terça-feira, 23 de julho de 2013

Das tramas do sagrado



"As coisas assim a gente não pega nem abarca. Cabem é no brilho da noite. Aragem do sagrado. Absolutas estrelas."
João Guimarães Rosa

Depois de três anos desde que foi gravado, finalmente sai esse podcast (podiqueste?) sobre o músico, poeta e escritor baiano Elomar Figueira de Mello. Não se sabe precisamente que forças interferiram para que demorasse tanto a vir à tona. Parece mesmo que já nasceu póstumo, mas espera-se que não esteja caduco. Ei-los: Allyson Gabriel, Zé Márcio, Mário e Rondinelly. Quatro amigos diletantes, mas que se achavam no seu elemento - como diriam os Românticos -, conversaram sobre os espaços míticos ou reais, regionalidade, o ser-tanejo e uma ruma de outras coisas representadas no cancioneiro deste que é um dos maiores cavaleiros das caatingas. Na tentativa de encontrar a ponta do novelo de Ariadne eles se enredaram no labirinto trançado da ficção do Sertão Profundo.

PS: agradecimento especial ao nosso amigo Raiff Filho pela ajuda na edição.


Laço para baixar:

quarta-feira, 3 de julho de 2013

"Há esperança infinita...


"Recordo-me [Max Brod] de uma conversa com Kafka, cujo ponto de partida foi a Europa contemporânea e a decadência da humanidade. Somos, disse ele, pensamentos niilistas, pensamentos suicidas que surgem na cabeça de Deus. Essa frase evocou em mim a princípio a visão gnóstica de mundo: Deus como um demiurgo perverso, e o mundo como seu pecado original. Oh não, disse ele, nosso mundo é apenas um mau humor de Deus, um dos seus maus dias. Existiria então esperanças, fora desse mundo de aparências que conhecemos? Ele riu: há esperança suficiente, esperança infinita - mas não para nós."



A Ponte     

     Eu estava rígido e frio, era uma ponte estendido sobre um abismo. As pontas dos pés cravadas deste lado, do outro as mãos, eu me prendia firme com os dentes na argila quebradiça. As abas do meu casaco flutuavam pelos meus lados. Na profundeza fazia ruído o gelado riacho de trutas. Nenhum turista se perdia naquela altura intransitável, a ponte ainda não estava assinalada nos mapas. - Assim eu estava estendido e esperava; tinha de esperar. Uma vez erguida, nenhuma ponte pode deixar de ser ponte sem desabar.
    Certa vez, era pelo anoitecer - o primeiro, o milésimo, não sei -, meus pensamentos se moviam sempre em confusão e sempre em círculo. Pelo anoitecer no verão o riacho sussurra mais escuro - foi então que ouvi o passo de um homem! Vinha em direção a mim, a mim. - Estenda-se, ponte, fique em posição, viga sem corrimão, segure aquele que lhe foi confiado. Compense, sem deixar vestígio a insegurança do seu passo, mas, se ele oscilar, faça-se conhecer e como um deus da montanha, atire-o à terra firme.
     Ele veio; com a ponta de ferro da bengala deu umas batidas em mim, depois levantou com ela as abas do meu casaco e as pôs em ordem em cima de mim. Passou a ponta por meu cabelo cerrado e provavelmente olhando com ferocidade em torno deixou-a ficar ali longo tempo. Mas depois - eu estava justamente seguindo-o em sonho por montanha e vale - ele saltou com os dois pés sobre o meio do meu corpo. Estremeci numa dor atroz sem compreender nada. Quem era? Uma criança? Um sonho? Um salteador de estrada? Um suicida? Um tentador? Um destruidor? E virei-me para vê-lo. - Uma ponte que dá voltas! Eu ainda não tinha me virado e já estava caindo, desabei, já estava rasgado e trespassado pelos cascalhos afiados, que sempre me haviam fitado tão pacificamente da água enfurecida.

In: Narrativas do Espólio. Trad. de Modesto Carone, São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 64.