terça-feira, 12 de novembro de 2013

se não puder escrever eu vou morrer...

Hoje, 22 de dezembro, fomos levados à força à praça de armas do regimento Semeónovski. Ali foi lida para todos nós a sentença de morte, deram-nos a cruz para beijar... e prepararam nossos trajes para a morte (camisões brancos). Em seguida, prenderam três aos postes para a execução da sentença. Chamavam de três em três, portanto eu estava ma segunda fila e não me restava mais de um minuto de vida. Eu me lembrei de ti, meu irmão, de todos nós três; no último minuto tu, só tu estavas em minha mente, e só então fiquei sabendo como te amo, meu irmão querido! Tive tempo de abraçar também Pleschêiev, Dúrov, que estavam ao lado, e despedir-me deles. Por fim bateu o sinal, fizeram voltar os que estavam presos aos postes, e leram para nós que sua majestade imperial nos dava a vida. Depois as verdadeiras sentenças tiveram prosseguimento...

Irmão! Não me abati e nem caí em desânimo. A vida é vida em qualquer lugar, a vida em nós mesmos e não fora. Ao meu lado haverá pessoas, e ser homem entre elas e assim permanecer para sempre, quaisquer que sejam os infortúnios, sem perder a coragem nem cair em desânimo - eis em que consiste a vida, em que consiste o seu objetivo. Eu estava consciente disso. Essa idéia arraigou-se em mim. Sim! É verdade! Aquela cabeça que criava, que vivia a vida suprema da arte, que era consciente e habituara-se às demandas superiores do espírito, aquela cabeça já havia sido cortada do meu pescoço. Restaram a memória e as imagens criadas e ainda não concretizadas por mim. Elas haverão de me ulcerar, é verdade! Mas em mim restaram o coração e aqueles sangue e carne que podem amar, e sofrer, e compadecer-se, e lembrar-se, e isso é vida apesar de tudo. On voit le soleil [Há sol, em francês). Bem, irmão, adeus! Não te aflijas por mim!... Nunca na vida reservas tão abundantes e sadias de vida espiritual haviam fervido em miom como neste momento. Mas se o corpo vai agüentar eu não sei...

Meu Deus! Quantas imagens, sobreviventes, criadas por mim irão morrer, irão apagar-se em minha cabeça ou derramar-se em meu sangue como veneno! É, se não puder escrever eu vou morrer... Em minha alma não há fel nem raiva, gostaria de amar muito e abraçar ao menos alguma das pessoas de antes neste momento. Isso é um deleite, eu o experimentei hoje ao me despedir dos meus entes queridos perante a morte... Quando olho para o passado e compreendo quanto tempo perdi com equívocos, com erros, na ociosidade, na inabilidade para viver, como deixei de apreciá-lo, quantas vezes pequei contra meu coração e minha alma, meu coração se põe a sangrar. A vida é uma dádiva, a vida é uma felicidade, cada minuto poderia ser uma eternidade de felicidade.

Dostoiévski, Fiódor. O Idiota. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2002 (p. 12-14).

-------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

Dostoiévski foi condenado à morte acusado de conspiração contra o tsar. Esta carta foi escrita ao irmão Mikhail ainda no mesmo dia da execução. Como se soube depois, era tudo uma armação para que se tivesse a impressão da bondade do imperador. Dostoiévski terminou cumprindo uma pena de quatro anos de trabalhos forçados na Sibéria (donde resultou no seu romance A casa dos mortos  - ou em traduções mais antigas, Recordações da casa dos mortos). Quando escreveu  O Idiota, já sabia do tal embuste. E este tom delirante da carta ao irmão está nas falas do próprio príncipe Míchkin quando palestra sobre a condenação, ele, que disse ter assistido a uma execução na França e conta à generala Lisavieta Prokófievna e suas filhas como um homem, que tendo vivido toda a agonia de uma sentença de morte, prometeu no momento final que se tivesse mais alguns instantes de vida, se tivesse outra vida, se a vida não acabasse depois daquilo, se a vida recomeçasse, viveria tudo de novo e com mais intensidade; e no entanto, teve a pena comutada, ficou livre e não cumpriu com sua promessa. Vários de seus personagens falam nesse minuto supremo que justificaria toda uma existência. A verdade é que depois daquele dia na praça, diante do pelotão de fuzilamento, Dostoiévski realmente nunca mais foi o mesmo.

Nenhum comentário: