(…)
Afinal, escrever ou ler um
romance são ações insólitas. Construir uma história através de um novo arranjo
de fatos verdadeiros não tem nada de inevitável nem de necessário. Se até mesmo
a explicação banal – pelo prazer do criador e do leitor – fosse verdadeira,
deveríamos nos perguntar qual necessidade faz a maior parte dos homens sentir
prazer e se interessar por histórias inventadas. A crítica revolucionária condena
o romance puro como a evasão de uma mente ociosa. Por sua vez, a linguagem
comum chama de “romanescas” o relato mentiroso do jornalista inábil. Há alguns
lustros era comum dizer, inaceitavelmente, que as moças eram “romances”.
Entendia-se com isso que essas criaturas ideais não levavam em conta a
realidade da existência. De modo geral, sempre se considerou que o romanesco se
separava da vida, e que a embelezava ao mesmo tempo que a traía. A maneira mais
simples e banal de encarar a expressão romanesca consiste portanto em ver nisso
um exercício de evasão. O senso-comum une-se à crítica revolucionária.
Mas do que se procura fugir pelo
romance? De uma realidade julgada por demais esmagadora? As pessoas felizes
também lêem romances, e é um fato constatado que o extremo sofrimento tira o
gosto pela leitura. Por outro lado, o universo romanesco tem certamente menos
peso e presença do que este outro universo, onde seres de carne e osso nos
assediam sem parar. Por que mistério, entretanto, Adolphe nos parece um
personagem bem mais familiar que Benjamin Constant, e o conde Mosca que nossos
moralistas profissionais? Balzac concluiu um dia uma longa conversa sobre a
política e o destino do mundo, dizendo: “E, agora, falemos de coisas sérias”,
referindo-se a seus romances. O gosto pela evasão não basta para explicar a
gravidade indiscutível do mundo romanesco, nossa obstinação em levar realmente
a sério os incontáveis mitos que o gênio romanesco nos propõe há dois séculos.
A atividade romanesca supõe certamente uma espécie de recusa do real, mas esta
recusa não é uma simples fuga. Deve-se ver nisso o movimento de retirada da
bela alma que, segundo Hegel, cria para si própria, em sua ilusão, um mundo
fictício em que só a moral reina? O romance edificante, contudo, acha-se
bastante longe da grande literatura; e o melhor dos romances água-com-açúcar, Paulo e Virgínia, obra na verdade
angustiante, nada oferece a título de consolo.
A contradição é a seguinte: o
homem recusa o mundo como ele é, sem desejar fugir dele. Na verdade, os homens
agarram-se ao mundo e, em sua imensa maioria, não querem deixá-lo. Longe de
desejar realmente esquecê-lo, eles sofrem, ao contrário, por não possuí-lo
suficientemente, estranhos cidadãos do mundo, exilados em sua própria pátria. A
não ser nos instantes fulgurantes da plenitude, toda realidade é para eles
incompleta. Seus atos lhes escapam sob a forma de outros atos, voltam para
julgá-los sob aspectos inesperados e correm, como a água de Tântalo, para uma
embocadura ainda desconhecida. Conhecer a embocadura, dominar o curso do rio,
entender enfim a vida como destino, eis sua verdadeira nostalgia, no mais
profundo de sua pátria. Mas essa visão que, pelo menos no conhecimento, os
reconciliaria enfim consigo mesmos, só pode aparecer, se é que aparece, no
momento fugaz da morte, em que tudo se consuma. Para existir no mundo, por uma
vez, é preciso nunca mais existir.
Nasce aqui essa desgraçada inveja
que tantos homens sentem da vida dos outros. Olhadas de fora, emprestam-se a
essas existências uma coerência e uma unidade que elas estão longe de ter, mas
que parecem evidentes ao observador. Ele só vê o contorno dessas vidas, sem
tomar consciência dos detalhes que as corroem. Então, dotamos de arte tais
existências. De maneira elementar, nós as romanceamos. Neste sentido, cada qual
procura fazer de sua vida uma obra de arte. Desejamos que o amor dure e sabemos
que ele não dura; se até mesmo, por milagre, ele tivesse que durar toda uma
vida, estaria ainda incompleto. Talvez, nesta insaciável necessidade de durar,
compreenderíamos melhor o sofrimento terrestre, se o soubéssemos eterno. Parece
que as grandes almas, às vezes, ficam menos apavoradas com o sofrimento do que
com o fato de ele não durar. Na falta de uma felicidade inesgotável, um longo
sofrimento constituiria ao menos um destino. Mas não é assim, e nossas piores
torturas um dia chegarão ao fim. Certa manhã, após tanto desespero, uma
irreprimível vontade de viver vai nos anunciar que tudo acabou e que o
sofrimento não tem mais sentido que a felicidade.
