O amor acabou. Abruptamente findado por um gesto ainda agora incompreendido. Tudo recente, novo demais! Não houve tempo para racionalizar. "Por que ela fez isso?! Como entender?!" É natural que você se pergunte onde errou. Mais! Passada a surpresa no começo, aquela sensação de que o mundo parou de uma hora pra outra, e aí você começa a refazer e ressignificar toda a história do seu relacionamento a partir deste ato de fim que veio dela, a sua perspectiva é a do sujeito que fez tudo por onde as coisas dessem certo. Toda a recontagem é feita assim até que, quando da remontagem do mosaico das coisas antes insignificantes, soltas, dispersas mas agora visíveis, tornadas pistas (é por isso que ela falou daquele jeito tal dia!), até que você percebe que você errou. A única vantagem nesse processo doloroso é que você derrube, no fim das contas, a sua imponência, a sua aguda certeza de que fez tudo o que deveria ser feito.
Para quem já leu a A Dócil, novela do filho de Mikhail, traduzida por Vadim Nikitim pela Editora 34, presente na edição que traz junto a não menos fantástica narrativa O sonho de um homem ridículo, sabe também do que estou falando. A perplexidade do narrador em ainda não saber o que pensar do suicídio da sua esposa, da maneira como ela pôs fim ao amor deles, é evidenciada nas suas primeiras falas. Não sabe como foi acontecer, não aceita que isso tenha ocorrido! A racionalização ainda não chegou, as falas são inconclusas, os pensamentos alheios ao evento entram e saem sem sequer deixar claro o motivo de se pensar em tais idiotices (num momento como esse!). Mas está claro que ela ter se atirado pela janela redefiniu toda a compreensão que ele tinha da vida do casal. E ele vai atrás desse sentido, ele precisa contar (mais para si do que pros outros) uma história que possa substituir a história anterior, aquela do dia-a-dia, nada extrarodinária e que nem precisava ser contada, porque não precisava mesmo. Só se deve contar algo que ultrapassa o ordinário, ou então, que conte o ordinário para mostrar que ele é, no fim das contas, Absurdo.
O dono da loja de penhores (Raskolnikóv matou um tipo desses, todos sabem em inquérito já bem apurado) se apresenta como um cara de vida e hábitos comedidos. Ele cuida com muito esmero do seu negócio e administra com eficiência suas contas. Sabe que não pode levar uma vida de regalias, embora, de acordo com seus cálculos, mais alguns anos de trabalho e economias e ele terá a possibilidade de adquirir uma casa melhor num outro lugar, talvez noutro país; de uma visita mensal ao teatro, única diversão que cabe no seu orçamento agora, ele dará um salto para em cada noite um espetáculo diferente. Não se condena pelas privações no agora quando sabe que depois haverá a redenção material. Ele não é estúpido nem ingênuo. Não é com essas cores que Dostoiévski quer que o vejamos. Se no começo ele se apresenta como alguém cheio de si pelas metas seguras traçadas para seu futuro, essa segurança rui ao contato dele com aquela jovem que um dia chega na sua loja para penhorar alguns bens pessoais (se não me engano, um ícone). Não dá pra dizer que ele se apaixonou. Pelo menos não é o que o narrador afirma. Ele passa a prestar atenção nela depois que ela vai mais vezes na loja. Pôde saber que era estudante, que vivia com duas tias que a humilhavam, que precisava do dinheiro para pôr um anúncio no jornal (não me lembro agora se se oferecia para dar aulas ou para trabalhar de empregada). Num dos diálogos travados entre os dois, ele se apresenta a ela tal como Mefisto se define para o Dr. Fausto, citando imprecisamente Goethe: Eu sou uma parte daquela parte do Todo que quer fazer o Mal, mas cria o Bem.
