quinta-feira, 7 de novembro de 2013

As Sonatas a Kreutzer

- Eles tocaram a Sonata a Kreutzer, de Beethoven. O senhor conhece o primeiro presto? Conhece?! – exclamou ele. – Uh! Como é terrível esta sonata! Precisamente essa parte. E a música em geral é uma coisa terrível. O que é ela? Não compreendo. O que é a música? O que ela faz? E por que ela faz aquilo que faz? Dizem que a música atua de maneira a elevar a alma: é absurdo, é mentira! Ela atua, e terrivelmente, digo-o por experiência própria, mas não de maneira a elevar a alma. Ela não eleva nem rebaixa a alma, ela a excita. Como dizer-lhe? A música obriga-me a esquecer de mim mesmo, da minha verdadeira condição, ela me transporta a uma outra, que não é a minha: sob o influxo da música, tenho a impressão de sentir o que, na realidade não sinto, de compreender o que, a bem dizer, não compreendo, de poder, o que de fato, não posso. Explico-o pelo fato de que a música atua como o bocejo, como o riso: não tenho sono, mas bocejo vendo alguém bocejar, não há motivo para que eu ria, mas rio, depois de ouvir um outro rir.

A música transporta-me diretamente àquele estado de alma em que se encontrava quem a escreveu. O meu espírito funde-se com o dele, e com ele me transporto de um estado a outro, mas não sei porque o faço. Quem escreveu a música, por exemplo, Beethoven com a sua Sonata a Kreutzer, sabia porque se encontrava em semelhante estado; este levou-o a praticar determinados atos, e por isso tal condição tinha para ele um sentido, mas para mim ela não tem nenhum. E por isso a música apenas excita, ela não conclui. Bem, quando se toca marcha belicosa, os soldados marcham aos seus sons, a música atingiu-os; tocaram uma dança, eu dancei – a música também me atingiu; bem, cantaram missa, eu comunguei, esta música também me atingiu, mas de outro modo, tem-se apenas excitação, e não existe aquilo que se deve fazer nesse estado de excitação. E é por isso que, às vezes, a música atua de modo tão terrível, tão assustador. Na China, a música é um assunto de Estado. E assim deve ser. Pode-se acaso permitir que todo aquele que o queira hipnotize outra pessoa, ou muitas outras, e depois faça com elas o que quiser? E sobretudo, que esse hipnotizador seja o primeiro homem que apareça, um imoral?

E esse poder terrível está nas mãos de qualquer um. Por exemplo, esta Sonata a Kreutzer, o primeiro presto. Pode-se porventura tocá-lo numa sala de visitas, em meio a senhoras decotadas? Tocá-lo, depois bater palmas, em seguida tomar sorvete e falar do último mexerico? Essas peças só podem ser tocadas em determinadas circunstâncias importantes, significativas, nas ocasiões em que se requer a execução de certas ações importantes, correspondentes a essa música. Tocá-la e executar aquilo para o que essa música dispôs. Pois um despertar de energia, de um sentimento que não se manifesta em nada, e que não corresponde ao lugar nem ao tempo, não pode deixar de ter uma ação demolidora. Sobre mim, pelo menos, essa peça atuou terrivelmente; abriram-se para mim como que sentimentos novos, parecia-me, novas possibilidades, que eu até então não conhecera. Algo no íntimo parecia dizer-me: tudo tem que ser absolutamente diverso da maneira pela qual eu antes pensava e vivia, tem que ser como isto aqui. Não podia dar conta a mim mesmo do que era o novo que eu conhecera, mas a consciência dessa nova condição dava-me grande alegria. As mesmas pessoas, inclusive minha mulher e ele, já apareciam sob uma luz completamente diversa.

Depois deste presto, eles acabaram de tocar o andante, belo, mas comum e nada novo, com variações vulgares e um final completamente fraco. E tocaram ainda, a pedido dos convidados, a Elegia de Ernst e diferentes pecinhas. Tudo isto era bom, mas não causou sequer 1% da impressão provocada pelo presto. E tudo isso tinha como fundo a impressão por ele causada. No decorrer de todo o serão, eu sentia leveza, alegria. Nunca vira minha mulher do jeito como ela parecia essa noite. Esses olhos brilhantes, essa severidade, o olhar significativo enquanto tocava, e essa completa diluição, e certo sorriso débil, de lástima, feliz, depois que eles acabaram de tocar. Eu via tudo isso, mas não lhe atribuía nenhum outro sentido, além de que ela experimentava o mesmo que eu, que também a ela pareciam ter-se revelado sentimentos novos, ainda desconhecidos. O serão terminou com êxito, e todos se foram.

Tolstói, Lev. A Sonata a Kreutzer. Trad. Boris Schnaiderman. São Paulo: Editora 34, 2007. P. 82-84.

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Ou seja, segundo o personagem Pózdnichev, sua esposa e o amante, ele ao violino e ela ao piano, fizeram sexo diante de todos os presentes. Assim como esses dois abaixo farão diante dos seus olhos...

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