Ocorre-me a indagação sobre o que me faz sentir uma certa emoção em ver os atletas brasileiros competindo e, às vezes, ganhando nas Olimpíadas, à parte as efusivas e irritantes manifestações de ufanismo dos locutores televisivos. Ou melhor, sobre o que leva muita gente brasileira, e muita mesmo, a se sentir assim; gente que, não havendo efemérides esportivas como essas, nem ligam para as competições – desconhecendo-lhes até as regras mínimas – e ficam indiferentes a qualquer manifestação cívica ou patriótica. Por que será que o povo brasileiro sente-se reconfortado em assistir aos seus conterrâneos ganhando medalhas, o que, na fria concretude das coisas, não significa outra coisa senão o reconhecimento de habilidades em domínios que não têm nenhuma utilidade para a vida cotidiana? O que dá sentido a isso?
Será a mesma sensação que leva a dona-de-casa a torcer pela homem que vai salvar a mocinha na novela? O mesmo que faz as crianças se sentir vitoriosas com as conquistas dos seus heróis nos desenhos animados? Tá’qui uma palavra-chave, isto é, que pode abrir caminhos: herói.
Parece ingênuo acreditar em heróis. Mas não é só coisa pueril ou de domésticas iletradas. As crianças e as domésticas iletradas só têm a honestidade de não esconder que amam alguém que não existe. E cada um tem heróis. Todos erguemos patamares nos salões imaginados que alugamos para os que nos são caros. Todos temos alguém que queríamos ser, sem deixar de ser esse que quer ser. Herói é o que encarna em sua figura o impossível de ter havido, aquilo que não pude ter sido, as minhas outras escolhas não escolhidas, a minha força que prefiro esconder. Tanto é que vestimo-nos de herói nas horas de adormecer: pensamos em respostas perfeitas para situações imaginadas; arrancamos força para falar a verdade na cara de quem quer que seja; montamos projetos arrojados; destruímos as forças maléficas. Ou, o que não é nem um pouco menos nobre, vemos no herói amado o nosso rosto... Elegemos os que podem nos salvar do sem-sentido: o herói resolve e, quando não pode, lamenta e chora conosco; elegemos heróis pela saudade de um pai que nos tira da boca do jacaré; e não só o que cuida da gente, mas o que ensina a gente a ser herói também. O herói nos deixa ser...
Um povo sem heróis é um povo sem referências de força e de coragem, um povo que não tem pra onde ir... Lembro de Zaratustra que dizia que a nova nobreza que ele apresentava não era a do sangue nem a do dinheiro, mas a do destino: a nobreza de um povo está no lugar para onde ele segue, isto é, no país dos sonhos. Um país é não o que é, mas o que quer ser. Pois o Brasil é uma pátria sem heróis. Não falo do Brasil-cores, do Brasil-hino-e-bandeira, do Brasil-território; mas do que Mário dizia que era o Brasil: um jeito de ganhar dinheiro, de comer, de dormir. Somos um povo triste, de história triste. Fazemos muita festa por isso mesmo. Fernando Pessoa dizia que os países de histórias alegres e vitoriosas cantavam cantigas tristes; e os países de histórias tristes e penosas, faziam festas e eram alegres.
O povo brasileiro, carente de uma referência unívoca, pôs no esporte suas esperanças de grandeza. E nessas Olimpíadas emocionamo-nos com nossos heróis fracassados, que continuam a ser heróis. Nossos atletas são heróis com um esforço muito pessoal e com gana. Tem razão o Emanuel quando diz que “é muito importante ganhar medalha para o nosso país”.
Diferentemente daqueles medalhistas produzidos em série pelos EUA e pela China: são como máquinas desenhadas e programadas durante anos para funcionarem no momento certo. A qualidade dos heróis brasileiros não é a eficiência, mas o que cria eficiência, a gana, a garra, a grandeza. É nisso que as meninas do futebol, que não ganharam ouro, são heroínas e as estadunidenses não são. Nossos heróis criam a força, porque essa de quase nenhum lado lhe veio. É nisso que Kathlyn Quadros, a judoca que não tinha dinheiro para comprar o quimono, é heroína, e Micheal Phelps, não! Não é a habilidade que faz o herói. A habilidade é tão imparcial quanto o instrumento, como uma faca que é tão afiada nas mãos de um bom cozinheiro quanto nas mãos de um bom assassino. O que faz o herói é o espírito que ele põe na habilidade. É essa a razão pela qual estamos tão enraivecidos com os rapazes do futebol masculino, que, vestidos de heróis, se comportam como mercenários.
Alegramo-nos com os pequenos que têm uma outra grandeza, que não é a do dinheiro ou a da fama. Uma grandeza mais além da bandeira, das cores, do hino e da famosa vinheta da Globo; além dos uivos de Galvão Bueno; além do pretenso “espírito de paz” das Olimpíadas, esta que já se tornou um evento puramente comercial e estilizado. Não, isso é o que enfeia a festa: a ostentação de uma humanidade que nem se conhece. A falsa beleza que se ostenta na festa de abertura, ou a falsa grandeza que se ostenta no quadro de medalhas, ou o falso discurso de paz que se ostenta nas falas dos políticos e famosos são sinais de que não temos o que celebrar, ou que o que se pretende é a celebração de uma homogeneidade imposta, mas que não consegue alcançar o mais fundo dos povos. Quando um consenso é forçado é que alguma coisa feia tem que ficar escondida. Não! Não é aí que estão nossos heróis: nossos atletas são heróis justamente porque não venceram, ou porque sua vitória foi tímida, como o que é comum na vida da gente. É como a comovida descoberta, à qual os mais velhos nos advertem, de que não é preciso vencer. A vida não é uma vitória, porque é um jogo que se perde antes de começar. A vida é uma saudade das festas antigas – das que houve e das que ficaram por haver. A vida também é uma festa das futuras lembranças, das saudades que virão. Os nossos atletas-heróis nos comovem porque sua vitória é a sentença de que não precisamos vencer, de que nos encanta estar no jogo e que o jogo não acabe enquanto o cansaço não o pedir...
Nossos atletas-heróis são fundamentalmente fracassados porque não conseguem nos tirar da boca do jacaré, colocando apenas uma trava para que a boca não se feche sobre nós. Eles ocupam o espaço dos que fugiram do seu compromisso de herói e abandonaram um povo sem referência num deserto de idéias e sonhos. Mas, quem sabe uma estória não acorda o povo e o faz ficar bonito?: Era uma vez uma menina que descobriu que gostava de lutar judô, mas não tinha dinheiro pra comprar um quimono...
"Brasil amado não porque seja a minha pátria,
Pátria é acaso de migrações e do pão-nosso onde Deus der...
Brasil que eu amo porque é o ritmo do meu braço aventuroso
o gosto dos meus descansos,
o balanço das minhas cantigas, amores e danças.
Brasil que eu sou porque é a minha expressão muito engraçada,
porque é o meu sentimento muito pachorrento,
porque é o meu jeito de ganhar dinheiro, de comer e de dormir."
Mário de Andrade - trecho "O poeta come amendoim"
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