sexta-feira, 29 de agosto de 2008

O Restaurante

Pode-se dizer que ela era apenas leviana. Uma moça arredia mas um tanto cândida. Mesmo à claridade do dia, tudo o mais lhe parecia perdido na penumbra de sua lucidez. Diante da cerca que rodeava a fazenda em que se localizava o asilo, estática, degustava seus mais íntimos sentimentos, estes que também pareciam cerceá-la vez ou outra. Por qualquer razão, sussurrou:

- Eu volto em junho...

Mas sua memória frágil não a deixava lembrar bem, afinal, onde era este lugar? Por que em junho? Lá onde ela não conhecia, era agora um lugar distante demais para lembrar, num tempo também longínquo. Fácil era crer que enlouquecia, mesmo assim ela insistia em não esquecer que podia recordar. Vasculhava sua mente quando ouviu um grito tão repentino quanto os golpes de sua memória traiçoeira.

- Ah, te achei!

Virou-se em direção ao som. Conhecia bem aquela voz, aquele timbre. Ao longe pôde reconhecer o semblante, era... mas quem era mesmo? Era uma senhora de feições robustas, bronze já empalidecido não se sabe se pelos recentes dias de frio ou por todos os invernos que viveu. Decidiu fitar aquela figura estranhamente conhecida, que logo lhe falou:

- Ei, mocinha! Já chegou o meio do dia, é hora da refeição e você ainda aqui, por que vem sempre a esse lugar? - indagou a senhora franzindo a testa tanto pela dúvida quanto pela incidência dos raios solares que, embora fracos, irritavam suas pupilas. Ao tomá-la de pronto pelos braços, fazendo menção de guiá-la, deixou claro que não parecia preocupar-se de fato com o esclarecimento do que questionara, o que fez a delirante mocinha sentir-se débil. Mesmo assim respondeu:

- Talvez aqui haja lucidez... veja, é um lugar tão pacífico... – e, percebendo que ganhara a atenção inédita daquela senhora, continuou:

- Diga-me, de que valem os sentidos se não estão ligados a uma memória, à cognição?

A senhora franziu ainda mais o cenho e permaneceu em silêncio. No ar pairou a idéia de que talvez a sanidade fosse fato inversamente proporcional à inteligência, ou algo um tanto variável a partir dela e seus pontos referenciais de intelecção.

Numa fração de segundos a jovem presenciou um turbilhão de lembranças e associações de modo que podia sentir a mente tão dolorida quanto ficariam os olhos diante de um clarão em pleno breu. Lembrou-se da senhora, era a enfermeira do asilo. Gostaria de reter aquelas informações tão preciosas, mas já pareciam partir outra vez mesmo diante de seu ímpeto mais sincero a clamar para que permanecessem. Respirou profundamente, sentia esvair-se juntamente com elas, entre os braços fortes da enfermeira deixou-se levar.

- Querida, soube que em breve virão buscá-la. Não fique assim tão distante dos outros. Eles sentem sua falta, sabia?

- E eu de mim.

Melancólico existir, tão ávida por sua identidade que teimava em escapar, desfazer-se entre frestas desconhecidas. Ansiava constantemente em recordar quem é e o que representa. E, quando se deixava tomar pela ausência total de lembranças, inundava-se em desvarios. Pôde perceber o cheiro de jasmim que exalava o jardim, antecipando a entrada nos cômodos da fazenda. Pediu que a servisse ali, numa rede próxima onde logo se sentou. Intrigava-lhe as saúvas das árvores em que se sustentava a rede. Elas viviam tão ávidas, mesmo sem uma aparente memória. Viviam instintivamente e o instinto as ordenava viver peremptoriamente. sem mais nem porém. Decidiu de repente então viver peremptoriamente. Sorriu ao imaginar que isso podia satisfazê-la, mas somente naquele instante. Deitou-se.

A enfermeira se dirigiu à cozinha e deparou-se com o médico assistente dos asilados.

