quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Freyre, Lula e o Brasil

Há dias li esse poema de Gilberto Freyre, escrito em 1926 e publicado no livro Talvez Poesia (1962), mas que está também presente nessas novas edições de Casa Grande & Senzala.

Muito temos discutido aqui, entre amigos, na nossa Montanha Mágica do Sertão das Espinharas sobre bacharelismo, profissões, artífices, política. Temos discutido a imensa incapacidade que as pessoas no geral possuem de achar que um pedreiro não pode ler e decodificar a visão de mundo de um médico ou de um empresário ou mesmo de ele criar uma visão de mundo tão complexa quanto qualquer outra.

Em outras palavras, Gilberto Freyre mandou um recado a Caetano Veloso muitíssimo antes de Caetano dar a fatídica entrevista na Folha de São Paulo, onde ele chamou Lula de analfabeto. Com a palavra, o Mestre de Apipucos...


O outro Brasil que vem aí

Eu ouço as vozes
eu vejo as cores
eu sinto os passos
de outro Brasil que vem aí
mais tropical
mais fraternal
mais brasileiro.
O mapa desse Brasil em vez das cores dos Estados
terá as cores das produções e dos trabalhos.
Os homens desse Brasil em vez das cores das três raças
terão as cores das profissões e regiões.
As mulheres do Brasil em vez das cores boreais
terão as cores variamente tropicais.
Todo brasileiro poderá dizer: é assim que eu quero o Brasil,
todo brasileiro e não apenas o bacharel ou o doutor
o preto, o pardo, o roxo e não apenas o branco e o semibranco.
Qualquer brasileiro poderá governar esse Brasil
lenhador
lavrador
pescador
vaqueiro
marinheiro
funileiro
carpinteiro
contanto que seja digno do governo do Brasil
que tenha olhos para ver pelo Brasil,
ouvidos para ouvir pelo Brasil
coragem de morrer pelo Brasil
ânimo de viver pelo Brasil
mãos para agir pelo Brasil
mãos de escultor que saibam lidar com o barro forte e novo dos Brasis
mãos de engenheiro que lidem com ingresias e tratores europeus e norte-americanos a serviço do Brasil
mãos sem anéis (que os anéis não deixam o homem criar nem trabalhar).
mãos livres
mãos criadoras
mãos fraternais de todas as cores
mãos desiguais que trabalham por um Brasil sem Azeredos,
sem Irineus
sem Maurícios de Lacerda.
Sem mãos de jogadores
nem de especuladores nem de mistificadores.
Mãos todas de trabalhadores,
pretas, brancas, pardas, roxas, morenas,
de artistas
de escritores
de operários
de lavradores
de pastores
de mães criando filhos
de pais ensinando meninos
de padres benzendo afilhados
de mestres guiando aprendizes
de irmãos ajudando irmãos mais moços
de lavadeiras lavando
de pedreiros edificando
de doutores curando
de cozinheiras cozinhando
de vaqueiros tirando leite de vacas chamadas comadres dos homens.
Mãos brasileiras
brancas, morenas, pretas, pardas, roxas
tropicais
sindicais
fraternais.
Eu ouço as vozes
eu vejo as cores
eu sinto os passos
desse Brasil que vem aí.

2 comentários:

Raquel disse...

"mãos sem anéis(que os anéis não deixam o homem criar nem trabalhar)"

É como um desagravo,urgente,não só à declaração injusta mas a toda uma nação alí representada.

Graça Serrano disse...

As máscaras dos intelectuais brasileiros começam a cair.
Belo olhar sobre o homem; o seu e o de Freire, o Gilberto.