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Todos os textos em itálico estão originalmente em Francês.
Todos os textos em itálico estão originalmente em Francês.
(…) Colocou,
para Mme. Chauchat, uma poltrona
forrada de pelúcia, no lugar que antes assinalara pantomimicamente. Para si
mesmo apossou-se de uma cadeira de vima, de braços redondos, e que gemeu e rangeu,
quando nela se sentou. Inclinou-se para Mme.
Chauchat, apoiando os cotovelos nos braços da poltrona, com a lapiseira na mão
e com os pés para trás, embaixo da cadeira. Ela, por sua vez, afundou-se no
estofamento coberto de pelúcia; seus joelhos achavam-se muito elevados, mas
apesar disso, cruzou as pernas e balançou um dos pés, cujo tornozelo, acima da
margem do sapato de verniz preto, desenhava-se sob a seda igualmente preta da
meia. À sua frente estavam sentadas outras pessoas, que se levantavam para
dançar e cediam o lugar a outras, cansadas. Era um constante vaivém.
- Estás com
um vestido novo – disse Hans Castorp, para ter o direito de olhá-la, e ouviu
como ela respondia:
- Novo? Então
conheces meu vestuário?
- Tenho ou
não tenho razão?
- Tens, sim.
Mandei fazê-lo aqui, recentemente, no Lukacek, na aldeia. Ele trabalha muito
para as senhoras daqui. O vestido te agrada?
- Muito –
respondeu ele, envolvendo-a mais uma vez no seu olhar, antes de baixar os
olhos. – Queres dançar? – acrescentou.
- E tu, gostarias?
– perguntou ela, sorrindo, com as sobrancelhas alçadas, ao que ele replicou:
- Gostaria,
sim, se tivesses vontade.
- És mais
levadinho do que eu pensava – observou ela, e quando ele se riu
desdenhosamente, acrescentou: – Teu primo já se foi?
- Pois é, é
meu primo – confirmou Hans Castorp sem necessidade. – Eu também notei que ele
não está mais aqui. Acho que já se recolheu.
- É um homem jovem muito fechado, muito
honesto, muito alemão.
- Fechado? Honesto? – repetiu ele. –
Entendo o francês muito melhor do que falo. Queres dizer que ele é um pedante.
Achas que os alemães são pedantes, nós
Alemães?
- Nós zombamos de seu primo. Mas é verdade,
vocês são um pouco burgueses. Vocês amam
a ordem melhor que a liberdade, toda a Europa o sabe.
- Amar... amar... o que é isso? Falta uma
definição a essa palavra. Um ama, outro possui, como nós dizemos proverbialmente – afirmou Hans Castorp e
prosseguiu: Nos últimos tempos meditei às vezes sobre a liberdade. Isto é:
ouvi esta palavra com tanta frequência, que me fez refletir. Eu te direi em Francês o que pensei a respeito. Isso que toda a Europa chama de liberdade
pode ser uma coisa tão pedante e tão burguesa em comparação à nossa necessidade
de ordem – é isso!
- É divertido. É a teu primo que tu pensas
em dizer coisas estranhas como essa?
- Não, é realmente uma boa alma, uma natureza
singela, cujo espírito não corre nenhum perigo, tu sabes. Mas ele não é
burguês, ele é militar.
- Não corre
perigo? Repetiu ela com alguma dificuldade… – Tu queres dizer: uma natureza firme, certa de si mesma? Mas ele está
seriamente doente, teu pobre primo.
- Quem te
disse isto?
- Aqui a
gente anda bem informada sobre os outros.
- O dr.
Behrens te disse isto?
- Pode ser, me fazendo ver esses quadros
(chapas de radiografia).
- Quer dizer: fazendo teu retrato!
- Por que não? Achaste bom, meu retrato?
- Mas sim, extremamente. Behrens restituiu
exatamente tua pele, oh realmente, muito fielmente. Eu adoraria ser retratista,
também, para ter a oportunidade de estudar tua pele como ele.
- Fala em Alemão,
por favor!