- Por quanto tempo mais ela ainda ficará assim, doutor? – disse ao notar que ele observava a moça com afeto.

- Infelizmente ainda é difícil de estimar. - Ele não gostava de falar sobre isso, queria ter mais esperanças e pensar sobre fatores técnicos parecia não ajudar. E também, tais fatores podiam não ser compreendidos, como havia acabado de cear, batia-lhe um desídia usual, motivo suficiente para economizar palavras.

- Ela é tão jovem... – disse a enfermeira entristecida.

- Sim, e tem uma mente promissora, mas nenhum de seus melhores adjetivos parece ter valia diante de sua memória frágil, o que é uma verdadeira lástima.

Enquanto a observavam com pesar da janela da cozinha, surge naquele horizonte bucólico um rapaz de olhos singularmente janeiros aproximando-se da moça. Com o seu semblante característico, tão plácido quanto aquele lugar, ele caminhava. Em passos certos, se aproximava daquela que repousava docemente encantada com a comicidade que havia captado em meio a tantas amarguras: a comicidade de viver como uma saúva.

- Sinto informá-lo, senhor, o dia ainda completa a metade e ela se prepara para cear! – gritou o médico pensando numa forma de prolongar os minutos dela por perto de sua presença. Não sabia explicar mas sentiu desespero naquele instante. Nem soube discernir se era bom ou ruim estender a presença dela, talvez fosse uma vontade egoísta. E, como se não ouvisse tanto quanto ela não podia lembrar, continuou e chegou até ela. Um silêncio estranho pairou entre eles como se já estivessem se comunicando. Ele a fitava. Sentia que todas as palavras que dissesse não seriam ditas porque estava inevitavelmente mudo, além de aparentemente surdo. E, depois de alguns instantes, antes que dissesse algo, ela adiantou, ainda com os olhos fechados:

- Eu sinto os raios do sol mas o dia ainda está nublado e frio... Ainda bem que trouxe o casaco... – disse sorrindo à medida em que abria os olhos.

- Não vamos mais precisar de agasalho. – Ele a olhava embevecido. Ela só precisa existir para ser querida – pensou.

- Aonde vamos?

- Ao restaurante.

Num curto lapso lhe ocorreu que sua memória estava sã, afinal, o reconhecera até mesmo antes de abrir os olhos. E um sorriso largo preencheu seu semblante de alegria. Afinal, agora era bem mais do que uma saúva, teria uma satisfeição maior.

- Não sabia que estava passando fome aqui. – brincou.

E os dois riram abertamente como bons e velhos cúmplices daquele e de tantos outros instantes memoráveis.

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

PARA ALÉM DE GALVÃO BUENO

Ocorre-me a indagação sobre o que me faz sentir uma certa emoção em ver os atletas brasileiros competindo e, às vezes, ganhando nas Olimpíadas, à parte as efusivas e irritantes manifestações de ufanismo dos locutores televisivos. Ou melhor, sobre o que leva muita gente brasileira, e muita mesmo, a se sentir assim; gente que, não havendo efemérides esportivas como essas, nem ligam para as competições – desconhecendo-lhes até as regras mínimas – e ficam indiferentes a qualquer manifestação cívica ou patriótica. Por que será que o povo brasileiro sente-se reconfortado em assistir aos seus conterrâneos ganhando medalhas, o que, na fria concretude das coisas, não significa outra coisa senão o reconhecimento de habilidades em domínios que não têm nenhuma utilidade para a vida cotidiana? O que dá sentido a isso?

Será a mesma sensação que leva a dona-de-casa a torcer pela homem que vai salvar a mocinha na novela? O mesmo que faz as crianças se sentir vitoriosas com as conquistas dos seus heróis nos desenhos animados? Tá’qui uma palavra-chave, isto é, que pode abrir caminhos: herói.