Agora sim ele distinguia muito claramente o quanto aquele espírito era livre. Mas antes de sabermos se ele se apaixonou por ela, por sua beleza ou por seu jeito de pássaro arredio, ele pensou que lha faria um bem se se casassem. Imediatamente ele calcula o espaço equivalente na sua vida a uma esposa - algo que estava de fato previsto, afinal um sujeito modesto deve incluir uma esposa em seus planos. Mas essa era de início sua preocupação e foi honesto com ela ao deixar claro que o teatro, no máximo, era uma noite por mês, viu? Mas e ela? Aceitou casar-se por quê? Ora, segundo o narrador que está recontando tudo de frente pra trás, foi porque ele era vantajoso, como não? Ele era seu benfeitor e assim queria acreditar para dormir em paz na cama. Ele, nobre cavaleiro, salvaria a princesa encastelada pelas duas bruxas malvadas que queriam casá-la com um comerciante da vizinhança, um porco feio e sem modos. Não! Ele não permitiria essa injúria a uma jovem tão inteligente, tão apta e capaz (implicitamente, capaz dele, do narrador). E ela usaria de suas faculdades perfeitas para enxergar isso, que estava na cara, oras! Ela o escolheu porque, dadas as circunstâncias e o grau de julgamento dela, era o melhor a fazer. Mas aí vem a grande dúvida desse capítulo, que toma o leitor de assalto, que eu achei incrível e que infelizmente a sensação que me causou eu não conseguirei transpor para este texto. O narrador diz que, bem, ponderando tudo dessa maneira, ela só terminaria escolhendo o outro pretendente se fosse apenas por pirraça. Ele diz a si mesmo que ela não fez a escolha errada. Até aí o ponto de vista era exclusivamente dele. Ela não aparece, não temos idéia do que ela achava de cada um. E eis que, ao fim do capítulo e diante das coisas como aconteceram depois, o narrador é invadido por uma angústia enorme: mas e se ela escolheu mesmo, por pirraça, o pior dos pretendentes? E se era assim que ela o via?
O casamento de ambos é cheio de controvérsias. Logo de início, o narrador diz que ela ajudou nos negócios, que era prestativa e que parecia interessada naquele projeto de vida. Mas havia algo nela de incompreensível, uma espécie de insatisfação, um enfastiamento. E não era a necessidade de ir mais de uma vez ao teatro. A sensação de ter um pássaro preso começou a perturbar a mente do narrador, que interpreta todas as falas e todos os atos da esposa como sinais e prenúncios do que viria a acontecer no futuro. Não que ela tivesse tendências suicidas, mas a vida viva que ela queria implicava em outras coisas, em desejos que estavam para além daquele projeto traçado, mas que estavam bem aqui e possíveis de realizar. Além disso, episódios extremos como o que ele acorda na mira de um revólver empunhado pela própria esposa, começam a pôr a discórdia em tudo. Num momento mesmo do texto, ele recupera a vez em que ela conhece um antigo amigo do narrador e de quem ela busca se aproximar e daí surge a desconfiança de traição. Em tempos antigos, esse sujeito causou um grande constrangimento ao narrador e ver a esposa acercar-se dele o enfureceu ainda mais. Termina que ela não o trai, apenas queria causar um mal-estar ao marido (juro a vocês que como faz tempo que li a novela não consigo tirar mais conclusões desse episódio, mas não é tão simplista como eu descrevo de memória - aliás, a história toda é cheia de mais coisas que isso que escrevo).
Ocorre que, aquela criatura livre, que cantava sempre enquanto costurava, definhou ao ponto de adoecer. O narrador conta que entre as febres convulsivas ele se desesperava na tentativa de mudar aquilo, de reverter tudo, dar novamente vida à esposa. Ele até acredita que isso foi possível quando decidiu jogar tudo pro alto e ir embora daquela existência numa manhã em que ela acordou bem. Prometeu isso a ela, prometeu que ia vender tudo e que iriam para a tão sonhada vida pela qual ele tanto lutou. Mas talvez isso jamais desse num efeito positivo. A sensação que se fica é de que havia uma espécie de ódio da esposa por se sentir, desde o começo, como a criatura dócil, assim tratada e vista pelo marido. Era como se houvesse uma gratidão que se expressava às avessas. Ou que ela quisesse demonstrar o tempo todo que não era nem sentimento de gratidão eterna nem o regozijo-do-dever-cumprido que ditam o ritmo de um amor. O narrador, nas linhas em que lhe é concedido o direito de tentar entender tudo, deixa claro que há um conflito de gerações, entre os corações jovens, cheios de vitalidade, cuja disposição para um gesto (o "gesto" aqui tomado na sua acepção plena, como algo quase impensado) de bondade e de sacrifício é motivada pela falta de experiência; experiência esta que os mais velhos têm, mas que conseqüentemente não os leva a agir com gestos inequívocos de bondade e sim sempre pensando no quanto algo que se faz pode dar ou em sucesso ou em fracasso.
Minha angústia pessoal consiste em não querer dar nem tirar a razão de nenhuma dessas posturas; nem poder questionar quem opta por uma ou pela outra...
