Para mi amiga Cristina Poblete
Não foi num 11 de setembro de 1973, aquele em que Santiago do Chile acordou assustado com o terror dos tanques e soldados na rua, dos caças da força aérea dando rasantes e fazendo chover bombas sobre o palácio de La Moneda?
Não foi essa uma tática de Estado Bandido (rough state), os EUA, que desde o primeiro momento das eleições livres e democráticas do presidente socialista Salvador Allende, ordenou que a CIA sabotasse a qualquer custo seu governo?
Aquele foi o primeiro 11 de setembro. E é para ele que agora escrevo...
Para o 11 de setembro que durou 17 anos e arrastou consigo mais de 30 mil mortos e desaparecidos. Que fez um país amargar a experiência neoliberal dos chicago boys e de Lady Tatcher como se fosse um laboratório onde o povo eram os ratos.
Que torturou e assassinou covardemente.
Que usou o Estadio Nacional como campo de concentração. Que neste mesmo estádio foi mantido preso Víctor Jara, músico, poeta e diretor de teatro e sem sombra de dúvida um dos maiores ícones da cultura chilena. Víctor foi assassinado cinco dias depois do golpe.
Escrevo para aquele que disse que la guitarra tiene sentido y razón. Para o Víctor que aprendeu com Maiakóvski que a poesia pode ser um arsenal de guerra. Para o herdeiro direto, junto com Ángel e Isabel Parra, do legado de Violeta Parra. Um cantor que foi de importância decisiva na campanha que elegeu Allende, fazendo inúmeras apresentações musicais e teatrais. Que foi empossado embaixador cultural pelo presidente.
Pongo en tus manos abiertas, gravado junto com Quilapayún, 1969 |
Escrevo para uma Amanda que caminhava pelas ruas molhadas para encontrar um Manuel.
Para os longínquos povoados que portavam a estrela da esperança.
Para os camponeses que entoaram uma oração clamando a um Deus bélico e justiceiro para que lhes abençoe os fuzis ao combaterem quem os oprime.
Para Miguel Enríquez, para que ele possa caminhar novamente pelas ruas de Santiago.
Para a niñita com o peito florescido de cores de amor.
Também para os padres que foram jogados em valas-comuns.
Para o poeta senador que morreu de tristeza, ou envenenado, doze dias depois do 11 de setembro. Escrevo para os livros do poeta que foram saqueados de sua casa em Valparaíso e queimados.
Escrevo para o presidente que tinha em suas mãos tão somente um AK-47 e um mandato quando se trancou no Palácio de La Moneda naquela manhã, há exatos 40 anos. Ali se entrincheirou com sua guarda pessoal decidido a resistir e enquanto os aviões e os tanques atiravam contra o prédio decidiu falar ao povo chileno pela última vez através de uma estação de rádio que funcionava ali mesmo. Não tinha ele mais, naquele instante, a mesma liberdade de dizer o que disse numa conferência na Universidade de Guadalajara, como se estivesse falando a uma classe de profissionais brasileiros de hoje:
"...há muitos médicos que não compreendem que a saúde se compra e que há milhares e milhares e milhares de homens e mulheres na América Latina que não podem comprar a saúde. (...) Para que termine esta realidade brutal, requer-se um profissional comprometido com a mudança social. Profissionais que não procurem engordar nos cargos públicos nas capitais de nossas pátrias. Que a obrigação de quem estudou aqui é não esquecer que esta é uma universidade do Estado paga pelos contribuintes! Que a imensa maioria deles são os trabalhadores e que por desgraça, nesta universidade e como nas universidades de minha pátria, a presença de filhos camponeses e de operários atinge um baixo nível mesmo assim. (...) E respeitamos o pensamento cristão quando esse pensamento cristão interpreta o verbo do Cristo que expulsou os mercadores do Templo..."
