quarta-feira, 8 de abril de 2009

A ACUSAÇÃO ( I )

As liturgias da Paixão do Senhor se tornaram o que há de mais degradante para o humano. Tudo o que é mais vil e baixo, toda a mesquinhez de espírito do cristão contemporâneo são ali encenadas. Uma mudez estúpida, diferente do nobre silêncio místico, e uma expectativa de pieguice, diferente da compaixão dolorida de quem sente em si a dor da vida, transbordam nos sentidos de quem se depara com essa afronta à bravura dos grandes. Muitos têm olhos e ouvidos ávidos por relatos de sofrimentos e crueldades por ali poderem também se ver a si próprios vítimas das cruezas da vida, por ali poderem eles também ser chorados por toda gente. Por não conseguirem se impor, com a devida e misteriosa combinação de humildade e altivez, ao acaso da tragédia ininterrupta que é a vida, querem que haja pena e dó por toda parte. As dores que lamentam não são as dores do Cristo, mas as que desejam ter, ou melhor, as que desejam que todos vejam que têm, para que todos tenham dó e para que todos chorem. À narração das torturas dos açoites, da maldade dos algozes e do desespero da Mater Dolorosa, todos vertem lágrimas penosas, como se todos os dias não vissem ou ouvissem falar das chagas de todos os torturados silenciosamente pelas injustiças deste mundo pauperizado e destruído, como se aquelas, que são suas, fossem as únicas dores dignas de serem choradas.
Se bem que, bem pode ser que chorem os que choram por causa diversa, a de não conseguirem viver, durante o ano em que esqueceram, como deve ser, o caso agora lamentado, conforme a boa novidade daquele que foi, por isso mesmo, tragicamente despedaçado. Pode ser que obedeçam o "não chorem por mim, mas por vocês e pelo seu próprio futuro".
Deve ser que meus olhos estejam ansiosos por acusar alguma alheia vileza (que também sou vil, mas admitindo-o, sou diferente), mas procuro alguém dos que ali freqüentam – e espero que haja – que manifeste a altivez de quem rejeita a piedade e a coragem de quem suporta a dor sem pieguice; alguém que admita sua própria cruz e dela não tenha vergonha. E, o mais agudo, alguém que assuma que a morte de Jesus foi conseqüência de uma vida – pequena – toda de vôos livres por sobre a escravidão do seu tempo, uma vida toda dedicada a desafiar a pequenez e a rudeza dos que se diziam grandes e a possibilitar e dar visibilidade à grandeza e à nobreza dos que eram considerados rudes e pequenos. Uma vida rasgada, como sua carne na cruz, abundante e transbordada até para os que a destruíram. Procurando alguém assim, quem sabe eu me safe do fato sabido de que o Crucificado me atormenta, a mim e a muitos, ordenando-me a viver como ele viveu...

2 comentários:

André Egg disse...

Posso dizer que você "pôs o dedo na ferida".

Não tenho como não lembrar do exremo que foi o filme de Mel Gibson. Para mim o mais horrível filme jamais feito.

São Saruê disse...

Egg, o dedo na ferida pelo menos lembra o que muita gente quer esquecer: que a gente tem ferida também. Obrigado pelo visita. Teu blog é muito bom.