Parece ingênuo acreditar em heróis. Mas não é só coisa pueril ou de domésticas iletradas. As crianças e as domésticas iletradas só têm a honestidade de não esconder que amam alguém que não existe. E cada um tem heróis. Todos erguemos patamares nos salões imaginados que alugamos para os que nos são caros. Todos temos alguém que queríamos ser, sem deixar de ser esse que quer ser. Herói é o que encarna em sua figura o impossível de ter havido, aquilo que não pude ter sido, as minhas outras escolhas não escolhidas, a minha força que prefiro esconder. Tanto é que vestimo-nos de herói nas horas de adormecer: pensamos em respostas perfeitas para situações imaginadas; arrancamos força para falar a verdade na cara de quem quer que seja; montamos projetos arrojados; destruímos as forças maléficas. Ou, o que não é nem um pouco menos nobre, vemos no herói amado o nosso rosto... Elegemos os que podem nos salvar do sem-sentido: o herói resolve e, quando não pode, lamenta e chora conosco; elegemos heróis pela saudade de um pai que nos tira da boca do jacaré; e não só o que cuida da gente, mas o que ensina a gente a ser herói também. O herói nos deixa ser...

Um povo sem heróis é um povo sem referências de força e de coragem, um povo que não tem pra onde ir... Lembro de Zaratustra que dizia que a nova nobreza que ele apresentava não era a do sangue nem a do dinheiro, mas a do destino: a nobreza de um povo está no lugar para onde ele segue, isto é, no país dos sonhos. Um país é não o que é, mas o que quer ser. Pois o Brasil é uma pátria sem heróis. Não falo do Brasil-cores, do Brasil-hino-e-bandeira, do Brasil-território; mas do que Mário dizia que era o Brasil: um jeito de ganhar dinheiro, de comer, de dormir. Somos um povo triste, de história triste. Fazemos muita festa por isso mesmo. Fernando Pessoa dizia que os países de histórias alegres e vitoriosas cantavam cantigas tristes; e os países de histórias tristes e penosas, faziam festas e eram alegres.

O povo brasileiro, carente de uma referência unívoca, pôs no esporte suas esperanças de grandeza. E nessas Olimpíadas emocionamo-nos com nossos heróis fracassados, que continuam a ser heróis. Nossos atletas são heróis com um esforço muito pessoal e com gana. Tem razão o Emanuel quando diz que “é muito importante ganhar medalha para o nosso país”.

Diferentemente daqueles medalhistas produzidos em série pelos EUA e pela China: são como máquinas desenhadas e programadas durante anos para funcionarem no momento certo. A qualidade dos heróis brasileiros não é a eficiência, mas o que cria eficiência, a gana, a garra, a grandeza. É nisso que as meninas do futebol, que não ganharam ouro, são heroínas e as estadunidenses não são. Nossos heróis criam a força, porque essa de quase nenhum lado lhe veio. É nisso que Kathlyn Quadros, a judoca que não tinha dinheiro para comprar o quimono, é heroína, e Micheal Phelps, não! Não é a habilidade que faz o herói. A habilidade é tão imparcial quanto o instrumento, como uma faca que é tão afiada nas mãos de um bom cozinheiro quanto nas mãos de um bom assassino. O que faz o herói é o espírito que ele põe na habilidade. É essa a razão pela qual estamos tão enraivecidos com os rapazes do futebol masculino, que, vestidos de heróis, se comportam como mercenários.

