quinta-feira, 23 de julho de 2009

Belchior e o Sertão

Ora! Belchior é sem dúvida um dos melhores músicos brasileiros de todos os tempos e talvez o melhor cara que fizesse um papel de Nietzsche no cinema (tomando em consideração os bigodes).

Hoje, dias já vão que cheguei de férias ao Sertão e ainda escuto o rapaz-latino-americano-sem-dinheiro-no-bolso-e-vindo-do-interior. Hoje, em particular, depois de conversar com uma amiga de Patos, Aninha, e porque ela me disse que "Pequeno Mapa do Tempo" é a minha cara. Aí foi o negócio de sentir vontade de ouvir de novo.

Engraçado isso. Tempos atrás me lembrei de uma coisa que outro amigo me disse. Schroder, para outros é "Xeróide", falara que não gosta de Belchior porque todas suas músicas tratavam do rapaz do sertão que foi pra cidade grande. Primeiro que eu não concordo totalmente com isso. Ele tem músicas de uma poética gigante, como "Hora do Almoço", "Carisma", "Clamor no Deserto". E há uma fase, por assim dizer, "experimental" da música desse cearense - digo isso porque é legal usar o termo "experimental" pra designar qualquer coisa que mixe o som das baleias com a voz humana pra criar um efeito altamente mais ou menos. É só ouvir o primeiro disco de Belchior, onde o miserável inventa de cantar poemas concretistas ao som de uma coisa parecida com o som armorial.

Mas sobre as demais canções, sim! Belchior compôs várias com o mesmo tema, mas na minha opinião, dizendo tudo de maneira mais massa a cada nova música. A clássica eu já citei, "Apenas um rapaz latino americano". Mas tem outras, como "Galos, noites e quintais", capaz de criar imagens bonitas:

Quando eu não tinha o olhar lacrimoso
que hoje eu trago e tenho
quando adoçava meu pranto e meu sono
no bagaço de cana do engenho
quando eu ganhava esse mundo de meu Deus
fazendo eu mesmo o meu caminho
por entre as fileiras do milho verde que ondeia
com saudade do verde marinho.

Ainda que nessa canção o tema do emigrante nordestino não apareça, mas há imagens da nostalgia de um tempo anterior e melhor. Há uma que tem versos muito bonitos, "Notícia de terra civilizada". Ela pega um mote dado por Luiz Gonzaga na sua "Riacho do navio", onde se mostra o desejo de viver uma vida "sem rádio e sem notícia das terra civilizada". Na releitura de Belchior:

Era uma vez um cara do interior
Que vida boa, água fresca e tudo mais
Rádio e notícia de terra civilizada
Entrou no ar da passarada
E adeus paz!
Agora é mudar de vida
Um bilhete só de ida
Que voltar, não volta não
Seguir sem mulher nem filho
Ó brilho cruel do trilho
Do trem que sai do sertão
Acreditou no sonho
Da cidade grande
E enfim se mandou um dia
E vindo, viu e perdeu
Indo parar - paraíba! - na delegacia
Lírico, rindo, relembra
Um ditado esquecido:
"... antes de tudo, um forte."
Com fé em Deus, um dia,
Faz algum dinheiro
Pra voltar pro Norte.

Há ainda outra música, "Fotografia 3X4". Essa insiste na situação de miseréria em que vive o migrante nesse sol enganador que é "Sum Paulo" ou Rio de Janeiro. "Veloso, o sol não é tão bonito pra quem vem do Norte", adverte o cantor a Caetano Veloso pelas suas palavras em "Alegria, alegria". Ao fim da canção, Belchior se coloca como o típico nordestino: "eu sou como você que me ouve agora".

Talvez a que eu ache mais massa seja mesmo "Pequeno mapa do tempo". Fala do medo de uma maneira cortante. O medo que eu senti. Belchior pode finalizar melhor que eu o assunto:

Eu tenho medo e medo está por fora
O medo anda por dentro do teu coração
Eu tenho medo de que chegue a hora
Em que eu precise entrar no avião

Eu tenho medo de abrir a porta
Que dá pro sertão da minha solidão
Apertar o botão: cidade morta
Placa torta indicando a contramão
Faca de ponta e meu punhal que corta
E o fantasma escondido no porão

2 comentários:

O Tempo Passa disse...

Vc é o primeiro cara que eu "encontro" que conhece "Galos, noites e quintais"! Eu a ouvi, pela primeira vez na voz de Jair Rodrigues, na antiga TV Record, em programa que ele fazia com Elis. Nunca me esqueci. Tenho hoje uma versão "modernosa" do Belchior, que é horrível, mas é a única disponível.
Além das que vc mencionou, gosto muito de "Paralelas".

Sueli disse...

Meu querido amigo,
Até os facínoras, como o Lau Cariri criado por Allyrio, sentem medo. Por que seria diferente com você? O que não pode acontecer é você permitir que o medo o paralise. Pelo contrário, o medo deve ser a força que o impulsiona a continuar enfrentando o mundo, até dominá-lo e reduzi-lo à sua própria estatura. Você verá que, então, já não existirá mais medo.Coragem!
Um abraço,
Sueli.