terça-feira, 23 de novembro de 2010

Gilberto Freyre, nós e eles



Segundo Coelho Rodrigues, ao erro da "liberdade incondicional dos escravos, atirados de chofre ao deus-dará, do fundo das senzalas às ruas da cidade", sucedera o de uma república caracterizada pelo predomínio regional do Estado de São Paulo e dos Estados do Sul confederados com São Paulo para "tirarem da União o máximo em troca do mínimo possível", em benefício quase exclusivo de "seus políticos fazendeiros". (...) Se logo após o 15 de Novembro começou a erguer-se, desejoso de poder político, um grupo de militares, quase todos positivistas, particularmente temidos pelo generalíssimo Deodoro, não foi menos terrível o grupo que, quase consolidada a República, se levantou com o mesmo fim no Sul do País, principalmente em São Paulo e formado por "advogados administrativos", "comerciantes políticos" e, segundo Coelho Rodrigues, "particularistas ferozes", que, "à socapa iam puxando a brasa para a sua sardinha e promovendo o braço-de-ferro entre as quatro províncias do Sul, ao mesmo tempo que embaraçavam o porto de Torres e a navegação do Araguaia". (...) Destaque-se a propósito dos políticos civis paulistas que se distinguiram, triunfante a República, em promover interesses econômicos de grupos estaduais ou regionais, nem sempre coincidentes com os gerais ou nacionais, que foram apenas alguns dentre os republicanos históricos de São Paulo. Outros se salientaram sempre pela integridade e até pela intransigente pureza de conduta; e também pela capacidade de considerar os problemas brasileiros como problemas nacionais. Através daqueles e não por intermédio destes, é que a República pareceu de certo modo constituir, nos seus primeiros dias de regímen consolidado, o "Eldorado" de São Paulo, com compra, pela União, do "ramal da São Paulo", o alargamento, realizado pelo governo federal, da bitola da mesma via férrea, a organização da cabotagem de São Paulo com o Rio Grande do Sul.

Freyre, Gilberto. Ordem e Progresso - Processo de desintegração das sociedades patriarcal e semipatriarcal no Brasil sob o regime de trabalho livre: aspectos de um quase meio século de transição do trabalho escravo para o trabalho livre; e da monarquia para a república. 6ª ed. rev. São Paulo: Global Editora, 2004 (Introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil - 3). Pp. 1010-1011. (Grifos meus)



Eu jurei que não me meteria no assunto porque minhas posições poderiam jogar mais querosene na fogueira. Eu consegui ficar na minha quando estouraram as primeiras declarações no Twitter de uma estudante de Direito de São Paulo, Mayara Petruso, e a seqüência de endosso que outras pessoas deram ao que ela falou sobre as eleições, sobre o voto desqualificado dos nordestinos e dos nortistas e sobre suas sugestões de matarem a nós, mortos-de-fome-que-elegemos-um-governo-corrupto-apenas-porque-pensamos-com-nossas-barrigas-e-barramos-a-possibilidade-das-regiões-com-eleitores-esclarecidos-que-votaram-conscientemente-no-futuro-do-país-de-elegerem-um-candidato-mais-preparado. Até aí, fiquei quieto. Essa história já estava circulando antes das eleições mesmo. De certo modo, até esperava algo parecido ao caso da estudante.

Mas decidi que a resposta precisava vir o mais rápido possível depois de ouvir ecos sepultados há muito se espalhando por aí, até nas páginas da Folha de S. Paulo. A coisa estava ficando séria quando acrescentaram os novos elementos fornecidos por Mayara e seus seguidores à fracassada Revolução Constitucionalista de 1932. Daí foram juntando os pedaços das idéias dos outros que, antes dela, já estavam polemizando na internet. Cada vez mais davam acolhida às palavras da tal futura advogada com base no passado. Quando percebi, o assunto já estava virando um problema de saúde pública. Aí eu resolvi entrar na parada.

Pois bem, vamos estudar história...