Alegramo-nos com os pequenos que têm uma outra grandeza, que não é a do dinheiro ou a da fama. Uma grandeza mais além da bandeira, das cores, do hino e da famosa vinheta da Globo; além dos uivos de Galvão Bueno; além do pretenso “espírito de paz” das Olimpíadas, esta que já se tornou um evento puramente comercial e estilizado. Não, isso é o que enfeia a festa: a ostentação de uma humanidade que nem se conhece. A falsa beleza que se ostenta na festa de abertura, ou a falsa grandeza que se ostenta no quadro de medalhas, ou o falso discurso de paz que se ostenta nas falas dos políticos e famosos são sinais de que não temos o que celebrar, ou que o que se pretende é a celebração de uma homogeneidade imposta, mas que não consegue alcançar o mais fundo dos povos. Quando um consenso é forçado é que alguma coisa feia tem que ficar escondida. Não! Não é aí que estão nossos heróis: nossos atletas são heróis justamente porque não venceram, ou porque sua vitória foi tímida, como o que é comum na vida da gente. É como a comovida descoberta, à qual os mais velhos nos advertem, de que não é preciso vencer. A vida não é uma vitória, porque é um jogo que se perde antes de começar. A vida é uma saudade das festas antigas – das que houve e das que ficaram por haver. A vida também é uma festa das futuras lembranças, das saudades que virão. Os nossos atletas-heróis nos comovem porque sua vitória é a sentença de que não precisamos vencer, de que nos encanta estar no jogo e que o jogo não acabe enquanto o cansaço não o pedir...

Nossos atletas-heróis são fundamentalmente fracassados porque não conseguem nos tirar da boca do jacaré, colocando apenas uma trava para que a boca não se feche sobre nós. Eles ocupam o espaço dos que fugiram do seu compromisso de herói e abandonaram um povo sem referência num deserto de idéias e sonhos. Mas, quem sabe uma estória não acorda o povo e o faz ficar bonito?: Era uma vez uma menina que descobriu que gostava de lutar judô, mas não tinha dinheiro pra comprar um quimono...

"Brasil amado não porque seja a minha pátria,
Pátria é acaso de migrações e do pão-nosso onde Deus der...
Brasil que eu amo porque é o ritmo do meu braço aventuroso
o gosto dos meus descansos,
o balanço das minhas cantigas, amores e danças.
Brasil que eu sou porque é a minha expressão muito engraçada,
porque é o meu sentimento muito pachorrento,
porque é o meu jeito de ganhar dinheiro, de comer e de dormir."

Mário de Andrade - trecho "O poeta come amendoim"