Para quem já leu a A Dócil, novela do filho de Mikhail, traduzida por Vadim Nikitim pela Editora 34, presente na edição que traz junto a não menos fantástica narrativa O sonho de um homem ridículo, sabe também do que estou falando. A perplexidade do narrador em ainda não saber o que pensar do suicídio da sua esposa, da maneira como ela pôs fim ao amor deles, é evidenciada nas suas primeiras falas. Não sabe como foi acontecer, não aceita que isso tenha ocorrido! A racionalização ainda não chegou, as falas são inconclusas, os pensamentos alheios ao evento entram e saem sem sequer deixar claro o motivo de se pensar em tais idiotices (num momento como esse!). Mas está claro que ela ter se atirado pela janela redefiniu toda a compreensão que ele tinha da vida do casal. E ele vai atrás desse sentido, ele precisa contar (mais para si do que pros outros) uma história que possa substituir a história anterior, aquela do dia-a-dia, nada extrarodinária e que nem precisava ser contada, porque não precisava mesmo. Só se deve contar algo que ultrapassa o ordinário, ou então, que conte o ordinário para mostrar que ele é, no fim das contas, Absurdo.
O dono da loja de penhores (Raskolnikóv matou um tipo desses, todos sabem em inquérito já bem apurado) se apresenta como um cara de vida e hábitos comedidos. Ele cuida com muito esmero do seu negócio e administra com eficiência suas contas. Sabe que não pode levar uma vida de regalias, embora, de acordo com seus cálculos, mais alguns anos de trabalho e economias e ele terá a possibilidade de adquirir uma casa melhor num outro lugar, talvez noutro país; de uma visita mensal ao teatro, única diversão que cabe no seu orçamento agora, ele dará um salto para em cada noite um espetáculo diferente. Não se condena pelas privações no agora quando sabe que depois haverá a redenção material. Ele não é estúpido nem ingênuo. Não é com essas cores que Dostoiévski quer que o vejamos. Se no começo ele se apresenta como alguém cheio de si pelas metas seguras traçadas para seu futuro, essa segurança rui ao contato dele com aquela jovem que um dia chega na sua loja para penhorar alguns bens pessoais (se não me engano, um ícone). Não dá pra dizer que ele se apaixonou. Pelo menos não é o que o narrador afirma. Ele passa a prestar atenção nela depois que ela vai mais vezes na loja. Pôde saber que era estudante, que vivia com duas tias que a humilhavam, que precisava do dinheiro para pôr um anúncio no jornal (não me lembro agora se se oferecia para dar aulas ou para trabalhar de empregada). Num dos diálogos travados entre os dois, ele se apresenta a ela tal como Mefisto se define para o Dr. Fausto, citando imprecisamente Goethe: Eu sou uma parte daquela parte do Todo que quer fazer o Mal, mas cria o Bem.
Agora sim ele distinguia muito claramente o quanto aquele espírito era livre. Mas antes de sabermos se ele se apaixonou por ela, por sua beleza ou por seu jeito de pássaro arredio, ele pensou que lha faria um bem se se casassem. Imediatamente ele calcula o espaço equivalente na sua vida a uma esposa - algo que estava de fato previsto, afinal um sujeito modesto deve incluir uma esposa em seus planos. Mas essa era de início sua preocupação e foi honesto com ela ao deixar claro que o teatro, no máximo, era uma noite por mês, viu? Mas e ela? Aceitou casar-se por quê? Ora, segundo o narrador que está recontando tudo de frente pra trás, foi porque ele era vantajoso, como não? Ele era seu benfeitor e assim queria acreditar para dormir em paz na cama. Ele, nobre cavaleiro, salvaria a princesa encastelada pelas duas bruxas malvadas que queriam casá-la com um comerciante da vizinhança, um porco feio e sem modos. Não! Ele não permitiria essa injúria a uma jovem tão inteligente, tão apta e capaz (implicitamente, capaz dele, do narrador). E ela usaria de suas faculdades perfeitas para enxergar isso, que estava na cara, oras! Ela o escolheu porque, dadas as circunstâncias e o grau de julgamento dela, era o melhor a fazer. Mas aí vem a grande dúvida desse capítulo, que toma o leitor de assalto, que eu achei incrível e que infelizmente a sensação que me causou eu não conseguirei transpor para este texto. O narrador diz que, bem, ponderando tudo dessa maneira, ela só terminaria escolhendo o outro pretendente se fosse apenas por pirraça. Ele diz a si mesmo que ela não fez a escolha errada. Até aí o ponto de vista era exclusivamente dele. Ela não aparece, não temos idéia do que ela achava de cada um. E eis que, ao fim do capítulo e diante das coisas como aconteceram depois, o narrador é invadido por uma angústia enorme: mas e se ela escolheu mesmo, por pirraça, o pior dos pretendentes? E se era assim que ela o via?