É conhecida a crítica feita à elite separatista de SP. Eu acho que isso é reduzir demais a questão, hoje. Mas em 1932, nem tanto. Quando Gilberto Freyre publicou Casa Grande & Senzala, em 1933, houve um tanto de panos quentes neste livro jogados em cima da questão da guerra civil que os paulistas quatrocentões travaram com a União Federal um ano antes. Há palavras muito apaziguantes do clima de separação que se criou quando São Paulo decidiu que não seria conduzida, conduziria - non ducor, duco. (E só pra deixar claro, não estou na tentativa de adivinhar as intenções do mestre pernambucano, estou apenas interpretando). Gilberto Freyre precisou escarafunchar a história brasileira e nela encontrar coisas de certa forma até "míticas" para justificar nosso plano maior de união nacional ameaçado por São Paulo: o brasileiro, a brasilidade, o Brasil. Precisava achar elementos que debelassem essas dissonâncias e soassem como um "deixa disso, rapaz" com os separatistas. Ele fez. Mas fez, curiosamente, de uma maneira malandra. Disse que a constância, a regularidade, a calma, a fixação ao solo só teriam condições de existir através do engenho que abrigava o par casa-grande & senzala - anotem aí: zona da mata canavieira, sobretudo nordestina; ao contrário do que ocorreu com o movimento dos bandeirantes que, segundo o próprio Freyre, em alguns momentos, ameaçaram dispersar a união da Colônia e fazer sumir o elemento luso-civilizador no meio das matas, pois bandeirantes se embrenhavam de tal maneira que nem El-Rey mais poderia encontrá-los - anotem aí: bandeirantes, capitania de São Vicente, futura São Paulo. Mas aí vem a tática do "morde-assopra" de Freyre. Ele sintetiza afirmando que, apesar de seu caráter aventureiro, os bandeirantes provaram seu valor para o plano divinal do Brasil que ainda não nascera através de sua grande mobilidade, de, por conta dessa virtude, sair em defesa dos irmãos mais longínquos - como o caso dos paulistas que andaram muito e foram socorrer os já-quase-brasileiros ajudando-os a expulsar os holandeses das terras do litoral do Nordeste. Grande contribuição deles, sem dúvida, foi também o adensamento da presença branca pelos sertões, sem contar que a expansão das fronteiras coloniais foi obra de quem se metia floresta adentro sem jamais pestanejar. Vejam que aqui Gilberto Freyre diz a paulistas e a pernambucanos: somos todos brasileiros.

Houve quem discordasse disso? Houve. Houve quem achasse esses argumentos furados? Houve. Como exemplo, dou um que nem era paulista. Não foi uma discordância tão bem montada, tão bem trabalhada, tão bonita quanto a fonte da discórdia (Casa-Grande & Senzala), mas Allyrio Meira Wanderley, um nordestino, no seu opúsculo As Bases do Separatismo (1935), levantou o dedo contra Freyre e disse que essa montagem da história brasileira foi arbitrária, foi manca e ilusória. Forçou a barra. Para Allyrio, o "ser brasileiro" ainda era nebuloso demais numa história que se desenvolveu regionalmente. A Confederação do Equador era tão nacionalista quanto a Inconfidência - Nação é aqui onde eu vivo, Pernambuco ou Minas Gerais. A Coroa Portuguesa e, posterior e principalmente, o Império foram os grandes avalistas da união nacional, salvando-a sempre que fosse necessário. Essa tendência de enxergar e escrever a História do Brasil sob a ótica da coesão do país orquestrada pelo Império foi bastantemente gestada durante os reinados de Pedro I e Pedro II (leiam Oliveira Viana). Gilbero Freyre é herdeiro dessa compreensão e esse escopo reaparece em Ordem e Progresso. Mas observem que já estamos discutindo a "construção" do Brasil. Já conseguimos perceber que o Brasil é, também, uma questão de perspectiva. Freyre apontava pra história e dizia: aqui, aqui e nisso ali tem Brasil. Allyrio olhava e dizia: nada a ver com Brasil.

(Honestamente, apesar de ser grande admirador de Allyrio, tenho que reconhecer a astúcia de Gilberto Freyre e reconheço que neste debate específico eu me alio - com restrições - ao sociólogo recifense).

Mas, adiante...

Sim, mas e por que naquele texto que você usou como epígrafe lá em cima eu fiquei com a impressão de que Gilberto Freyre tava malhando os "mano" paulistas? Que bondade de Judas é essa em mediar o resto do Brasil com São Paulo usando aquelas palavras?

Apesar do tom ressentido (não apenas neste trecho, mas em vários outros do livro), Gilberto Freyre deixa claro que houve mérito dos paulistas em se adiantarem e morderem esse pedaço dos recursos da União e conseguirem tantos ganhos para sua região. Não foi apenas por questões econômicas ligadas aos interesses dos barões do café, desejosos de expandir seus negócios, que São Paulo se beneficiou mais do que outros Estados das políticas promovidas pla União. Foi lá também que se desataram, antes de outras províncias, nós cabais como o do trabalho livre assalariado que permitiu a existência, concomitante e posterior à lavoura cafeeira, da indústria urbana. Isso foi decisivo para a largada na frente de São Paulo ao nascer da República. Contribuiu para isso a presença cada vez maior de figuras políticas de caráter mais pragmático, gestor e administrativo no cenário do governo federal, produzidas por uma São Paulo que se modernizava em sua maneira de ver o mundo, diferentemente daqueles políticos retóricos e eloqüentes produzidos pela elite caduca dos patriarcas baianos, caso de Rui Barbosa. Uma nova classe política que fez toda a diferença pois estava munida de outros ideais de comércio, produção, gestão de recursos, estratégias para obras essenciais, e por aí vai.