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Príncipe Míchkin

Entre outras coisas pôs-se a meditar como em seu estado epiléptico, quase no limiar do próprio ataque (se é que o próprio ataque aconteceu na realidade), chegara a um grau em que subitamente, em meio à tristeza, à escuridão da alma, à pressão, seu cérebro pareceu inflamar-se por instantes e todas as suas forças vitais retesaram-se ao mesmo tempo com um ímpeto incomum. A sensação de vida, de autoconsciência quase decuplicou nesses instantes que tiveram a duração de um relâmpago. A mente, o coração foram iluminados por uma luz extraordinária; todas as inquietações, todas as suas dúvidas, todas as aflições pareceram apaziguadas de uma vez, redundaram em alguma paz superior, plena de uma alegria serena, harmoniosa, e de esperança, plena de razão e de causa definitiva. Mas esses momentos, esses lampejos ainda eram apenas um pressentimento daquele segundo definitivo (nunca mais que um segundo) após o qual começava o próprio ataque. Esse segundo, é claro, era insuportável. Refletindo mais tarde sobre esse instante, já em estado sadio, ele dizia freqüentemente de si para si: que todos esses raios e relâmpagos da suprema auto-sensação e autoconsciência e, portanto, da “suprema existência” não passam de uma doença, de perturbação do estado normal e, sendo assim, nada têm de suprema existência, devendo, ao contrário, ser incluídos na mais baixa existência. E, não obstante, ainda assim ele acabou chegando a uma conclusão extremamente paradoxal: “Qual é o problema de ser isso uma doença? – decidiu finalmente. – Qual é o problema se essa tensão é anormal, se o próprio resultado, se o minuto da sensação lembrada e examinada já em estado sadio vem a ser o cúmulo da harmonia, da beleza, da conciliação e de fusão extasiada e suplicante com a mais suprema síntese da vida?”. Essas expressões obscuras lhe pareciam muito compreensíveis, ainda que excessivamente fracas. De que isso era realmente “beleza e súplica”, de que isso era realmente “ a suprema síntese da vida” ele não podia nem duvidar, e aliás não podia nem admitir dúvidas. É que não foram algumas visões que naquele momento lhe apareceram em sonho, como provocadas por haxixe, por ópio ou vinho, que humilham a razão e deformam a alma, visões anormais e inexistentes. Sobre isso ele podia julgar com bom senso ao término do estado doentio. Esses instantes eram, justamente, só uma intensificação extraordinária da autoconsciência – caso fosse necessário exprimir esse estado por uma palavra –, da autoconsciência e ao mesmo tempo da auto-sensação do imediato no mais alto grau. Se naquele segundo, isto é, no mais derradeiro momento de consciência perante o ataque ele arranjasse tempo para dizer com clareza e consciência a si mesmo: “Sim, por esse instante pode-se valer a vida toda!” – então, é claro, esse momento em si valia a vida toda. Aliás ele não defendia a parte dialética da sua conclusão: o embotamento, a escuridão da alma, o idiotismo se apresentavam diante dele como uma nítida conseqüência desses “minutos supremos”. A sério, é claro, ele não se meteria a discutir. Na conclusão, isto é, na sua avaliação desse instante, havia sem dúvida um erro, mas a realidade da sensação o embaraçava um pouco, apesar de tudo. O que efetivamente fazer com a realidade? Note-se que isso mesmo já acontecia, note-se que ele mesmo já conseguira dizer para si mesmo, naquele mesmo segundo, que esse segundo, por uma felicidade infinda que ele sentia plenamente, talvez pudesse mesmo valer toda a vida. “Nesse momento – como dissera certa vez a Rogójin, em Moscou, nos momentos em que então estavam juntos –, nesse momento me fica de certo modo compreensível a expressão insólita: não haverá demora. Provavelmente – acrescentou ele, sorrindo – trata-se daquele mesmo segundo em que não houve tempo de derramar-se o vaso emborcado com a água do epiléptico Maomé que, não obstante, no último segundo conseguiu contemplar todas as habitações de Alá.” Sim, em Moscou ele conseguira se entender freqüentemente com Rogójin e falar não só desse assunto. “Há pouco Rogójin disse que naquela época eu era o seu irmão; ele disse isso pela primeira vez hoje” – pensou o príncipe de si para si.

DOSTOIÉVSKI, Fíodor M. O Idiota. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2002 (2ª Edição, 3ª Reimpressão), p. 261-262.

Cenas da minissérie russa "O Idiota", de 2003:


quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Os mundos de Ketleyn e Phelps

por Ricardo Gondim.