- Oh, eu falo
Alemão também quando falo Francês. É uma
forma de estudo artístico e médico – em uma palavra: trata-se de “literatura”,
tu compreendes. E então, não queres dançar?
- Não. Acho isso pueril. Discrição de médicos.
Assim que Behrens voltar, todos cairão sobre as cadeiras. Isso será fortemente
ridículo.
- Tens tanto
respeito a ele?
- A quem? –
disse ela, pronunciando a interrogação com uma brevidade exótica.
- A Behrens.
- Mas vai então com teu Behrens! Além disso
falta espaço para dançar. E depois sobre
o tapete... Vamos ver como dançam os outros.
- Pois sim,
vamos – concordou ele, e pôs-se a olhar, sentado junto dela, com o rosto
pálido; os olhos azuis que tinham a expressão pensativa do avô observavam os
saracoteios dos enfermos disfarçados, no salão e na biblioteca. A Irmã Muda
saltitava com o Joãozinho Azul; a sra. Salomon, fantasiada de cavalheiro
engalanado, de casaca e colete branco, com uma camisa engomada de peito
saliente, com um bigode pintado e com um monóculo, girava nos saltinhos altos
dos seus sapatos de verniz, que, inauturalmente, saíam por baixo das calças de
homem; seu par era o pierrô, cujos lábios luziam num vermelho de sangue no
rosto caiado, e cujos olhos se pareciam com os de um coelho albino. O grego de
mantilha requebrava suas pernas harmoniosas, revistas de ceroulas violeta, em
torno de Rasmussen, decotado e resplandecente de lantejoulas escuras. O
promotor público, no seu quimono, a sra. Wurmbrand e o jovem Gänser dançavam
juntos, a três, mantendo-se abraçados, ao passo que a sra. Stör bailava com a
sua vassoura que apertava contra o coração, e cujas crinas acariciava como se
fossem a cabeleira hirsuta de um homem.
- Vamos, sim
– repetiu Hans Castorp mecanicamente. Falavam baixinho, no meio dos sons do
piano. – Vamos sentar-nos aqui e olhar como num sonho. Para mim, isto é um
sonho, sabes? estarmos sentados assim –
como um sonho singularmente profundo, pois é necessário dormir muito
profundamente para sonhar dessa forma... Eu quero dizer: é um sonho bem
conhecido, sonho de todo tempo, longo, eterno, sim, estar sentado perto de ti
como agora, olha, é a eternidade.
- Poeta! – disse ela. – Burguês, humanista e poeta – eis um alemão ao completo, como deve
ser.
- Eu não acredito que nós sejamos de tudo e
nada como devemos ser – replicou ele.
– Sob nenhum aspecto. Talvez não passemos de filhos enfermiços da vida, simplesmente.
- Bonita palavra. Diz-me então... Não teria
sido difícil sonhar esse sonho mais cedo. É um pouco tarde que o Senhor resolve
endereçar a palavra a seu pobre servo.
- Por que essas palavras? – disse ele. – Por que falar? Falar, discorrer, é uma
coisa bem republicana, eu o concedo. Mas eu duvido que isso seja poético ao
mesmo grau. Um de nossos hóspedes, que se tornou um pouco meu amigo, Senhor
Settembrini...
- Ele lança sobre ti algumas palavras.
- Bem, é um grande falador, sem dúvida, ele
gosta muito mesmo é de recitar belos versos – mas esse homem é um poeta?
- Eu não me lembro sinceramente de ter tido
o prazer de conhecer esse cavalheiro.
- Eu o conheço bem.
- Ah! Tu o conheces?
- Como? Era uma frase indiferente, a que eu
disse aqui. Eu, tu o percebes bem, eu não falo habitualmente o Francês. No entanto,
para contigo eu prefiro essa língua à minha, pois para mim falar Francês é falar
sem falar, de alguma forma – sem responsabilidade, ou como nós falamos no
sonho. Tu compreendes?
- Um pouco.