O casamento de ambos é cheio de controvérsias. Logo de início, o narrador diz que ela ajudou nos negócios, que era prestativa e que parecia interessada naquele projeto de vida. Mas havia algo nela de incompreensível, uma espécie de insatisfação, um enfastiamento. E não era a necessidade de ir mais de uma vez ao teatro. A sensação de ter um pássaro preso começou a perturbar a mente do narrador, que interpreta todas as falas e todos os atos da esposa como sinais e prenúncios do que viria a acontecer no futuro. Não que ela tivesse tendências suicidas, mas a vida viva que ela queria implicava em outras coisas, em desejos que estavam para além daquele projeto traçado, mas que estavam bem aqui e possíveis de realizar. Além disso, episódios extremos como o que ele acorda na mira de um revólver empunhado pela própria esposa, começam a pôr a discórdia em tudo. Num momento mesmo do texto, ele recupera a vez em que ela conhece um antigo amigo do narrador e de quem ela busca se aproximar e daí surge a desconfiança de traição. Em tempos antigos, esse sujeito causou um grande constrangimento ao narrador e ver a esposa acercar-se dele o enfureceu ainda mais. Termina que ela não o trai, apenas queria causar um mal-estar ao marido (juro a vocês que como faz tempo que li a novela não consigo tirar mais conclusões desse episódio, mas não é tão simplista como eu descrevo de memória - aliás, a história toda é cheia de mais coisas que isso que escrevo).
Ocorre que, aquela criatura livre, que cantava sempre enquanto costurava, definhou ao ponto de adoecer. O narrador conta que entre as febres convulsivas ele se desesperava na tentativa de mudar aquilo, de reverter tudo, dar novamente vida à esposa. Ele até acredita que isso foi possível quando decidiu jogar tudo pro alto e ir embora daquela existência numa manhã em que ela acordou bem. Prometeu isso a ela, prometeu que ia vender tudo e que iriam para a tão sonhada vida pela qual ele tanto lutou. Mas talvez isso jamais desse num efeito positivo. A sensação que se fica é de que havia uma espécie de ódio da esposa por se sentir, desde o começo, como a criatura dócil, assim tratada e vista pelo marido. Era como se houvesse uma gratidão que se expressava às avessas. Ou que ela quisesse demonstrar o tempo todo que não era nem sentimento de gratidão eterna nem o regozijo-do-dever-cumprido que ditam o ritmo de um amor. O narrador, nas linhas em que lhe é concedido o direito de tentar entender tudo, deixa claro que há um conflito de gerações, entre os corações jovens, cheios de vitalidade, cuja disposição para um gesto (o "gesto" aqui tomado na sua acepção plena, como algo quase impensado) de bondade e de sacrifício é motivada pela falta de experiência; experiência esta que os mais velhos têm, mas que conseqüentemente não os leva a agir com gestos inequívocos de bondade e sim sempre pensando no quanto algo que se faz pode dar ou em sucesso ou em fracasso.
Minha angústia pessoal consiste em não querer dar nem tirar a razão de nenhuma dessas posturas; nem poder questionar quem opta por uma ou pela outra...
4 comentários:
Textos como esses só comprovam o que eu não havia dito antes: que a arte precisa ser o salto sobre a barreira invisível com que a tristeza se apresenta. Quem quer amar tem que estar pronto para morrer, como desesperava Zaratustra.
Lau,
Li inteirinho, na vã tentativa de não precisar incluir mais este à minha longa lista de livros "a ler". Inútil. Quero muito ler/ver o que você leu/viu.
Amigos, perdoem o texto alinhavado. Faz tempo que li essa novela, não lembro detalhes "críticos" dela. Além de tudo, eu quis dizer alguma coisa que tivesse suporte nessa narrativa e que na verdade eu nem sei o que era, mas que não está nesse texto postado. Pra piorar, ainda ficou completamente quebrado... já escrevi coisas melhores.
Com relação ao livro, saiu pela Editora 34 como "Duas Narrativas Fantásticas".
Meu amigo,
Impressionante a fidelidade de sua memória à história de Dostoiévski. Enquanto lia, me perguntava se você tinha relido A Dócil, antes de redigir seu texto. Chamo sua atenção para o fato de que a história está sendo contada do ponto de vista de um dos personagens apenas. Sugiro que, apenas como exercício, tente imaginá-la sob a perspectiva da esposa morta. Por exemplo, uma carta da suicida, apresentando seus motivos. Jamais chegamos a conhecer totalmente os parceiros de nossas histórias de amor. Por isso sempre nos perguntaremos, ao final, quando a iniciativa é do outro: por quê?
Um abraço,
Sueli.
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