sexta-feira, 15 de maio de 2009

Graciliano Ramos VI

Finalmente, meu povo! Pra os que esperavam e pra os que não, aí vai o artigo do escritor, em ordem de importância, sertanejo, patoense, paraibano Allyrio Meira Wanderley sobre outro sertanejo de Alagoas, Graciliano Ramos. O tal artigo, e a carta de Graciliano em resposta, foram reproduzidos no número 02 da "Teresa Revista de Literatura Brasileira", do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP, em 2001, publicada pela Editora 34, entre as páginas 162-173. Allyrio assina com seu pseudônimo, Monte Brito.

Não quero me alongar num comentário inicial, nem preciso. Como vocês perceberão pelas notas contidas na própria revista, que eu transcrevo de maneira igual, o artigo de Allyrio é o último de uma série de seis sobre a obra de Graciliano Ramos. Não tive ainda acesso aos anteriores, só os encontrarei quando puder consultar o arquivo do jornal. Mas para que fiquemos situados, não estranhemos a forma com que Allyrio escreve supondo que já lemos os textos precedentes. Particularmente, gostei muito da crítica. Gostei sobretudo das análises dele sobre "a" Angústia. Quando ele usa esse artigo definido, modifica por completo o significado do livro como um romance, como uma coisa. É a própria angústia, o estado de espírito. O livro torna-se o próprio sentimento. Isso eu achei fantástico. E Allyrio aqui me deu um exemplo fortíssimo de como esse pequeno artigo definido "a", tão tolo no uso pelos paulistas (e pelo pessoal de Fortaleza no Ceará, pra fazer justiça), pode alterar por inteiro o significado de algo. Mostrou-me o quanto ele nos é caro, a nós, daí. Ademais, não estranhem o tamanho do artigo para o padrão de um blogue.

Graciliano Ramos VI
Monte Brito


Supomos ter ficado claro o que se nos afigura fundamental e característico na ficção do sr. Graciliano Ramos. De início, ela apresenta um sentido geral e uno, isto é: tem para nós, como queria Balzac, uma palavra sobre os negócios humanos. E essa palavra, se é de condenação ao dia de hoje, em que resplandece a agonia e a apoteose do possessivo, é também de fé no dia de amanhã, em que entremostra à meia luz das auroras e das promessas qualquer coisa como uma redenção. Não bastará?

Sobrepondo o homem ao mundo exterior, desde que reserva tão pouco lugar à cena quanto lugar à ação e, na ação subjetiva, sobrepõe implicitamente a consciência à existência; mas, fiel à sua lucidez, não esquece jamais que a existência é que condiciona a consciência embora, secundariamente, se deixe de igual modo condicionar por ela. Donde, as duas notas capitais na vida psíquica dessa gente tão estranhamente representativa: a sua interação com o meio e a sua estruturação dialética, puramente materialista. É o que o aparta e o isenta da dissociação e da fuga em que se afunda, se engana e se consola a decadência fantasiosa e gris da arte conservadora.

Não é, porém, tudo. Desse conhecimento intuitivo e minucioso, expresso numa capacidade descomunal para a introjeção - numa vocação para o Einfühlung - é que deriva, serpeia e relumbra o seu caráter de corrente - de stream of consciousness, para dizermos uma vez ainda com James. Na verdade, é contínua e cambiante. Nada, aí, se insula ou estaca, estável ou espontâneo; nada. Há um tumulto de estados e de processos: fundem-se, na mesma onda multicor e nômade, a sensação e a lembrança, a percepção e o desejo, a idéia e a volição. Sobre esse fundo inquieto e permanente desenham-se e soerguem-se os incidentes de que, no campo da própria consciência, tomam conhecimento os sombrios narradores: são os sons do tímbale, na sinfonia da imagem de Bergson - que depois revertem e se apagam na surda onipresença donde emergiram.

Mas, o tumulto tem suas leis: é vida; não é caos. Não mostra passagens gratuitas nem aparências arbitrárias; nele toda mudança pressupõe o influxo de uma contigüidade como toda situação a existência de um antecedente com que se encontra em relação funcional. No final da Angústia, é fácil vermos como o pensamento de Luís da Silva guarda sempre o mesmo norte. Na longa marcha sobre a pista de Julião Tavares, ele não atenta para o estado do céu: eis um exemplo. Por que não atenta? Porque o estado do céu não tem no momento - como tinha para João Valério, no curso dos Caetés, junto à garça de bronze do jardim - nenhum interesse prático para a corrente da sua consciência. Os seus feelings não dependem aí, na motivação que os suscita ou na finalidade que os dirige, do estado do céu. Em compensação, dependem estreitamente da circunstância de que apareça ou não apareça gente; então, verificamos quanto, quanto o preocupa o fantasma possível do trânsito!