Michael Phelps e Ketleyn Quadros são atletas dos Jogos Olímpicos de 2008. Ela ganhou uma magra medalha de bronze e ele não aguenta o peso de tanto ouro pendurado no pescoço. Os dois apareceram na primeira página dos principais jornais brasileiros por motivos diferentes. Ele se tornou o nadador mais premiado de todos os tempos e riquissímo porque empresta um sorriso maroto para as multinacionais do esporte. Ela vai voltar para uma casa humilde nos arredores de Brasília. Phelps e Ketleyn vivem realidades e universos distintos.
Kelteyn nasceu em um país desgraçadamente injusto. Sua mãe costurou o seu primeiro kimono com retalho de sacos. Phelps vive em um país onde a escola pública ainda existe. Lá, os campeonatos estudantis são levados a sério, alguns televisionados.Os campeões das High Schools já são celebridades.
A peneira esportiva que Phelps teve que subir tem malhos apertados. Porém, quando terminou os estudos secundários, o "fenômeno" da natação ganhou bolsa de estudos integral para cursar uma universidade com muita verba. Paparicado pelos melhores treinadores, nadou a vida inteira em piscinas maravilhosas. Se precisou corrigir o estilo, tinha à disposição aparelhagem de vídeo de última geração. Nutricionistas ajudaram para que nunca se preocupasse com o que comer. A ascenção de Phelps espelha a cultura do seu país.
A de Ketleyin também. Sua mãe precisou fazer rifa e pedir dinheiro emprestado para poder assistir à filha brilhar em Pequim. Chorou enquanto lembrava do sacrifício de pegar ônibus caindo os pedaços para que Ketleyn entrasse no tatame.
Iguais a ela, muitas mães sofrem o pão que o diabo amassou para que os filhos lutem nos espartanos campeonatos brasileiros de judô.
Rarissimas escolas públicas brasileiras possuem algum complexo esportivo. Quando esporadicamente uma Ketleyn brilha é preciso lembrar que outras milhões nunca escapam da miséria. Mocinhas trabalham durante o dia e se arrastam para aulas sonolentas à noite. Com péssimo rendimento acadêmico, elas se vêem forçadas a aceitar sub-empregos com salário indigno. Cedo engravidam e perpetuam o perverso ciclo de injustiça, que condena este país a cáca que é.
Os nadadores que chegaram em sétimo ou oitavo na natação são oriundos da classe média, treinam em clubes da elite e logo que mostraram talento, emigraram para o exterior em busca de melhores condições. A “mãe gentil” não ajuda. Até os esportes coletivos sobrevivem de clubes ricos e de patrocínio empresarial. Mesmo assim, sobra pouco, o voley talvez.
Gosto muito de esporte, mas não agüento as patriotadas ridículas dos telejornais. Já sinto náusea de imaginar a festa que vão fazer quando o país ganhar uma ou duas suadíssimas medalhas de ouro. Tentarão encobrir a falta de vergonha na cara dos governantes com o mérito de algum solitário herói. O filtro social brasileiro exclui milhões. O maratonista empurrado, mas que ainda assim ganhou um bronze na Olimpíada grega havia sido um boia fria, cortador de cana.
Deus livre o Rio de Janeiro de ser escolhido para sediar qualquer outro evento esportivo internacional. A copa do mundo vai encher as burras das empreiteiras que vão construir elefantes brancos. Os dividendos sociais serão poucos, muito poucos.
Subdesenvolvidos, continuamos maravilhados com o sorriso despretensioso do Michael Phelps e com a algazarra tupiniquim de novos brasileiros com nome esquisito que podem brilhar.

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Visite: www.ricardogondim.com.br

