sábado, 16 de fevereiro de 2013

O sonho de Gustav

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Nesta noite teve um sonho terrível - se podem ser chamadas de sonhos experiências físico-espirituais, apesar de lhe terem acontecido no mais profundo sono e em completa independência e presença física, sem que se visse andando e presente no lugar dos acontecimentos, porque a cena era sua própria alma; estes romperam de fora para dentro sua resistência - uma resistência profunda e espiritual -, derrubando-a violentamente, transpassando-a, deixando sua existência, deixando a cultura de sua vida devastada, exterminada.

O medo foi o princípio, medo, desejo e uma curiosidade horrorizada pelo que devia vir. Imperava a noite e os seus sentidos escutavam; pois de longe se aproximavam tumulto e bulha, uma mistura de barulhos: um punhado de júbilos estridentes e de um certo uivar com o som prolongado de "u" - tudo isso impregnado por um toque de flauta soando mais alto e medonhamente doce, profundamente arrulhante, perversamente pertinaz que, de maneira importunamente vergonhosa, lhe enfeitiçava as entranhas. Ele sabia uma palava obscura, mas dando um nome ao que vinha: o deus estranho. Acendeu-se uma chama cheia de fumaça: então reconheceu terra montanhosa, parecida àquela em redor de sua residência de verão. E numa luz rompida, vindo de alturas revestidas de florestas, entre troncos de árvores e rochas cobertas de musgo, rolavam-se e precipitavam-se, girando para baixo: homens, animais, um enxame, um bando furioso - e inundaram a colina de corpos, chamas, tumulto e dança vertiginosa. Mulheres, gemendo, sacudiam tamborins sobre suas cabeças jogadas para trás, tropeçando sobre longos hábitos de pele que lhes pendiam da cintura; vibravam punhais nus e archotes cujas chamas se dispersavam; seguravam serpentes sibilantes pelo meio dos corpos ou erguiam, gritando, seus seios com ambas as mãos. Homens de chifre sobre a testa, abrigados em peles, hirsutos, curvavam o pescoço e erguiam braços e coxas, e faziam vibrar pratos de bronze e batiam raivosos sobre timbales, enquanto, com bastões envolvidos em folhas, rapazes nus espicaçavam bodes cujos chifres agarravam, deixando-se arrastar, jubilantes, pelos seus saltos. E os extasiados urravam o grito de consoantes suaves de prolongado "u" no fim, doce e selvagem ao mesmo tempo, como jamais fora ouvido um outro: aqui ressoava bramando para os ares como por veados e ali era reproduzido, multíssono, em louco triunfo; atiçavam-se com este grito para a dança e, arremessando os membros, nunca o deixaram silenciar. Mas tudo era penetrado e dominado pelo profundo e atraente da flauta. Não seduzia também a ele, o presenciador resistente, com persistência impudica, para a festa e a imoderação do sacrifício extremo? Grande era a sua repugnância, grande seu medo, honesto seu desejo de salvaguardar o seu eu até o fim contra o estranho, o inimigo do sereno e digno espírito. Mas o barulho e a gritaria, multiplicados pela rocha ecoante, cresciam, sobrepujavam, aumentavam, até a loucura arrebatante. Vapores comprimiam o cérebro, o cheiro penetrante dos bodes, a atmosfera de corpos arquejantes e um corpo de águas pútridas, e além destes ainda um outro, familiar: de feridas e de doença propagada. Com as batidas dos timbales seu coração retumbava, seu cérebro girava, acometido de raiva, de desvario, de atordoante voluptuosidade, e sua alma desejou unir-se à dança de roda do deus. O enorme símbolo obsceno, de madeira, foi descoberto e elevado: aí gritaram mais desenfreados a senha. Com espumas nos lábios, vociferavam, excitavam-se com gestos lascivos e mãos buliçosas, rindo e gemendo, empurravam os bastões espinhosos um na carne do outro e lambiam o sangue dos membros. Mas com eles, entre eles, estava agora o sonhador, submisso ao deus estranho. Eles eram ele mesmo, quando se atiravam sobre os animais, dilacerando e assassinando, e devoravam pedaços fumegantes; então, sobre o terreno de musgo revolvido, começou um ilimitado cruzamento, em sacrifício ao deus. E sua alma experimentou a luxúria e a loucura da decadência.
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MANN, Thomas. A morte em Veneza. Trad. Maria Deling. São Paulo: Abril Cultural, 1979. (pp. 160-162)


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