quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Príncipe Míchkin

Entre outras coisas pôs-se a meditar como em seu estado epiléptico, quase no limiar do próprio ataque (se é que o próprio ataque aconteceu na realidade), chegara a um grau em que subitamente, em meio à tristeza, à escuridão da alma, à pressão, seu cérebro pareceu inflamar-se por instantes e todas as suas forças vitais retesaram-se ao mesmo tempo com um ímpeto incomum. A sensação de vida, de autoconsciência quase decuplicou nesses instantes que tiveram a duração de um relâmpago. A mente, o coração foram iluminados por uma luz extraordinária; todas as inquietações, todas as suas dúvidas, todas as aflições pareceram apaziguadas de uma vez, redundaram em alguma paz superior, plena de uma alegria serena, harmoniosa, e de esperança, plena de razão e de causa definitiva. Mas esses momentos, esses lampejos ainda eram apenas um pressentimento daquele segundo definitivo (nunca mais que um segundo) após o qual começava o próprio ataque. Esse segundo, é claro, era insuportável. Refletindo mais tarde sobre esse instante, já em estado sadio, ele dizia freqüentemente de si para si: que todos esses raios e relâmpagos da suprema auto-sensação e autoconsciência e, portanto, da “suprema existência” não passam de uma doença, de perturbação do estado normal e, sendo assim, nada têm de suprema existência, devendo, ao contrário, ser incluídos na mais baixa existência. E, não obstante, ainda assim ele acabou chegando a uma conclusão extremamente paradoxal: “Qual é o problema de ser isso uma doença? – decidiu finalmente. – Qual é o problema se essa tensão é anormal, se o próprio resultado, se o minuto da sensação lembrada e examinada já em estado sadio vem a ser o cúmulo da harmonia, da beleza, da conciliação e de fusão extasiada e suplicante com a mais suprema síntese da vida?”. Essas expressões obscuras lhe pareciam muito compreensíveis, ainda que excessivamente fracas. De que isso era realmente “beleza e súplica”, de que isso era realmente “ a suprema síntese da vida” ele não podia nem duvidar, e aliás não podia nem admitir dúvidas. É que não foram algumas visões que naquele momento lhe apareceram em sonho, como provocadas por haxixe, por ópio ou vinho, que humilham a razão e deformam a alma, visões anormais e inexistentes. Sobre isso ele podia julgar com bom senso ao término do estado doentio. Esses instantes eram, justamente, só uma intensificação extraordinária da autoconsciência – caso fosse necessário exprimir esse estado por uma palavra –, da autoconsciência e ao mesmo tempo da auto-sensação do imediato no mais alto grau. Se naquele segundo, isto é, no mais derradeiro momento de consciência perante o ataque ele arranjasse tempo para dizer com clareza e consciência a si mesmo: “Sim, por esse instante pode-se valer a vida toda!” – então, é claro, esse momento em si valia a vida toda. Aliás ele não defendia a parte dialética da sua conclusão: o embotamento, a escuridão da alma, o idiotismo se apresentavam diante dele como uma nítida conseqüência desses “minutos supremos”. A sério, é claro, ele não se meteria a discutir. Na conclusão, isto é, na sua avaliação desse instante, havia sem dúvida um erro, mas a realidade da sensação o embaraçava um pouco, apesar de tudo. O que efetivamente fazer com a realidade? Note-se que isso mesmo já acontecia, note-se que ele mesmo já conseguira dizer para si mesmo, naquele mesmo segundo, que esse segundo, por uma felicidade infinda que ele sentia plenamente, talvez pudesse mesmo valer toda a vida. “Nesse momento – como dissera certa vez a Rogójin, em Moscou, nos momentos em que então estavam juntos –, nesse momento me fica de certo modo compreensível a expressão insólita: não haverá demora. Provavelmente – acrescentou ele, sorrindo – trata-se daquele mesmo segundo em que não houve tempo de derramar-se o vaso emborcado com a água do epiléptico Maomé que, não obstante, no último segundo conseguiu contemplar todas as habitações de Alá.” Sim, em Moscou ele conseguira se entender freqüentemente com Rogójin e falar não só desse assunto. “Há pouco Rogójin disse que naquela época eu era o seu irmão; ele disse isso pela primeira vez hoje” – pensou o príncipe de si para si.

DOSTOIÉVSKI, Fíodor M. O Idiota. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2002 (2ª Edição, 3ª Reimpressão), p. 261-262.

Cenas da minissérie russa "O Idiota", de 2003:


Um comentário:

Nadie disse...

É, deve ser por conta desse trecho que deram o nome de Dostoievsky à síndrome dos idiots savants...