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

O REI ESTÁ (FICANDO) NU

Quase não escrevo sobre política, menos ainda sobre escândalos políticos. Não consigo digerir os discursos políticos. Mas por vezes, os discursos que, ao ouvir, vomito novamente são tão impressionantemente mal-construídos que tenho vontade de lhes mostrar os alicerces na areia movediça. Mais ainda, quando diz respeito aos detentores da tirania que assola o Vale do Sabugy, terra onde nasço a cada dia para uma nova espécie de liberdade. Após o furdunço que provocou as matérias publicadas pela Folha de São Paulo na terça, 05, e endossadas pelo Correio Braziliense ontem, quarta, 06, ontem, ainda, o senador Efra-Imorais (assim o chamava o saudoso Chico Pereira em suas oportunas colunas no Correio da Paraíba) fez um pronunciamento na tribuna do senado que começou por volta das 17:30h e, adicionado de vários e muitos vários adendos e apartes dos colegas, terminou perto das 19h.
O pronunciamento do senador, enxugado das esperadas e recauchutadas bravatas em defesa da reputação política, tentou desabilitar as equipes de reportagem dos respectivos jornais, julgando improcedente a notícia. O senador utilizou uma velha - e muito velha - armadilha retórica, usada, pelo menos, desde Sêneca, conselheiro de Nero, que é a de se adiantar às investigações dos órgãos competentes. Ele disse "autorizar" - palavra dele - a Polícia Federal e o Ministério Público a investigarem suas contas e ligações. Depois, o senador tentou se eximir da culpa pelos contratos com os sites paraibanos - sendo um deles do seu primo, Glauco, no valor de 120 mil reais - alegando que não o primeiro secretário, mas toda a mesa diretora é responsável pela fiscalização de contas. Terminado o pronunciamento os apartes dos senadores foram controversos: os seus companheiros de partido e ala no senado, obviamente que ficaram do seu lado, elogiaram e defenderam o senador.
Penso que um primeiro elemento a ser rememorado para o senador é que a Polícia Federal e o Ministério Público não precisam da "autorização" de ninguém para proceder a investigações.
Até onde assisti, pude salvar os apartes dos senadores Aloizio Mercadante e Eduardo Suplicy (ambos PT-SP) que, mui cordialmente, elogiaram a atitude de antecipação do senador, mas enfatizaram o pedido de cancelamento dos contratos em suspeita, até que vigore a certeza (Mercadante) e até de extinção dessa espécie de contratos de propaganda, já que o Senado dispõe de três grandes veículos de divulgação, amplamente acessados pela população (Suplicy). A isso, Efraim respondeu que se a Justiça não mandou cancelar o contrato, não é necessário fazê-lo, no que comete o impropério de deixar implícita a idéia de que irregularidades não corrigidas exteriormente ou não punidas podem continuar a existir tranqüilamente, ainda que quem as cometa saiba de seu caráter irregular.
A esses, ainda se juntou o senador José Nery (PSOL-RR) para fazer uma crítica mais ampla aos serviços terceirizados dentro do senado e questionar o senador dos DEMO-PB sobre o seu trem da alegria particular no Senado. Efraim realmente foi infeliz nessa resposta, primeiro alegando que o nepotismo não é ilegal, sobre o que poderíamos remeter às mais simples aulas de Ética do Direito, ou até de Direito Consuetudinário: o que é legal não esgota o que é moral, que, por sua vez, não esgota o que é ético. Ou seja, a lei não dá conta da ética. Posturas éticas estão acima de posturas lícitas. Não é porque a lei não se pronuncia sobre determinado caso que o indivíduo deixa de ter uma posição específica sobre o caso. É como se ele dissesse assim: “Meninos, nepotismo não é ilegal. É só imoral!” (?)
No caso em questão, faz parte de uma postura subjetiva do senador defender o patrimonialismo - a tanto tempo, denunciado popular e academicamente; e sugiro para ele e todos a leitura de Os Donos do Poder, de Raymundo Faoro. Além disso, o senador usou a conduta alheia para justificar a própria, identificação peculiar do imaginário, como diria a psicanálise lacaniana. Remetendo ao caso da prefeitura de João Pessoa, cujo prefeito, Ricardo Coutinho (PSB), segundo Efraim, mantém quatro irmãos como secretários ou cargos similares, ele tentou justificar essa conduta provavelmente no Vale do Sabugy, já que ele disse que se falava muito disso “em minha terra”.
Ainda teve a lembrança que o senador Paulo Duque (PMDB-RJ) lhe trouxe de que é atribuição específica do primeiro-secretário, e não de toda a Mesa Diretora, a fiscalização das contas. O que esperar então se quem deveria fiscalizar é o primeiro a, pelo menos, fazer vista grossa para contratos de terceirização de serviços que, além de desnecessários, não passaram por um processo transparente de licitação?

Depois, fiquei enjoado de hipocrisias novelescas e fui ler Bertolt Brecht, e lhes trago uma pitadinha:

NADA É IMPOSSÍVEL DE MUDAR
Desconfiai do mais trivial,

na aparência singelo.

E examinai, sobretudo, o que parece habitual.

Suplicamos expressamente:

não aceiteis o que é de hábito como coisa natural,

pois em tempo de desordem sangrenta,

de confusão organizada, de arbitrariedade consciente,

de humanidade desumanizada,

nada deve parecer natural nada deve parecer impossível de mudar.