Agora eu entendi qual é a sensação esquisita que a leitura de Ordem e Progresso, do mestre de Apipucos, me causava e eu não fazia idéia do nome dela. É o tipo de sensação que só se compreende quando, ao ler o livro que trata da transição Império-República no Brasil, você hoje se depara com coisas que lhe dão o mesmo gosto que a madeleine de Proust em relação ao passado. Aliás, Proust não é citado aqui de graça, já que o próprio Gilberto Freyre admite pretender fazer, nas entrelinhas, de Ordem e Progresso a Em busca do tempo perdido dos 1870-1920 brasileiros. Se eu tiver paciência escreverei um texto melhor sobre isso.
Pois bem. A sensação, dizia eu, agora sei qual é. É a mesma que Úrsula Buendía, a matriarca de Cem Anos de Solidão, começa a ter quando fica muito velha: a sensação de que o tempo está voltando.
Pelos textos de Reinaldo Azevedo e outros, e os comentários do pessoal nos seus blogues, dá pra se tirar uma medida do que eu digo. Em tempo: o livro de Freyre é recheado de depoimentos de pessoas que viveram os últimos decênios do Império e os primeiros da República.
Agora eu imagino o quanto foi difícil, ou mesmo contraditório, para alguns depoentes de Ordem e Progresso, aceitar a abolição da escravidão. Como diz Turuna Tântalo ao exemplificar as reações de quem defende hoje o latifúndio brasileiro, "onde já se viu dar terra a pequenos produtores?". Idem para "onde já se viu escravo liberto?", em 12 de maio de 1888. Reinaldo Azevedo diz que o direito à propriedade está na Lei. A escravidão também estava. O avatar da Veja ainda diz que o latifúndio é o melhor para a economia brasileira - é ela que fornece as maiores divisas, no agronegócio, para o país. O latifúndio na mão-de-obra escrava do mesmo jeito.
Esse é o tempo que volta, sobretudo em momentos de crise. Quem ouviu o podcast do Jerimum Beta (aqui e aqui) sabe que o anúncio do fim do mundo é sempre associado à transmutação de valores quase sempre impensáveis para o establishment de uma cultura ou sociedade. Essa mudança, quando surge em, digamos assim, "prenúncios pacíficos", quase sempre é condenada, impedida de alguma forma. O problema é que quando ela volta, aí sim ela se apresenta de maneira horrível, sem nenhum semblante pacificador. É assim que a reforma agrária, defendida de longa data por muitos, foi sempre postergada para, depois, voltar de alguma forma com as cenas horríveis durante o Jornal Nacional de loucos fanáticos derrubando cercas, quebrando prédios públicos, bloqueando estradas num melhor retrato de fim dos tempos jamais pintado por Bosch ou por Peter Bruegel. Quem não diria olhando pra isso: meu Deus, que mundo é esse?!
A questão é quando tudo se apresenta sob o manto da crise. Krisis, na cultura grega, é o momento que antecede o julgamento de uma situação - julgar, eu julgo em grego se diz krino. Krisis é, portanto, o impasse. O instante que põe tudo em suspensão até que se decida algo. Quem duvida que foi uma crise gigante a vivida pelos brasileiros do 15 de novembro de 1889, já precedida pelo 13 de maio de 1888? Quem se lembra do pânico instaurado nas elites e do "eu tenho medo!", de Regina Duarte, na campanha que elegeu Lula, em 2002?
Não sei se estou atingindo o alvo com esses exemplos, mas repito: lendo o incrível livro de Gilberto Freyre, é exatamente isso. Não há nada de excepcionalmente novo, é tudo voltando com outra cara. O conteúdo é diferente, mas a forma permanece.
Adendo para futuro-possível-texto: Freyre, ao falar desse momento difícil da história brasileira, se mostra partidário da ideologia de que o Brasil é um país ordeiro. Não sucumbiu aos aventureirismos das repúblicas vizinhas, onde um sujeito fazia um discurso numa praça e se proclamava presidente. Do Império para a República, segundo ele e pelos documentos que analisa, quase nada mudou nos primeiros anos. E parece que assim somos pois preferimos a contemporização ao conflito, sempre. Eis onde agora habita minha pulga atrás da orelha: apesar de minha grande paixão (por que não dizer?) pelo mestre recifense, eu me pergunto o quanto de recalque se acha nesse ossuário de contemporizações...