- É suficiente... falar – continuou Hans
Castorp – pobre paixão! Na eternidade, a
gente não fala nada. Na eternidade, tu sabes, a gente faz como se imitando um
pequeno porco: a gente pende a cabeça para trás e fecha os olhos.
- Nada mal, isso! Tu estás na tua casa na
eternidade, sem nenhuma dúvida, tu a conheces a fundo. É necessário admitir que
tu és um pequeno sonhador um tanto curioso.
- E ainda – disse Hans Castorp –, se eu tivesse falado mais cedo, teria
sido necessário que eu te tratasse por “a senhora”!
- Bem, tens a intenção de me tratar por “tu”
para sempre?
- Mas claro. Eu sempre te tratei por “tu” e
assim te tratarei eternamente.
- É um pouco forte, por exemplo. Em todo
caso, tu não terás por muito tempo a oportunidade de me tratar por “tu”. Eu vou
partir.
A palavra
custou a lhe penetrar a consciência. Em seguida, ele sobressaltou-se, lançando
em redor de si olhares confusos, como faz quem é despertado de repente. Sua
conversa desenvolvera-se com certa lentidão, porque Hans Castorp falava o
francês de modo lerdo, como que numa meditação vacilante. O piano, que se
calara durante algum tempo, voltou a ressoar, agora sob as mãos do rapaz de Mannheim,
que substituíra o jovem eslavo e colocara na estante um álbum de músicas. A
srta. Engelhart estava sentada a seu lado e virava as folhas. A assistência do
baila já se tornara menos numerosa. Grande parte dos pensionistas parecia ter
adotado a posição horizontal [no contexto da história, significa que se
recolheram ao repouso]. Ninguém mais se achava nas poltronas à sua frente. Na
biblioteca, alguns jogavam cartas.
- Que vais
fazer? – perguntou Hans Castorp, consternado…
- Eu vou
partir – repetiu ela, aparentemente surpreendida pelo seu aspecto estarrecido.
- Não é
possível – disse ele. – Estás apenas brincando.
- Nem um
pouquinho. Estou falando com a mais absoluta seriedade. Partirei.
- Quando?
- Ora,
amanhã. Depois do jantar.
Um cataclismo
de vastas dimensões produziu-se nele. Depois, disse:
- Aonde vais?
- Muito longe
daqui.
- A
Daghestan?
- Tu não estás mal instruído. Pode ser, por
enquanto…
- Estás,
então, curada?
- Quanto a isso... não. Mas Behrens acha
que no momento não se pode fazer grande coisa aqui. É porque eu vou arriscar uma pequena mudança de ar.
- De maneira
que voltarás?
- Isto não se
sabe. Sobretudo não sei quando. – Quanto
a mim, tu sabes, eu amo a liberdade antes de tudo e notadamente a de escolher
meu domicílio. Tu não compreendes apenas o que é isso: ser obcecada pela
independência. É de minha raça, talvez.
- E teu marido em “Daghestan” está de
acordo? Tua liberdade?
- É doença que me a restitui. Já é a
terceira vez que venho a esse lugar. Eu passei um ano aqui, dessa vez. É possível
que eu volte. Mas aí então tu estarás bem longe há muito tempo.
- Achas,
Clawdia?
- Meu primeiro nome também! Realmente tu levas
bem a sério os costumes do Carnaval.
- Será que
sabes até que grau estou doente?
- Sim... não... como a gente sabe estas coisas
aqui. Tu tens uma pequena mancha úmida por dentro e um pouco de febre, não é?
- Trinta e sete e oito ou 9 à tarde – explicou
Hans Castorp. – E tu?
- No meu caso, tu sabes, é um pouco mais
complicado... não tão simples.
- Há alguma coisa nesse ramo das ciências
humanas chamado medicina – Disse Hans Castorp – que a gente chama obstrução tuberculosa dos vasos linfáticos.
- Ah! Tu apontaste, meu bem, a gente logo vê.