Foi preciso tanques e aviões e exércitos para abater o homem que era uma fortaleza. Suas últimas palavras, antes de cometer suicídio, foram apertadas pela pressão daqueles que ele sabia que mergulhariam o povo do Chile num labirinto de mortes e violações dos direitos humanos. Assim foi seu pronunciamento:
"Me dirijo, sobretudo, à modesta mulher de nossa terra, à camponesa que acreditou em nós; à operária que trabalhou mais, à mãe que soube de nossa preocupação pelas crianças. Me dirijo aos profissionais da pátria, aos profissionais patriotas, aos que há dias estiveram trabalhando contra a sedição auspiciada pelos Sindicatos profissionais, sindicatos de classe para defender também as vantagens que uma sociedade capitalista dá a uns poucos. Me dirijo à juventude, àqueles que cantaram, entregaram sua alegria e seu espírito de luta. Me dirijo ao homem do Chile, ao operário, ao camponês, ao intelectual, àqueles que serão perseguidos... porque em nosso país o fascismo já esteve há muitas horas presente nos atentados terroristas, explodindo as pontes, cortando a linha férrea, destruindo os oleodutos e os gasodutos, frente ao silêncio dos que tinham a obrigação de cuidá-los: estavam comprometidos. A história os julgará."
Mas, acima de tudo, escrevo para os que eu não citei os nomes, para aqueles que não tiveram nome nem rosto, nem sepultura. Para os aglomerados, os concentrados, para aqueles cinco mil, para os mais de 30 mil, para todos em qualquer parte do mundo, de ontem, de hoje e, enquanto estes não possam ser redimidos, enquanto os opressores vençam e escrevam a história, escrevo também para os do futuro.
¡PARA QUE NUNCA MÁS EN CHILE!
Estádio
do Chile
Somos
cinco mil aqui
nesta pequena parte da cidade.
Somos cinco mil.
Quantos somos no total
nas cidades e em todo o país?
Só aqui,
dez mil mãos que semeiam
e fazem andar as fábricas.
Quanta humanidade
com fome, frio, pânico, dor,
pressão moral, terror e loucura.
nesta pequena parte da cidade.
Somos cinco mil.
Quantos somos no total
nas cidades e em todo o país?
Só aqui,
dez mil mãos que semeiam
e fazem andar as fábricas.
Quanta humanidade
com fome, frio, pânico, dor,
pressão moral, terror e loucura.
Seis
dos nossos se perderam
no espaço das estrelas.
Um morto, um golpeado como jamais pensei
se poderia golpear a um ser humano.
Os outros quatro quiseram livrar-se
de todos os temores,
um saltando ao vazio,
outro golpeando a cabeça contra um muro
mas todos com o olhar fixo na morte.
Que espanto produz o rosto do fascismo!
Levam até o fim seus planos com precisão sagaz
sem nada lhes importar.
O sangue para eles são medalhas.
A matança é um ato de heroísmo.
É este o mundo que criaste, Deus meu?
Para isto teus sete dias de surpresa e de trabalho?
Nestas quatro muralhas só existe um número
que não progride.
Que lentamente desejará mais a morte.
no espaço das estrelas.
Um morto, um golpeado como jamais pensei
se poderia golpear a um ser humano.
Os outros quatro quiseram livrar-se
de todos os temores,
um saltando ao vazio,
outro golpeando a cabeça contra um muro
mas todos com o olhar fixo na morte.
Que espanto produz o rosto do fascismo!
Levam até o fim seus planos com precisão sagaz
sem nada lhes importar.
O sangue para eles são medalhas.
A matança é um ato de heroísmo.
É este o mundo que criaste, Deus meu?
Para isto teus sete dias de surpresa e de trabalho?
Nestas quatro muralhas só existe um número
que não progride.
Que lentamente desejará mais a morte.
Mas tão rápido me golpeia a consciência
e vejo esta maré sem pulso
e vejo o pulso das máquinas
e os militares mostrando seu rosto de matrona
cheia de doçura.
E México, Cuba e o mundo?
Que gritem esta ignomínia!
Somos dez mil mãos
a menos que não produzem.
Quantos somos em toda a pátria?
O sangue do companheiro Presidente
golpeia mais forte que bombas e metralhadoras.
Assim golpeará nosso punho novamente.
Canto, que mal me sais
quando tenho que cantar, espanto.
Espanto como o que vivo
como o que morro, espanto.
De ver-me entre tantos e tantos
momentos de infinito
em que o silêncio e o grito
são as metas deste canto.
O que vejo nunca vi.
O que senti e o que sinto
farão brotar o momento...
Víctor Jara (último poema escrito antes de ser assassinado)
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