Em artigo que dorme na caixa-das-almas, no prelo eterno, no curriculum mortis do Jerimum Beta, eu trouxe essa discussão ainda que de forma acanhada e incompleta. Mas vou pincelar: o ressentimento de Gilberto Freyre está no fato de que ele tem de reconhecer que Pernambuco e o Recife viveram seus dias de glória quando precisaram lidar com uma vertente tropical do capitalismo que não era tão complicada de se praticar e cujo modelo, o da monocultura escravocrata e exportadora, estava amparado pela pouca turbulência do cenário econômico mundial (e político no que tange às relações entre Colônia e Metrópole) que se manteve estável até os idos do século XVIII, quando no XIX entrou em franca decadência. Esse longo intervalo meio que acumulou "vícios" na família patriarcal, dando a ela a impressão de ser impossível sua queda. Ao discorrer sobre esse tempo, a idéia sugerida por Gilberto Freyre é de que a relação do nosso presente, do Sul-Sudeste rico e desenvolvido e do Nordeste pobre e atrasado, era completamente invertida. Mas quando a mesa virou, tomou de surpresa os sinhôs e as sinhás. Pois, enquanto São Vicente (depois São Paulo) permaneceu a prima pobre do Nordeste açucareiro, no romper dos novos tempos, quem já estava em cena não era mais a cana e sim o café paulista. Mas aqui surge uma pergunta: mas se São Paulo, que estava agora na dianteira produzindo café sob o (quase) mesmo esquema da cana nordestina - latifúndio, monocultura, trabalho, já livre, e regime de exportação - então por que as coisas foram diferentes por lá? Por que o café, ao entrar em decadência, como a cana entrou no Nordeste, não afundou São Paulo também?

A resposta eu dou formulando com a ajuda do próprio Freyre. O tempo de maturação de uma cultura baseada no café não foi suficientemente largo, em São Paulo, para criar a mesma relação que a lavoura da cana criou no Nordeste. Freyre apresenta quase - quase não! - uma civilização desenvolvida pela cana. Um modo de viver e morrer. Um modo de família. Um modo de estar no mundo. Além de não haver esse tempo, São Paulo enriqueceu com o café num momento gritantemente distinto daquele vivenciado pelo Nordeste. A forma de se enxergar o capitalismo era outra. Mas, muito mais que isso: a forma de ver o mundo era outra. Era de um tempo que se distanciava daquele tempo da lavoura de cana, um tempo que se acelerava em relação a este. São Paulo aprendeu a lidar com dinheiro (o seu dinheiro!) e com negócios no melhor momento do Brasil: a passagem do século XIX para o XX. Num momento em que a República laicizava tudo, secularizava as coisas. Onde as pessoas não guardavam mais dinheiro em botijas e enterravam nas grossas paredes das casas-grandes antes de morrerem - e quando um sortudo tinha o privilégio de recebê-la de presente da alma do defunto, ao desenterrá-la o dinheiro não valia mais nada. Agora tinham os bancos atualizando os valores diariamente, corrigindo os juros das aplicações. Dinheiro parado era dinheiro morto. Dinheiro agora era capital; e capital gerava capital. Terra era capital e não um território indivisível e sagrado. Esse novo capitalismo, São Paulo aprendeu-o fazendo. E a classe que resultou disso soube muito bem transitar para outro nível quando o café deu sinais de falência. Eu diria até que ela antecipou esse processo. Ao contrário da visão freyriana de que o patriarcado buscou permanecer a si mesmo o máximo possível.

