sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Romance e revolta



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Afinal, escrever ou ler um romance são ações insólitas. Construir uma história através de um novo arranjo de fatos verdadeiros não tem nada de inevitável nem de necessário. Se até mesmo a explicação banal – pelo prazer do criador e do leitor – fosse verdadeira, deveríamos nos perguntar qual necessidade faz a maior parte dos homens sentir prazer e se interessar por histórias inventadas. A crítica revolucionária condena o romance puro como a evasão de uma mente ociosa. Por sua vez, a linguagem comum chama de “romanescas” o relato mentiroso do jornalista inábil. Há alguns lustros era comum dizer, inaceitavelmente, que as moças eram “romances”. Entendia-se com isso que essas criaturas ideais não levavam em conta a realidade da existência. De modo geral, sempre se considerou que o romanesco se separava da vida, e que a embelezava ao mesmo tempo que a traía. A maneira mais simples e banal de encarar a expressão romanesca consiste portanto em ver nisso um exercício de evasão. O senso-comum une-se à crítica revolucionária.

Mas do que se procura fugir pelo romance? De uma realidade julgada por demais esmagadora? As pessoas felizes também lêem romances, e é um fato constatado que o extremo sofrimento tira o gosto pela leitura. Por outro lado, o universo romanesco tem certamente menos peso e presença do que este outro universo, onde seres de carne e osso nos assediam sem parar. Por que mistério, entretanto, Adolphe nos parece um personagem bem mais familiar que Benjamin Constant, e o conde Mosca que nossos moralistas profissionais? Balzac concluiu um dia uma longa conversa sobre a política e o destino do mundo, dizendo: “E, agora, falemos de coisas sérias”, referindo-se a seus romances. O gosto pela evasão não basta para explicar a gravidade indiscutível do mundo romanesco, nossa obstinação em levar realmente a sério os incontáveis mitos que o gênio romanesco nos propõe há dois séculos. A atividade romanesca supõe certamente uma espécie de recusa do real, mas esta recusa não é uma simples fuga. Deve-se ver nisso o movimento de retirada da bela alma que, segundo Hegel, cria para si própria, em sua ilusão, um mundo fictício em que só a moral reina? O romance edificante, contudo, acha-se bastante longe da grande literatura; e o melhor dos romances água-com-açúcar, Paulo e Virgínia, obra na verdade angustiante, nada oferece a título de consolo.

A contradição é a seguinte: o homem recusa o mundo como ele é, sem desejar fugir dele. Na verdade, os homens agarram-se ao mundo e, em sua imensa maioria, não querem deixá-lo. Longe de desejar realmente esquecê-lo, eles sofrem, ao contrário, por não possuí-lo suficientemente, estranhos cidadãos do mundo, exilados em sua própria pátria. A não ser nos instantes fulgurantes da plenitude, toda realidade é para eles incompleta. Seus atos lhes escapam sob a forma de outros atos, voltam para julgá-los sob aspectos inesperados e correm, como a água de Tântalo, para uma embocadura ainda desconhecida. Conhecer a embocadura, dominar o curso do rio, entender enfim a vida como destino, eis sua verdadeira nostalgia, no mais profundo de sua pátria. Mas essa visão que, pelo menos no conhecimento, os reconciliaria enfim consigo mesmos, só pode aparecer, se é que aparece, no momento fugaz da morte, em que tudo se consuma. Para existir no mundo, por uma vez, é preciso nunca mais existir.

Nasce aqui essa desgraçada inveja que tantos homens sentem da vida dos outros. Olhadas de fora, emprestam-se a essas existências uma coerência e uma unidade que elas estão longe de ter, mas que parecem evidentes ao observador. Ele só vê o contorno dessas vidas, sem tomar consciência dos detalhes que as corroem. Então, dotamos de arte tais existências. De maneira elementar, nós as romanceamos. Neste sentido, cada qual procura fazer de sua vida uma obra de arte. Desejamos que o amor dure e sabemos que ele não dura; se até mesmo, por milagre, ele tivesse que durar toda uma vida, estaria ainda incompleto. Talvez, nesta insaciável necessidade de durar, compreenderíamos melhor o sofrimento terrestre, se o soubéssemos eterno. Parece que as grandes almas, às vezes, ficam menos apavoradas com o sofrimento do que com o fato de ele não durar. Na falta de uma felicidade inesgotável, um longo sofrimento constituiria ao menos um destino. Mas não é assim, e nossas piores torturas um dia chegarão ao fim. Certa manhã, após tanto desespero, uma irreprimível vontade de viver vai nos anunciar que tudo acabou e que o sofrimento não tem mais sentido que a felicidade.