Pois bem. A sensação, dizia eu, agora sei qual é. É a mesma que Úrsula Buendía, a matriarca de Cem Anos de Solidão, começa a ter quando fica muito velha: a sensação de que o tempo está voltando.
Pelos textos de Reinaldo Azevedo e outros, e os comentários do pessoal nos seus blogues, dá pra se tirar uma medida do que eu digo. Em tempo: o livro de Freyre é recheado de depoimentos de pessoas que viveram os últimos decênios do Império e os primeiros da República.
Agora eu imagino o quanto foi difícil, ou mesmo contraditório, para alguns depoentes de Ordem e Progresso, aceitar a abolição da escravidão. Como diz Turuna Tântalo ao exemplificar as reações de quem defende hoje o latifúndio brasileiro, "onde já se viu dar terra a pequenos produtores?". Idem para "onde já se viu escravo liberto?", em 12 de maio de 1888. Reinaldo Azevedo diz que o direito à propriedade está na Lei. A escravidão também estava. O avatar da Veja ainda diz que o latifúndio é o melhor para a economia brasileira - é ela que fornece as maiores divisas, no agronegócio, para o país. O latifúndio na mão-de-obra escrava do mesmo jeito.
Esse é o tempo que volta, sobretudo em momentos de crise. Quem ouviu o podcast do Jerimum Beta (aqui e aqui) sabe que o anúncio do fim do mundo é sempre associado à transmutação de valores quase sempre impensáveis para o establishment de uma cultura ou sociedade. Essa mudança, quando surge em, digamos assim, "prenúncios pacíficos", quase sempre é condenada, impedida de alguma forma. O problema é que quando ela volta, aí sim ela se apresenta de maneira horrível, sem nenhum semblante pacificador. É assim que a reforma agrária, defendida de longa data por muitos, foi sempre postergada para, depois, voltar de alguma forma com as cenas horríveis durante o Jornal Nacional de loucos fanáticos derrubando cercas, quebrando prédios públicos, bloqueando estradas num melhor retrato de fim dos tempos jamais pintado por Bosch ou por Peter Bruegel. Quem não diria olhando pra isso: meu Deus, que mundo é esse?!
A questão é quando tudo se apresenta sob o manto da crise. Krisis, na cultura grega, é o momento que antecede o julgamento de uma situação - julgar, eu julgo em grego se diz krino. Krisis é, portanto, o impasse. O instante que põe tudo em suspensão até que se decida algo. Quem duvida que foi uma crise gigante a vivida pelos brasileiros do 15 de novembro de 1889, já precedida pelo 13 de maio de 1888? Quem se lembra do pânico instaurado nas elites e do "eu tenho medo!", de Regina Duarte, na campanha que elegeu Lula, em 2002?
Não sei se estou atingindo o alvo com esses exemplos, mas repito: lendo o incrível livro de Gilberto Freyre, é exatamente isso. Não há nada de excepcionalmente novo, é tudo voltando com outra cara. O conteúdo é diferente, mas a forma permanece.
Adendo para futuro-possível-texto: Freyre, ao falar desse momento difícil da história brasileira, se mostra partidário da ideologia de que o Brasil é um país ordeiro. Não sucumbiu aos aventureirismos das repúblicas vizinhas, onde um sujeito fazia um discurso numa praça e se proclamava presidente. Do Império para a República, segundo ele e pelos documentos que analisa, quase nada mudou nos primeiros anos. E parece que assim somos pois preferimos a contemporização ao conflito, sempre. Eis onde agora habita minha pulga atrás da orelha: apesar de minha grande paixão (por que não dizer?) pelo mestre recifense, eu me pergunto o quanto de recalque se acha nesse ossuário de contemporizações...
2 comentários:
Cara, que bela sacada essa! Tudo volta, só que de modo terrível!
Por que não estudamos melhor nossa História??? Por que temos memória tão curta???
"Quanto mais tudo muda, mais tudo fica igual"??? Será que a gente anda, anda pra ficar no mesmo lugar???
Eu tenho medo é de caras como RA(NÃO GOSTO NEM DE ESCREVER O NOME,de revisteca como a óia...manipuladores da opinião
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