- E tu?… Perdão. Deixa que agora te
pergunte uma coisa, com insistência e em alemão: naquele dia, quando me
levantei da mesa, para ir ao exame médico, faz seis meses… Tu te voltaste para
me olhar… Ainda te lembras?
- Que pergunta! Já faz 6 meses.
- Tu sabias
aonde eu ia?
- Certamente.
- Soubeste do
Behrens?
- Sempre este Behrens!
- Oh, ele representou tua pele de maneira
totalmente exata. É também um viúvo que possui um serviço de café bastante
notável... Eu acredito que ele conhece teu corpo não somente como médico, mas
também como adepto de uma outra disciplina das ciências humanas.
- Tu decididamente tens razão de dizer que
falas como em sonho, meu amigo.
- Que seja... Deixa-me sonhar de novo após
ter me despertado tão cruelmente por esse alarme da tua partida. Sete meses sob
teus olhos...e ao presente, ou em realidade eu te conheci, tu me falas em
partida.
- Repito que poderíamos ter conversado mais
cedo.
- Terias
gostado?
- Eu? Tu não me escaparás, meu pequeno.
Trata-se de teus interesses. Tu estavas muito tímido para se aproximar de uma
mulher a quem tu falas em sonho agora, ou será que havia alguém que te impediu?
- Eu te disse. Eu não te tratarei mais por “senhora”.
- Falsário! Responde então – este senhor,
bom orador, este italiano que deixou a noite – o que ele te lançou?
- Eu não entendi absolutamente nada do que
tu quiseste dizer. Incomodo-me muito pouco deste senhor, quando meus olhos te
vêem. Mas tu esqueces... não teria sido tão fácil te conhecer nesse mundo.
Havia ainda meu primo com quem estava ligado e que se inclina muito pouco a se
divertir aqui: ele não pensa em nada a não ser voltar às planícies para
tornar-se soldado.
- Pobre diabo. Ele está, de fato, mais
doente do que ele pensa. Teu amigo italiano de resto não vai muito bem não.
- Ele mesmo o disse. Mas meu primo... Isso é
verdade? Tu me apavoras.
- É bem possível que ele morra, se tentar
ser soldado nas planícies.
- Que ele vá morrer. A morte. Palavra
terrível, não é? Mas é estranho, esta palavra não me impressiona tanto hoje em
dia. Era uma forma de falar bem convencional, quando dizia: “tu me apavoras”. A
ideia da morte não me apavora. Ela me deixa tranquilo. Eu não tenho piedade –
nem de meu bom Joachim nem de mim mesmo, entendendo que ele talvez vá morrer.
Se for verdade, seu estado parece muito com o meu e eu não o acho particularmente
imponente. Ele está moribundo, e eu estou apaixonado, bem...Tu falaste com meu
primo no atelier de fotografia íntima [no caso, radiografia], antessala, lembras-te?
- Lembro-me um pouco.
- Então, nesse dia Behrens fez teu retrato transparente.
- Mas sim.
- Meu Deus! E tu o tens contigo?
- Não, eu o tenho no meu quarto.
- Ah, no teu quarto. Quanto ao meu, o tenho
sempre dentro da carteira. Queres que eu mostre-o a ti?
- Muito obrigada. Minha curiosidade não é
invencível. Este seria um aspecto muito inocente.
- Eu vi teu retrato exterior. Eu adoraria
mais ainda ver teu retrato interior que está fechado dentro do teu quarto... Deixa-me
pedir outra coisa! Talvez um senhor russo que mora na cidade venha te ver. Quem
é? Com que objetivo este homem vem vê-la?
- Tu és belamente forte em espionagem, eu o
confesso. E bem, eu respondo. Sim, é um compatriota sofrente, um amigo. Eu o
conheci em uma outra estação balneária, já faz alguns anos. Nossa relação?
Vamos lá: nós tomamos chá juntos, nós fumamos dois ou três “papiros”, e nós
conversamos, nós filosofamos, nós falamos do homem, de Deus, da vida, da moral,
de milhares de coisas. Aí está. Estás satisfeito?