O desejo de posse não é mais que uma outra forma do desejo de durar; é ele que constitui o delírio impotente do amor. Nenhum ser, nem mesmo o mais amado, e que nos ama com maior paixão, jamais fica em nosso poder. Na terra cruel em que os amantes às vezes morrem separados e nascem sempre divididos, a posse total de um ser, a comunhão absoluta por toda uma vida é uma exigência impossível. O desejo de posse é a tal ponto insaciável que ele pode sobreviver ao próprio amor. Amar, então, é esterilizar a pessoa amada. O vergonhoso sofrimento do amante, a partir de agora solitário, não é tanto de não ser mais amado, mas de saber que o outro pode e deve amar ainda. Em última instância, todo homem devorado pelo desejo alucinado de durar e de possuir deseja aos seres que amou a esterilidade ou a morte. Esta é a verdadeira revolta. Aqueles que não exigiram, pelo menos uma vez, a virgindade absoluta dos seres e do mundo, que não tremeram de nostalgia e de impotência diante de sua impossibilidade, aqueles que, então, perpetuamente remetidos a sua nostalgia pelo absoluto, não se destruíram ao tentar amar pela metade, não podem compreender a realidade da revolta e seu furor de destruição. Mas os seres escapam sempre e nós lhes escapamos também; eles não têm contornos bem-delineados. A vida, deste ponto de vista, é sem estilo. Ela não é senão um movimento em busca de sua forma sem nunca encontrá-la. O homem, assim dilacerado, persegue em vão essa forma que lhe daria os limites entre os quais ele seria soberano. Que uma única coisa viva tenha sua forma neste mundo, ele estará reconciliado!

Não há, enfim, quem quer que, a partir de um nível elementar de consciência, não se esgote buscando as fórmulas ou as atitudes que dariam à sua existência a unidade que lhes falta. Parecer ou fazer, o dândi ou o revolucionário exigem a unidade, para existir, e para existir neste mundo. Como nesses patéticos e miseráveis relacionamentos que sobrevivem às vezes por muito tempo, porque um dos parceiros espera encontrar a palavra, o gesto ou a situação que farão de sua aventura uma história terminada, e formulada, no tom certo, cada um cria para si e se propõe a última palavra. Não basta viver; é preciso um destino, e sem esperar pela morte. É justo portanto dizer que o homem tem a idéia de um mundo melhor do que este. Mas melhor não quer dizer diferente, melhor quer dizer unificado. Esta paixão que ergue o coração acima do mundo disperso, do qual no entanto não pode se desprender, é a paixão pela unidade. Ela não desemboca numa evasão medíocre, mas na reivindicação mais obstinada. Religião ou crime, todo esforço humano obedece, finalmente, a esse desejo irracional e pretende dar à vida a forma que ela não tem. O mesmo movimento, que pode levar à adoração do céu ou à destruição do homem, conduz da mesma forma à criação romanesca, que dele recebe, então, sua seriedade.

Que é o romance, com efeito, senão esse universo em que a ação encontra sua forma, em que as palavras finais são pronunciadas, os seres entregues aos seres, em que a vida passa a ter a cara do destino?[1] O mundo romanesco não é mais que a correção deste nosso mundo, segundo o destino profundo do homem. Pois trata-se efetivamente do mesmo mundo. O sofrimento é o mesmo, a mentira e o amor, os mesmos. Os heróis falam a nossa linguagem, têm as nossas fraquezas e as nossas forças. Seu universo não é mais belo nem mais edificante que o nosso. Mas eles, pelo menos, perseguem até o fim o seu destino, e nunca houve heróis tão perturbadores quanto os que chegaram aos extremos de sua paixão, Kirilov e Stavroguin, Mme Graslin, Julien Sorel ou o príncipe de Clèves. É aqui que perdemos sua medida, pois eles terminam aquilo que nós nunca consumamos.

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Camus, Albert. O homem revoltado. Trad. Valerie Rumjanek. 6ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2005. P. 298-302.



[1] Ainda quando o romance só exprima a nostalgia, o desespero, o inacabado, não deixa de criar, a forma e a salvação. Dar nome ao desespero é superá-lo. A literatura desesperada é uma contradição em termos.

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