O desejo de posse não é mais que
uma outra forma do desejo de durar; é ele que constitui o delírio impotente do
amor. Nenhum ser, nem mesmo o mais amado, e que nos ama com maior paixão,
jamais fica em nosso poder. Na terra cruel em que os amantes às vezes morrem
separados e nascem sempre divididos, a posse total de um ser, a comunhão
absoluta por toda uma vida é uma exigência impossível. O desejo de posse é a
tal ponto insaciável que ele pode sobreviver ao próprio amor. Amar, então, é
esterilizar a pessoa amada. O vergonhoso sofrimento do amante, a partir de
agora solitário, não é tanto de não ser mais amado, mas de saber que o outro
pode e deve amar ainda. Em última instância, todo homem devorado pelo desejo
alucinado de durar e de possuir deseja aos seres que amou a esterilidade ou a
morte. Esta é a verdadeira revolta. Aqueles que não exigiram, pelo menos uma
vez, a virgindade absoluta dos seres e do mundo, que não tremeram de nostalgia
e de impotência diante de sua impossibilidade, aqueles que, então,
perpetuamente remetidos a sua nostalgia pelo absoluto, não se destruíram ao
tentar amar pela metade, não podem compreender a realidade da revolta e seu
furor de destruição. Mas os seres escapam sempre e nós lhes escapamos também;
eles não têm contornos bem-delineados. A vida, deste ponto de vista, é sem
estilo. Ela não é senão um movimento em busca de sua forma sem nunca
encontrá-la. O homem, assim dilacerado, persegue em vão essa forma que lhe
daria os limites entre os quais ele seria soberano. Que uma única coisa viva
tenha sua forma neste mundo, ele estará reconciliado!
Não há, enfim, quem quer que, a
partir de um nível elementar de consciência, não se esgote buscando as fórmulas
ou as atitudes que dariam à sua existência a unidade que lhes falta. Parecer ou
fazer, o dândi ou o revolucionário exigem a unidade, para existir, e para
existir neste mundo. Como nesses patéticos e miseráveis relacionamentos que
sobrevivem às vezes por muito tempo, porque um dos parceiros espera encontrar a
palavra, o gesto ou a situação que farão de sua aventura uma história
terminada, e formulada, no tom certo, cada um cria para si e se propõe a última
palavra. Não basta viver; é preciso um destino, e sem esperar pela morte. É
justo portanto dizer que o homem tem a idéia de um mundo melhor do que este.
Mas melhor não quer dizer diferente, melhor quer dizer unificado. Esta paixão
que ergue o coração acima do mundo disperso, do qual no entanto não pode se
desprender, é a paixão pela unidade. Ela não desemboca numa evasão medíocre,
mas na reivindicação mais obstinada. Religião ou crime, todo esforço humano
obedece, finalmente, a esse desejo irracional e pretende dar à vida a forma que
ela não tem. O mesmo movimento, que pode levar à adoração do céu ou à
destruição do homem, conduz da mesma forma à criação romanesca, que dele
recebe, então, sua seriedade.
Que é o romance, com efeito,
senão esse universo em que a ação encontra sua forma, em que as palavras finais
são pronunciadas, os seres entregues aos seres, em que a vida passa a ter a
cara do destino?
O
mundo romanesco não é mais que a correção deste nosso mundo, segundo o destino
profundo do homem. Pois trata-se efetivamente do mesmo mundo. O sofrimento é o
mesmo, a mentira e o amor, os mesmos. Os heróis falam a nossa linguagem, têm as
nossas fraquezas e as nossas forças. Seu universo não é mais belo nem mais
edificante que o nosso. Mas eles, pelo menos, perseguem até o fim o seu
destino, e nunca houve heróis tão perturbadores quanto os que chegaram aos
extremos de sua paixão,
Kirilov e Stavroguin, Mme Graslin, Julien Sorel ou o
príncipe de Clèves. É aqui que perdemos sua medida, pois eles terminam aquilo
que nós nunca consumamos.
(…)
Camus, Albert. O homem revoltado. Trad. Valerie
Rumjanek. 6ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2005. P. 298-302.