- Da moral também! E o que é que pensaste,
de fato, sobre a moral, por exemplo?
- A moral? Isso te interessa? Bem, parece
que será necessário procurar a moral não na virtude, quer dizer, não na razão,
na disciplina, nos bons modos, na honestidade – mas sobretudo no contrário, eu
quero dizer: no pecado; se lançando ao perigo, ao que é nocivo, àquilo que nos
consome. Parece-nos que é mais moral se perder e mesmo se deixar debilitar do
que se conservar. Os grandes moralistas não são virtuosos, mas aventureiros no
mal, nos vícios, nos grandes pecados que tentam nos inclinar cristianamente
diante da miséria. Tudo isso deve te desagradar muito, não é?
Ele
permanecia calado. Estava ainda sentado da mesma forma de antes, com os pés
cruzados muito para trás, sob o assento. Inclinava-se para frente em direção à
mulher reclinada com o tricórnio de papel. Tinha entre os dedos a lapiseira que
pertencia a ela. Com os olhos tão azuis como os de Hans Lorenz Castorp, o jovem
fitava a sala que se esvaziara. Os pensionistas haviam-se dispersado. O piano,
no canto diagonalmente oposto, não deixava ouvir senão alguns nos suaves e
espaçados, produzidos com uma mão só pelo enfermo de Mannheim, a cujo lado se
achava a professora, folheando um tomo de músicas que tinha sobre os joelhos.
Quando se interrompeu a conversa entre Hans Castorp e Clawdia Chauchat, o
pianista cessou de tocar, deitando no colo também a mão que até então
acariciava o teclado. A srta. Englehart prosseguiu estudando as notas. Os
quatro únicos remanescentes da festa carnavalesca conservaram-se imóveis. Os
silêncio prolongou-se por alguns minutos. Sob o seu peso baixaram-se lenta e
cada vez mais profundamente as cabeças do par sentado junto do piano, a do
jovem de Mannheim em direção ao piano, e a da srta. Engelhart para o álbum de
músicas. Por fim, como se se tivessem posto secretamente de acordo,
levantaram-se suavemente, nas pontas dos pés, e evitando lançar um olhar para o
outro canto da sala, com a cabeça baixa e os braços rigidamente pendurados,
sumiram-se o rapaz de Mannheim e a professora, pela sala de correspondência.
- Todo mundo se retira – disse Madame Chauchat. – Eram os últimos; já é tarde. Bem, a
festa de Carnaval acabou. – E ergueu os braços a fim de tirar com as duas
mãos o gorro de papel do cabelo arruivado, cuja trança cercava a cabeça qual
uma coroa. – Sabe as consequências,
senhor.
Mas Hans Castorp
fez que não, com os olhos fechados, sem modificar, de resto, a sua posição.
- Jamais, Clawdia – respondeu. – Jamais eu te trataria por “senhora”,
jamais na vida nem na morte, se é que se pode dizer assim; deveria ser
possível. Essa forma de se dirigir a uma
pessoa, que é aquela do Ocidente culto e da civilização humanitária, me parece
fortemente burguêsa e pedante. Para quê, no fundo, a formalidade? A formalidade,
é a pedantice ela mesma! Tudo o que tu disseste a respeito da moral, tu e teu compatriota
sofrente – tu queres seriamente que isso me surpreenda? Por qual tipo de idiota
tu me tomas? O que tu pensas de mim?
- É um sujeito que não dá muito a pensar. Tu
és um bom homem conveniente, de boa família, de desejos tênues, discípulo dócil
de seus preceptores e que voltará logo às planícies, para esquecer
completamente que falou em sonho aqui e para ajudar seu grande país com seu
trabalho honesto sobre os canteiros. Eis tua fotografia íntima, feita sem aparelho. Achas que estou certa,
sim?
- Faltam-lhe alguns detalhes que Behrens
teria encontrado.
- Ah, os médicos de hoje em dia, se eles
soubessem….
- Tu falas como o Senhor Settembrini. E
minha febre? De onde ela vem?