Destarte, chegamos à conclusão de que, na ficção do sr. Graciliano Ramos, essa vida interior caminha invariavelmente para um alvo; caminha. Obscuro, às vezes; porém, real. Ora, é essa precisamente, com a mobilidade e a continuidade, uma das propriedades fundamentais que James atribui à stream of consciousness. Essa uniforme, essa inconsútil veridicidade psicológica, cremos de bom grado, é o que lhe confere o caráter de universalidade tão raro entre nós - que, no eterno começar que tem sido a nossa história, amamos perdidamente a superfície. O pitoresco e o anedótico. Rompe assim, como Pompéia e Barreto, com a tradição brasileira do ouropel.

Isto nos conduz ao exame da forma na obra do sr. Graciliano Ramos. Não aludimos, certamente, à sua correção ou à sua clareza; não. A clareza ou a correção não são qualidades artísticas; são qualidades gramaticais. Não se referem ao gosto; referem-se à língua. E isto que é tão sabido como mal lembrado desde Longino até Albalat, não nos toca. O que nos toca, aqui, é apenas a relação entre o conteúdo e o modo da expressão, tal como se nos apresenta e age sobre nós nessa ficção tão densa.

Devemos a Kant, na estética, a ilusão do formalismo que dissociava, tacitamente, a matéria da forma: bem cedo, Herder iria reagir contra ele, opondo-lhe o conceito de Einfühlung, que o romantismo reduziria a mera evasão pela dissolução do indivíduo na contemplação da natureza. Todavia, estava dado o primeiro passo para o reconhecimento da interdependência entre a forma e a matéria. Já não era concebível a modificação de uma sem a modificação da outra; sem a modificação da "plenitude da adequação das partes ao fim comum da existência do todo".

Está claro, então, o que é que nos atrai, assim, na obra do sr. Graciliano Ramos: é a reciprocidade da conveniência entre o que tem a dizer e o modo o diz. Aí, a forma distingue a matéria na mesma medida, ideal, em que a matéria determina a forma. Quando, pelas páginas da Angústia, vão e vêm os ratos, os ratos, sempre os ratos, numa abundância cinérea de obsessão - é óbvio que ele não tinha, nem poderia ter, outro meio para dar-nos a entender o que se oculta aí. E entra em cheio na simbólica de Vischer.

Com efeito, os ratos, esses pardos e macios ratos, que atacam a casa velha e destroem o fruto do trabalho humano, não são no romance simples detalhe casual, descritivo: são a imagem de uma época; são o prenúncio de um desfecho. Há seja lá o que for, grande talvez mas podre, que trinca, que [rui], que tomba em derredor de nós; qualquer coisa como um edifício em vésperas de desmoronamento. Das profundezas dos alicerces abalados, e corrompidos, irrompe a população subterrânea e fotófoba das sevandijas. Já não há ordem nem limites: tudo, ao entardecer da derrocada, começa a ser permitido como sempre acontece quando baixa entre os homens a sombra da revolta dos cataclismas. As senadijas, as sevandijas regozijadas no universal relaxamento das calamidades, podem agora vir à tona e passear ao seu bel-prazer sobre os escombros indefesos e os códigos esquecidos. Os homens não morreram; não fugiram. Mas, na agonia, na agonia caudalosa do seu mundo, não se animaram a dar caça a essa alimária minúscula dos desvãos. Os homens têm mais o que não fazer. Os homens não cuidarão sequer de atentar nela - nessa ratazanada confiada, que veio conviver com eles e conviver de igual para igual. Na mesma sala, à mesma luz e à mesma hora. Os homens, enfim, não são mais homens de outrora, capazes de brandir um pau ou de açular um gato; não. São apenas pobres luíses-da-silva, foragidos da vida, vencidos por uma vizinha ou por uma víscera, mergulhados parece que para sempre no espanto da ruína de uma civilização. E com esses ratos, com esses ratos em cena, tão freqüentes como cinzentos, o romancista exprime exatamente aquilo que, no íntimo, nós temos em comum com ele: o sentimento de que a hora que passa, que é a hora extrema da tormenta, é a hora dos ratos: não é a hora dos homens. Porque os próprios homens, hoje, serão mais que ratos, meros ratos violáceos a errarem em cima das [mesmas] migalhas do proveito, pela catacumba leiga de uma casa velha?

