e áreas do saber. De parte de escritores brasileiros de primeira grandeza, Grande Sertão tem sido louvado em todos os tons, comparado mesmo à Bíblia pela grande poeta mineira Adélia Prado: “Tudo é bíblias. Tudo é grande sertão”.
A saga do jagunço Riobaldo tem tido várias interpretações por parte de muitos e múltiplos estudiosos, que se debruçaram sobre a obra prima de Guimarães Rosa. Riobaldo aparece como o protótipo do ser humano,que se debate durante toda a sua vida, entre o bem e o mal, entre a graça e o pecado, entre Deus e o Diabo.
Ao longo deste embate que tem a forma exterior da violência e da brutalidade, da jagunçagem e seu cheiro de morte, entremeada e atravessada pelo amor e pela beleza e o desejo da santidade, Riobaldo faz na verdade a viagem – travessia – ao fundo de si mesmo. E no si mesmo encontra o outro e faz uma aproximação conclusiva do mistério de Deus e do ser humano. Defronta-se também com a pergunta pela existência do diabo, que vai, no imaginário rosiano, sintetizar a essência dos três males cuja tipologia procuramos descrever acima: mal físico, moral e metafísico. Na medida em que a presença do demônio , do diabo aparece latente no interior de Riobaldo, este vai sentindo que esta se incorpora no humano e o suspende sobre um abismo de onde se insinuam todos os matizes do mal. Daí acontece o confronto inevitável entre o ser humano e Satanás, onde o humano se verá a braços com a própria vacuidade de sentido.
A opção de Riobaldo pelo tornar-se jagunço, empunhar armas, ferir e matar, se desenrola ao mesmo tempo em que cresce, paralelamente, o amor por Diadorim, que confunde e quase exaspera o macho Riobaldo. O ser humano que é Riobaldo se confunde ao perceber no fundo de si mesmo , entrelaçadas, as pulsões da vida e da morte, da belicosidade que o faz participar do bando de jagunços que mata e ao mesmo tempo da compaixão que o faz interceder pela vida de Joca Ramiro quando este é levado a julgamento depois de derrotado por Hermógenes e Ricardão.
Confunde-se também e sobremaneira ao constatar que o que sente por Diadorim é mais do que companheirismo, amizade. É amor e isto não é sentimento que em sua visão de mundo um homem possa sentir por outro. O temor que esse sentimento provoca é magistralmente descrito por Rosa, na esteira de tantos outros pensadores na história da humanidade. Trata-se da atitude do ser humano cada vez que se defronta com aquilo que pertence a uma esfera maior e mais além do si mesmo: a esfera do Transcendente, do Sagrado, do Santo. O homem criado e limitado, diante da epifania do Absoluto que se reveste de mediação ao alcance dos sentidos, sente atração irresistível e temor irrefreável. O mistério fascinante é também mistério tremendo e é diante dele que balança e se faz frágil todo o universo rosiano.
O numinoso, o mistério atrai irresistivelmente Riobaldo ao mesmo tempo em que o amedronta. E esse mistério é Diadorim e os sentimentos que nele provoca, Diadorim que é um lindo moço de olhos verdes, de seu mesmo sexo. Diadorim que ele ama como um homem pode amar loucamente uma mulher.
Ao lado disso, Riobaldo volta-se para o que o atrai do outro lado, tentado a fazer a mesma travessia que Hermógenes: vender sua alma ao diabo, fazer com ele um pacto a fim de ganhar vitórias nas batalhas como o mesmo Hermógenes conseguia. Invoca o diabo, acreditando ser ouvido. E lança-se na luta encarniçada para vencer e matar o bando rival e os assassinos de Joca Ramiro.
Qual novo Fausto, Riobaldo parte para o combate com a convicção de que o diabo o levará à vitória. O sertão, o grande sertão é seu deserto, onde aluta decisiva é travada. Mas nesse deserto sem caminho ele encontrará não o sem sentido, mas veredas. Ao se encaminhar para a batalha final, mal sabe que o que ali o espera não é a vitória da jagunçagem, mas a revelação dramática do amor.
A revelação do amor na morte da mulher que Diadorim revela ser redime Riobaldo, que decide abandonar a jagunçagem e recebe outra revelação: o demônio não existe. O lugar onde fizera seu pacto com o diabo, Veredas Mortas, na verdade se chama Veredas Altas. Ou seja, o lugar do demônio não existe. Portanto, este também não existe. O começo da descrença no demônio vai ser o caminho pelo qual Riobaldo vai poder entrar em uma nova via de conhecimento e compreensão do mundo. Um mundo onde nada é fixo, tudo é “ de incerto jeito”, tudo muda e se transforma e as pessoas ainda não foram terminadas.
Essa travessia por dentro do misterioso amor que só mostra seu verdadeiro rosto na morte terá igualmente como conseqüência a percepção por parte de Riobaldo que o demônio como síntese do mal, em sua essência é nada. Sendo ou pretendendo ser anulação do ser, o demônio propriamente não existe. Riobaldo que logo no começo do livro afirma já haver perdido a crença no demônio, “mercês de Deus” acabará afirmando que o diabo não passa de um estado de espírito do próprio ser humano. O diabo será o avesso e o ruim do humano. Sem as maldades do próprio homem não há demônio!
Embora na obra rosiana o ambíguo e o nebuloso dominem; embora Riobaldo se mostre ambivalente e chegue a duvidar mesmo da existência ou não existência do Demônio, a narrativa do autor vai tornando claro que na verdade ele não efetivou o pacto, uma vez que é senhor da sua linguagem e vai construindo narrativa que relata ao doutor que o escuta. Riobaldo não foi dominado pelo demônio que emudece e que impede o falar coerente. Portanto, não está possuído pelo demônio, ao menos na perspectiva do presente da narração. Ao narrar sua tentativa de pacto com o demônio, Riobaldo reconhece que só obteve como resposta um grande silencio, um silencio particularmente eloqüente: “O senhor sabe o que o silencio é? E a gente mesmo, demais.”
Portanto, se pacto não houve, a responsabilidade pelos atos cruéis e violentos cometidos durante sua vida de jagunço não pode ser atribuída ao diabo e à possessão demoníaca. As forças obscuras e turvas nascem na verdade no interior do próprio indivíduo. E assim vai afirmar Riobaldo: “...o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem – ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos. Solto, por si, é que não tem diabo nenhum.”. O homem humano capaz do mal e da crueldade, da violência e da maldade é o mesmo capaz do dom de si e do amor até a morte, sem gozo e só com paixão padecida, como encarnado em Diadorim. Morada da eterna luta entre bem e mal, pecado e graça, o ser humano do qual Riobaldo é protótipo segue seu caminho, pelo grande sertão que é a vida, escolhendo que veredas tomar na sua viagem em busca do sentido, de resposta para suas indagações.
Parece ser que Guimarães Rosa disso sabe bem, ao escrever seu magnífico romance, que situa a origem do mal no interior obscuro do próprio ser humano ou nas forças sociais de domínio por ele criadas. No fundo, o pacto com o diabo é estratégia do romancista para afirmar sua não existência e responsabilizar o ser humano pelo que acontece no mundo que lhe foi dado pelo Criador e que ele é, por Este, chamado a transformar.
Por tudo isso e muito mais, é digno e justo celebrar Guimarães Rosa, esse gênio maior das letras, no ano de seu centenário! Amém!
* Maria Clara Lucchetti Bingemer, teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio, e Diretora Geral de Conteúdo do Amai-vos. É também autora de "A Argila e o espírito - ensaios sobre ética, mística e poética" (Ed. Garamond), entre outros livros.
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