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Desvios e explicações à parte, voltemos ao que interessa. Não é preciso muito esforço para entender que o Mestre de Apipucos via com certo receio o advento da República. Neste ponto, sua perspectiva é a de um conservador. O pacto federativo, na verdade, teria provocado um grande ensejo para aquilo que ele terminava condenando: a autonomia exagerada das unidades federativas. Como afirmei antes, a visão do Império e do Imperador, montada e herdada sobretudo do Segundo Reinado, corroborada por Freyre no séc. XX, é respectivamente a de um sistema político eqüânime, porém duro; e da figura paternal e paternalista de Pedro II. Como sistema, atuava contendo os ânimos das regiões mais exaltadas em detrimento das outras (a ferro e fogo, diga-se de passagem). Como Pai, saía sempre em defesa dos mais pobres, protegendo-os das ganâncias dos poderosos. Onde o conservadorismo de Gilberto Freyre me parece "revolucionário"? Em termos simples e grosseiros, diria que no instante em que ele lembra aos republicanos tarados pelo desenvolvimento e pela aceleração do país rumo ao futuro prometido no Hino Nacional que há coisas, detalhes mínimos, que vocês, desenvolvimentistas, esqueceram: há milhares de pobres, ex-escravos, mestiços, vivendo miseravelmente nas cidades; gente passando fome a juntar de pá. A República se punha tão progressista que ficou cega, comportando-se como quem não vivia num país onde as questões sociais mais elementares estavam a todo momento clamando por soluções. Comportou-se assim em vários pontos: tentou a duras penas modernizar o câmbio, ao que Gilberto Freyre censurou: modernizar uma coisa que quase não existe - a moeda nacional? O progresso está na indústria urbana? Mais importante é valorizar primeiro atividades como a agricultura e a pecuária! Posto que as políticas paternalistas de apoio aos desvalidos eram características do Império, é aí que se expõe o tal "conservadorismo revolucionário": defender o Império e defender os pobres dentro de um ambiente que os esqueceu, mas que ainda assim se achava a coisa mais adiantada do mundo, era mais revolucionário do que qualquer idéia ou prática republicanas. Ainda em 1950, Juscelino Kubitschek, apesar de tudo, também não entendeu essa mensagem quando resolveu abrir estradas pelo país todo quando só agora, em 2010, "qualquer miserável pode ter um carro".

Engraçado como os livros de história, ao tratarem da tal República Velha - essa em que as unidades federativas ganharam força e autonomia, quase ameaçando a União - ressaltam logo a figura do Coronel nordestino, esse que você acha em qualquer romance de Jorge Amado. Esquecem que Coronéis também existiram no Sul e Sudeste, travestidos com outros panos, mas existiram. Esquecem de dizer que foi a República de 1889 que favoreceu o surgimento deles e de dizer, principalmente, que quem mais se beneficiou dessa República foi justamente o Sul e o Sudeste (leia-se "São Paulo").

Pois foi! Chegar agora e bradar que São Paulo carrega os pobres-miseráveis-banguelas-analfabetos-que-votam-pelo-bolsa-família é muita arrogância. Pois mesmo ressaltando o pioneirismo por contingências históricas, sociais e culturais de São Paulo e seu possível mérito em ganhar bônus junto às receitas da União após o 15 de Novembro, ainda assim Gilberto Freyre apresenta um quadro desigual e injusto da condução que os paulistas e sulistas de um modo geral deram às políticas nacionais. Em outras palavras, São Paulo merecia, mas também abusou. Acham cruel minha fala? Pois acompanhemos:

Em livro publicado em Paris em 1909, Le Brésil au Xe Siècle, Pierre Denis fixou em páginas menos de sociólogo da economia que de economista-geógrafo, alguns dos traços característicos da situação brasileira durante os primeiros anos da República. Inclusive o que havia de postiço num protecionismo a serviço de poucos e contrário, quase sempre, ao interesse mais ampla e autenticamente nacional (Freyre, 2004, p. 724).

Sim. A defesa exaustiva do desenvolvimento da indústria nacional foi bandeira dos republicanos. Positivistas em sua maioria, fiavam-se no progresso material guiado pela industrialização. Os primeiros focos dela, no Sudeste e Sul, surgiram tímidos e, para sobreviver, garantir sua existência e proliferar, precisavam de um protecionismo fiscal que impedisse que produtos estrangeiros, mais baratos sem as altas tarifações, fossem escolhidos pelo consumidor nativo. Uma indústria nacional incipiente e pouco competitiva não teria como enfrentar os produtos estrangeiros. Então vamos valorizar o que é nosso! Assim é que somos autenticamente nacionais! Mas naquele contexto isso soou vazio a muitos brasileiros. Continuando de onde parou o trecho acima, temos:

Era assim que se tributavam proibitivamente - como já destacara o Jornal do Commercio - os tecidos de lã, sem que o País possuísse lanifício e realizasse a criação sistemática dos lanígeros; os chapéus-de-chuva, para que, por preços módicos, os fabricantes brasileiros importassem os cabos, a armação, a seda cortada em triângulo, resumindo-se a fabricação nacional desses artigos em "juntar as partes componentes". O mesmo quanto a papel pintado. Quanto a fósforos. Com relação aos fósforos, o Brasil, país de florestas inexploradas, dava-se ao desfrute de importar da Noruega a madeira em pequenas lâminas.