É a essa inter-relação, entre a matéria e a forma, que devemos a maneira do sr. Graciliano Ramos: ele não lhe importa o modelo nem o efeito; importa-lhe unicamente aquilo que tem a transmitir-nos. A busca de uma expressão que, alheia a qualquer outro objetivo, deixe intacta a extensão e a intensidade da coisa a exprimir, é provavelmente o seu martírio porque é, sem dúvida, o seu triunfo. O desprezo da forma é mais que o véu com que se encobre e disfarça a incapacidade de realização; é a prova da ignorância da sua natureza. Só não busca a forma aquele que tem as mãos vazias. É a forma que, distinguindo a matéria, nos dá a imagem correspondente à imagem que guardamos no fundo do nosso ser e que procuramos na arte. Dessa coincidência é que deverá brotar em nós o prazer específico - a emoção estética. Pois, seguindo uma intuição de Descartes, já Lange mostrava que a emoção é secundária à modificação orgânica.

O sr. Graciliano Ramos não perde nunca de vista aquela interdependência. É assim que, ao apresentar-nos um estado de espírito muito definido e, pois, muito duradouro, suas personagens repetem não raro uma frase com fixidez de um estribilho. Caída a mulher sobre o leito, morta ou como morta, no campo da consciência de Paulo Honório não cabe senão uma pequena, lívida esperança: uma luzerna irracional, mais desejo, mais tímido e retrospectivo desejo, do que mesmo esperança. E é o que vai transparecer no seu rude refrão: "- A Deus nada é impossível". Dona Adélia, diante da leviandade de Marina, não sabe o que dizer ao futuro genro: a repetição revelando-lhe a continuidade, revela-lhe de igual modo a penúria mental: "- É a mocidade", explicará, lacônica e docemente, a Luís da Silva.

A técnica é idêntica sempre que é idêntica a situação. Quando ele nos quer transmitir, por exemplo, a impressão de pauperismo ou de monotonia dessa existência a que se abebera a sua arte, a matéria, que é essa monotonia ou esse pauperismo, determina uma forma em que transluz, precisamente esse pauperismo ou essa monotonia: assim, a forma não distingue senão a única matéria que poderia distinguir, e que é a matéria, única a poder determiná-la. Não se explica de maneira diversa, na Angústia, a volta intermitente à cena daquela mulher que lava garrafas ou daquele homem que enche dornas. Às vezes a insignificância dos detalhes acumulando-se desvenda a insignificância das próprias coisas: "Que diabo fazia eu aí, debruçado à janela?" indaga Luís da Silva, perplexo em face da chateza do seu destino. "Entrava, ia para a sala de jantar, abria um livro, punha-me a ler marcando os períodos com o dedo. Quando terminava um período, baixava o dedo a um lugar onde era provável haver um ponto final. Parecia-me que este exercício me fixava a atenção na leitura: às vezes conseguia compreender a página inteira. Mas o dedo fatigava-se, entorpecia e os olhos desviavam-se das letras, pregavam-se na toalha, acompanhavam o movimento das moscas sobre as nódoas. Um relógio batia, Julião e Marina ausentes. Vitória falava alto na cozinha. Antonia embalava o filho mais novo de dona Rosália e a criança manhosa berrava com desespero". Não parece escrito de propósito para a exemplificação?

Estudando a obra de Proust, afirma Curtius: "De chofre, esbarramos com uma frase que emerge do conjunto como se contivesse um não sabemos quê de extraordinário: como se fosse translúcida, permite-nos lobrigar, ainda que seja confusamente, a índole do autor. À medida que prosseguimos na leitura, esbarramos com uma segunda, com uma terceira da mesma natureza e afigura-se-nos, então, haver nesse retorno uma oculta causalidade", presas como estão elas, a seu ver, a um fundo comum de origem. "São manifestações de uma mesma realidade espiritual que, completando-se e esclarecendo-se mutuamente, nos fazer ver um matiz da alma, uma particularidade do espírito do autor", continua Curtius. "Compreendemos então que tocamos num ponto, embora ainda periférico, do segredo da originalidade criadora. O modo por que o traço isolado se liga do ao conjunto permanece por inteiro indeterminável; mas, possuímos um ponto de partida. Reunindo cuidadosamente esses traços singulares, comparando-os numa meditação freqüentemente renovada, e distendida, chegaremos a aclarar a intuição. A verdadeira crítica segue esse caminho". Era a lição do próprio Proust ao analisar a obra de Ruskin.