- Bem, é um incidente sem consequências
graves e que passará rápido.
- Não, Clawdia, tu bem sabes que o que dizes aqui não é verdade, e tu o dizes sem convicção, eu estou certo disso. A
febre do meu corpo e os batimentos do meu coração arrasam e fazem tremer os
meus membros, é o contrário de um incidente, pois não é outra coisa – e seu
rosto pálido, com os lábios trêmulos, inclinou-se ainda mais para o rosto da
mulher – senão o meu amor por ti, sim,
esse amor que me possuiu no instante em que meus olhos te viram, ou, sobretudo,
em que eu reconheci, quando eu te reconheci – e foi ele, evidentemente, que me
guiou a esse lugar...
- Que delírio!
- Oh! O amor não é nada se não for um
delírio, uma coisa insensata, uma defesa e uma aventura pelo mal. Por outro
lado, é uma banalidade agradável, perfeita para que façamos dos nossos planos
pequenas canções possíveis. Mas quanto a isso de eu ter te reconhecido e
reconhecido em ti meu amor – sim, é verdade, eu já te conhecia, antigamente, tu
e teus olhos maravilhosamente oblíquos e tua boca e tua voz, com aquela tua
fala – já uma vez, quando eu era estudante, eu te pedi teu lápis, para enfim te
conhecer mundanamente, porque eu te amava irracionalmente, e é isso, sem dúvida
são meu antigo amor por ti essas manchas que Behrens achou no meu corpo, e que
indicam também que estava mal…
Seus dentes
batiam. Enquanto ia divagando, retirou um pé de sob o assento rangente. Ao
avançar esse pé, tocou o chão com o outro joelho, de maneira que se ajoelhava
diante dela, com a cabeça baixa e o corpo todo trêmulo. – Eu te amo – balbuciou – eu
te amei todo o tempo, pois tu és o sentido da minha vida, meu sonho, meu
destino, meu eterno desejo...
- Vamos, vamos! – disse ela. – Se teus preceptores te vêem...
Mas Hans
Castorp sacudiu a cabeça, desolado, com o rosto junto ao tapete, e respondeu:
- Eu não me importaria, eu não me importo
com Carducci e a República eloquente e o progresso humano no tempo, pois eu te
amo!
Ela
acariciou-lhe suavemente com a mão os cabelos aparados da nuca.
- Pequeno burguês! – disse. – Belo burguês de pequena mancha úmida. É
verdade que tu me amas tanto?
E arrebatado
por esse contato, já sobre ambos os joelhos, com a cabeça deitada para trás e
com os olhos fechados, continuou ele a falar:
- Oh, o
amor, tu sabes... O corpo, o amor, a morte, esses três não se separam. Pois o
corpo é a doença e a volúpia, e é ele que faz a morte, sim, eles são sensuais
os dois, o amor e a morte, e seus terrores e sua grande magia! Mas a morte, tu
compreendes, é, de um lado, uma coisa difamada, insolente, que nos faz corar e
nos envergonha; e por outro lado é uma pulsação muito solene e muito majestosa
– maior que a vida risonha de ganhar dinheiro e de encher a barriga – muito mais
venerável que o progresso que tagarela pelo tempo – porque ela é a história e a
nobreza e a piedade e o eterno e o sagrado que nos faz tirar o chapéu e andar
com as pontas dos pés... Mesmo o corpo, ele também, e o amor do corpo, são uma
relação indecente e prejudicial, e o corpo de superfície avermelhada e pálida
por medo e humilhação de si mesmo. Mas também ele é uma grande glória adorável,
imagem miraculosa da vida orgânica, santa maravilha da forma e da beleza, e o
amor para ele, para o corpo humano, é mesmo um interesse extremamente
humanitário e um poder mais educativo que toda a pedagogia do mundo!... Oh,
encantadora beleza orgânica que não se compõe nem de tintura a óleo nem de
pedra, mas de matéria viva e corruptível, cheia de segredo febril da vida e da
podridão! Vê a simetria maravilhosa do edifício humano, os ombros e as ancas e
os seios floridos de uma parte à outra sobre o peito, e as costelas arrumadas
por pares, e o umbigo ao meio na moleza do ventre, e o sexo obscuro entre as
coxas! Olha as omoplatas se movimentarem sobre a pele brilhante do dorso, e a
coluna que desce na direção das nádegas frescas e luxuriantes, e os grandes
galhos de vasos e nervos que passam do tronco aos ramos dos pulmões, e como a
estrutura dos braços correspondem àquela das pernas. Oh, as doces regiões da
junção interior do cotovelo e do joelho com sua abundância de delicadeza
orgânica sobre suas almofadas de carne! Que festa imensa acariciar esses
lugares deliciosos do corpo humano! Festa para morrer sem se queixar depois!
