terça-feira, 11 de agosto de 2009

Dostoiévski de novo?

Sim, parece que o homem tá com tudo. A minissérie O Idiota (2003), de produção de um canal russo, acredito que foi a primeira que iniciou um interesse na própria pátria do escritor por torná-lo visível às novas gerações, que gostam cada vez mais do outro místico, Paulo Coelho. Não tenho referências muito seguras, mas me parece que fez bastante público por lá. Poderia não ter feito e não é estranho dizer isso, já que é incomum a escolha de Dostoiévski para estas montagens cinematográficas na própria Rússia, pois o grande autor nacional é Liev Tolstói, o retratista das castas, da nobreza, das cortes e dos espíritos elevados. Não dá pra explicar, porque eu mesmo não entendo essa particularidade que reside nos leitores russos, mas dizem que Dostoiévski é ainda observado com certa temeridade, suas viagens insólitas dentro dos subúrbios escuros das cidades e da alma humana são consideradas "feias", toscas (no sentido mais poético da palavra) diante da magnitude do sol resplandecente que brilha no horizonte extenso dos quase poemas epopéicos de Tolstói.

Uma prova disso é a forma da narrativa do filho de Mikhail: seus personagens falam gaguejando, não possuem linearidade plena nas enunciações, são reticentes pelo exaspero de querer comunicar algo que não conseguem, eles simplesmente deliram. E deliram mesmo. São febris, convulsivos, biliosos, doentes. No romance O Idiota, Míchkin delira tanto que sai por aí afirmando que "a Beleza salvará o mundo". E notem que não há um ponto no livro em que ele próprio abre a boca (ou um travessão) e diz isso, não há mesmo. Nós conhecemos essa frase do príncipe porque outro doido, Hippolit Tierentiev, é quem nos faz saber que Míchkin anda dizendo essas besteiras. Aglaia Ivánovna também nos dá notícia desses dizeres. Notável como um negócio tão importante para a idéia do romance e tão central para a triste figura do epiléptico príncipe Míchkin só se fica sabendo pelos outros. Não é regra, mas em Tolstói são raros personagens desse tipo. A nobreza deles não permite o acesso a certas doenças da alma ou quando permite eles buscam resolver de uma forma muito natural, isto é, toda doença espiritual é um afastamento do homem dos desígnios mais simples da existência, é uma tentativa de superação daquilo que é da natureza e isso é ruim. Por exemplo, viver próximo de tudo que é naturalmente vivo é o ideal de beleza do nobre Liévin, do romance Anna Kariênina. É quase pagão, poder-se-ia dizer. Dostoiévski chega praticamente ao mesmo resultado, só que chafurdando tanto na lama da alma dos mais desgraçados para lá inclusive encontrar alguma coisa que faz valer a pena viver para eles. Dostoiévski talvez tente levar às últimas consequências
o afastamento entre homem e natureza e nesse extremo encontrar algo tão elevado quanto a vida natural defendida pelo velho barbudo, Conde Tolstói.

Por que é que Hippolit se irrita tanto com o tratamento que seu vizinho lhe dá, um miserável que assiste à morte do próprio filho de fome e frio? Para Hippolit, um ateu, não era aceitável ver um pai se apoiar no consolo de Deus e por isso não fazer nada para evitar a morte de um inocente. Quando a criança morre, Hippolit vai meio que sacanear com a dor do outro; seu olhar diz "Tá vendo? Eu avisei. Você poderia ter feito algo". Nesse instante, o outro se aproxima e muito cordialmente diz: "Saia". Desse dia em diante, toda vez que se avistam no prédio, o homem gentilmente retira o chapéu da cabeça e cumprimenta Hippolit. E isso o irrita demais! Ele deve pensar: como pode ser? Eu, que sou instruído, moderno, que deveria me sentir por cima desse miserável ignorante, sinto ódio pela maneira altiva com que este sujeito se porta diante de mim. Era eu que deveria sentir pena dele e não ele de mim. - Notem como nenhum deles vive um ideal puro. Ao contrário, seres abjetos vivendo uma vida suja, longe de qualquer natureza reconciliadora, embora o vizinho esteja mais próximo de encontrar a conformidade do mundo do que Hippolit.

Para os entendidos no assunto, Dostoiévski ainda cria um clima de bagunça completa entre os nobres e os humilhados e ofendidos. Ele os obriga coexistir em momentos comuns, por mais impossível que isso fosse de se pensar numa sociedade hierarquizada e de corte como a Rússia oitocentista. Este é um dos aspectos daquilo que nomearam de "carnavalização" nos seus romances. Por isso, no sarau de Nastácia Filíppovna, estão generais, empresários, gente de bem, mas estão também pessoas de conduta duvidosa como Fierdischenko - que por sinal propõe um jogo no qual os participantes deveriam contar o ato mais vil e mesquinho já cometido na vida; e funciona, pois todos, inclusive esses nobres e ricos, acabam se revelando homens terríveis pela feiúra dos seus atos narrados - e, pra acanalhar o sarau, Rogójin e seus amigos arruaceiros entram pra inverter de vez o establishment. O príncipe Míchkin também é uma figura engraçada nesse aspecto: ele prefera a companhia de bêbados, como o general Ívolguin, não só ele, pois quase todo mundo no romance uma vez ou outra aparece bêbado; um homem mundano desgraçado como Parfen Rogójin; uma prostituta autocondenada ao inferno que é Nastácia Filíppovna; um tísico ateu condenado à morte que é Hippolit Tierentiev; Liébdiev, um trapaceiro ganancioso e intérprete do livro do Apocalipse; Keller, o mentiroso e briguento boxeador. E é impressionante como Míchkin, um nobre que acaba ganhando uma fortuna por ocasião de um testamento, anda com todos eles, e os ama. Aliás, é o elo que une os dois mundos, pois permite a presença de todos esses tipos nos mesmos espaços de pessoas distintas, como a generala Lisavieta, uma senhora da alta sociedade, frequentadora das casas de condes, de quem ele recebe muitas censuras por andar com gente desse nível. É através de Míchkin que ela tem a sensação de que o mundo está realmente de pernas pro ar. Imaginem se ela tivesse conhecido Raskólnikov, Kiríllov, Nicolai Stavróguin ou o quase espírito zombeteiro Ivan Karamázov.

Antes que esqueça, vou deixar o linque do recado principal dessa postagem. Parece que saiu, está pra sair, ainda não sei, a minissérie também russa baseada n'Os Irmãos Karamázov. Massa, né? É prova de que finalmente estão redescobrindo o aspecto torto do velho filho de Mikhail por lá? No caso da adaptação de O Idiota, que foi em 2003, eu li na internete que o negócio casou com as discussões entre a abertura para o Ocidente ou a ideologia eslava de fechamento, no contexto do governo de Vladímir Pútin. E sim, o romance trata demais dessa questão. Mas o que vão dizer sobre o contexto da adaptação de Os Irmãos Karamázov? Aí vai uma informação: este romance pode ser entedido como anunciador do fim dos tempos. Agora uma dica: peguem o mote da generala Lisavieta, de que o mundo está prestes a acabar, e leiam em conjunto com a primeira coisa dita neste vídeo que ora vocês verão (eu espero que vejam). Meu palpite está dentro disso aí.


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