Na ficção do sr. Graciliano Ramos, em que a forma está sempre tão conseqüentemente vinculada à matéria, também encontramos esses "traits similaires qui permettent de les tenir pour les traits essentiels du génie d'un écrivain". Bastaria vermos como mostra um homem ao mesmo tempo zangado e tranqüilo ou uma mulher com a cabeça cheia de moedas e de navios. Ao crermos nesses achados, que parecem impossíveis e contudo nos entram pelos olhos adentro, não fazemos mais do que descobrir, mesmo de longe, o segredo do escritor: o seu estilo; o seu modo de ser. E quando, remexendo os destroços das suas lembranças, um dos seus memorialistas encarniçados confessa que "saíram desse entorpecimento recordações que a imaginação completou", em verdade dá toda a sua medida; aí, tanto ressalta o conhecimento do nosso ser, em que o esquecimento tem a mesma parte da fantasia, como a música articulada em que consiste a arte de escrever. Na sua análise da beleza, Hogarth procura demonstrar a inferioridade da reta, negação da variedade, em face da curva, que chama a linha serpentina. A prosa do sr. Graciliano Ramos é, se nos é permitida a expressão, uma prosa assim: cheia de uma graça lenta, é musical como uma curva elipsoidal.

Mas, tão grande é a sua disciplina; tão viva a dependência da forma em relação à matéria - que um instrumento tão doce, submetido à interação entre o fim e os meios, se transformou, se pôde transformar, literalmente, num instrumento de combate. Porque ela cai, rígida e certeira, carregada de veneno e maciez, sobre a sociedade que condena e retrata, com a força do tacape de um caeté envolto na seda do punho de um florentino. "Infelizmente, não sou selvagem", lastima João Valério, que já não crê na civilização que conhece e que é a civilização da propriedade. "E ali estava, mudando a roupa com desânimo, civilizado, triste, de cuecas". Essa civilização tem um nome para a sua superestrutura política: é democracia. Mas, o súdito não leva mais a sério aquilo que criou e que era bom, quando se harmonizava com o estado de forças produtivas: o que lhe importa, agora, se alguma coisa lhe importa ainda, não tem maior alcance que o seu apetite ou o seu amado sossego. Por isso, não cora de confessar: "Procurei pela segunda vez os olhos de Luísa e, não os encontrando, declarei com aversão que a democracia era blague". Não crê em mais nada: é preciso que venha o dilúvio, para que tudo possa recomeçar. Nem mesmo as velhas imagens, meio retórica e meio religião, com que se enfeita a algaravia tradicional e psitacídea dos salões, encontram mais o respeito de outrora. "- Necessitamos luz, muita luz", afirma o doutor Castro, referindo-se ao ensino. "- Com miolo de pão?", pergunta a seguir Clementina. A junção, inesperada e oportuna, deixa em ridículo a nossa pobre palavra simbólica, que é luz. Que resta, portanto, a esse mundo caeté da desigualdade, na ficção do sr. Graciliano Ramos, senão pedir uma vela e morrer em paz com o seu deus, que está morrendo também?

É isto o que tem para dizer-nos, e numa forma perfeita, porque acorda em nós o eco de uma realidade que conhecemos do mesmo modo, o grande romancista brasileiro chamado Graciliano Ramos. Poderíamos resumi-lo, dizendo que ele nos traz uma anunciação.
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O Jornal, Rio de Janeiro, 5.10.1947. Este é o último da série de seis artigos sobre Graciliano Ramos, publicado na seção A Ronda dos Livros, escrita por Monte Brito [pseudônimo do escritor de esquerda paraibano Allyrio Meira Wanderley, autor do romance Bolsos Vazios (1940) e do ensaio político As Bases do Separatismo
(1935) entre outros]. O primeiro dos artigos é de 31 de agosto.

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