Sim, meu deus, deixa-me sentir o cheiro da pele da articulação, sobre a qual a
engenhosa cápsula articula secretamente seu óleo deslizante! Deixa-me tocar
devotamente de minha boca a Artéria do fêmur que bate em frente à coxa e que
divide mais abaixo as duas artérias da tíbia! Deixa-me sentir a exalação de
teus poros e apalpar teus pelos, imagem humana de água e de albumina, destinada
à anatomia do túmulo, e deixa-me perecer, os meus lábios nos teus!
Não abriu os
olhos, depois de ter terminado de falar. Permaneceu sem se mover, com a cabeça
deitada para trás, estendendo as mãos com a lapiseira de prata, estremecendo e
vacilando sobre os joelhos. Ela disse:
- Tu és realmente um galã que sabe implorar
de uma maneira profunda, no Alemão!
E lhe pôs na
cabeça o gorro de papel.
- Adeus, meu príncipe de Carnaval! Tu terás
uma crise de febre essa noite, eu ta predigo.
Com essas palavras,
resvalou da cadeira, deslizou pelo tapete, rumo à porta, sob cujo umbral
hesitou um instante, meio voltada, levantando um dos braços nus, com a mão a
repousar no gonzo. Por cima do ombro disse baixinho:
- Não te esqueças de me devolver meu lápis.
E saiu.
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Excurso: no dia seguinte, antes de partir, Clawdia deu a Hans sua radiografia.
Mann, Thomas.
A Montanha Mágica. Trad. Herbert
Caro. – 2ª ed. – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000 (p. 457-469).
Com suporte
da tradução dos trechos em Francês de Mariana Silveira em: http://agarrandooconceito.blogspot.com.br/2009/03/montanha-magica-thomas-mann-trechos-em.html
Com imagens do filme Der Zauberberg (1982), ao qual assiste quem quiser (Charles Aznavour pra interpretar Leo Naphta é inconcebível! Justamente Naphta!)
5 comentários:
Muitíssimo obrigado! A Montanha Mágica está sendo um belo desafio intelectual. Eu estava contente em conseguir acompanhar até as partes mais “técnicas” do livro, que apareciam nas extensas discussões e divagações. Foi desanimador encontrar um longo trecho (logo este diálogo tão esperado!) em uma língua que não domino. Após ler a tua/sua (não entrarei na discussão sobre pronomes) versão totalmente em português voltou-me a energia para prosseguir a jornada pela Montanha.
Excelente trabalho, mais uma vez, obrigado!
Obrigada!
Muito obrigado! Li "A montanha mágica" há dois anos e o estou relendo agora. Na primeira vez que o li, não o li, de fato, mas o devorei - o livro simplesmente me fascinou. Tentei compreender o diálogo entre Castorp e Chauchat com base no meu francês precário, mas não tive muito sucesso. Agora estou relendo o livro - com mais calma, saboreando-o - e estou quase chegando ao capítulo "Noite de Walpurgis". Resolvi procurar uma tradução do trecho em francês e encontrei essa excelente iniciativa. Aliás, inadmissível que a Nova Fronteira não tenha incluído a tradução desse trecho em sua edição do livro.
Obrigado!!!
Obrigado!!!
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