Tratava-se de uma indústria nacional em parte carnavalesca; e cujo progresso era antes ficção que realidade. À Exposição de 1908 não faltou assim alguma coisa de bovarístico; e os amazonenses e paraenses que se aventuraram a visitá-la, vindos do extremo Norte ao Rio de Janeiro em patrióticos vapores do Lloyd, devem ter sentido de perto a crueldade de um protecionismo que para eles e outros brasileiros de pouca ou nenhuma indústria manufatureira não significava senão aumento de preços, vida cara, existência precária.

O Estado do Amazonas, por exemplo - notou-o o barão d'Anthouard - não tendo indústria manufatureira, vinha pagando aos Estados manufatureiros da União, sob o regímen protecionista, "verdadeiro tributo": "un véritable tribut, afin de leur réserver son marché". E é curioso ter sido necessário aparecer um francês para destacar em livro que havia nesse desajustamento inter-regional, no Brasil, reminiscência dos chamados pactos coloniais entre metrópoles e colônias (pp. 724-725 - grifos em negrito meus).

Acho completamente inútil repetir com outras palavras o que está mais que claro acima. Mas é assim que teses de doutorado são feitas todos os dias no mundo. Então vamos lá: a miraculosa e messiânica indústria nacional, que, de longe, dificilmente atenderia a demanda de abastecimento do mercado interno, era protegida pelas leis fiscais dotadas pela União. Para quem tinha indústria no seu Estado, massa! Mas a gigantesca maioria do país não tinha. Resultado é que, além de termos uma indústria que macaqueava os produtos e que de nacional tinha quase nada consistente que justificasse esse ufanismo protecionista, o prejuízo para quem necessitava adquirir bens de consumo, como a simples comida, ficava exatamente nas mãos de quem era o real motivo de um nacionalismo de verdade: os brasileiros. Vamos mais uma vez com Freyre:

Coincidiu, entretanto, com a Exposição de 1908 do Rio de Janeiro - espécie de parada ou exibição de progresso estreitamente industrial e metropolitano num país em que se fizera a República, alegando-se sobretudo, contra o Império, o seu caráter unitário, a centralização do seu governo, o abandono das Províncias pela corte, o desprezo dos agricultores pelos políticos demagógicos do Rio de Janeiro - uma petição ao Congresso Nacional do comércio do Amazonas que outra coisa não foi senão clamor de colônia contra abusos de exploração metropolitana. Por essa petição tornou-se evidente o desenvolvimento, no Brasil, de um imperialismo econômico da parte do Rio de Janeiro e, talvez, já, de São Paulo, com relação a Estados inermes, pior, sob mais de um aspecto, para esses Estados, que o imperialismo político da corte com relação às antigas províncias. Para a população do Amazonas, com o protecionismo, favorável sobretudo ao Rio de Janeiro e a São Paulo, um tano menos, a Minas Gerais e ao Rio Grande do Sul, e, ainda menos, a Pernambuco, os direitos de importação haviam aumentado de 562% sobre o arroz, de 383% cento (sic) sobre a batata chamada inglesa, de 122% sobre a cebola, 161% sobre o feijão, de 117% sobre a manteiga, de 50% sobre a carne em conserva. O mesmo com relação aos panos grosseiros. (p. 725 - grifos em negrito meus)

O arremate vem da seguinte forma:

Com semelhante aumento de custo de vida, em regiões incapazes de se compensarem em parte desse aumento por meio de uma industrialização real ou fictícia, o progresso nacional no Brasil, sacrificado à mística pan-industrialista - isto é, manufatureirista -, tendia a tornar-se um paradoxo: isto é, um antiprogresso. Um antiprogresso, além de um perigo para a ordem econômica de um país da extensão do Brasil. Para a ordem econômica, para a ordem política e para a ordem social. (p. 725 - grifos em negrito meus)

O perigo de cair novamente no mesmo erro vem se repetindo e repetindo ao longo da história do Brasil. Como disse noutro texto, a estranheza causada com a leitura de Ordem e Progresso é de que o tempo dá voltas. Nesses últimos dias há uma pandemia econômica nacional sobre cuja solução tanto governo de esquerda quanto opositores de direita se encontram de acordo. Trata-se do Dólar barato que fez com que o Real se fortalecesse. A lógica é quase a mesma posta por Freyre sobre a indústria no começo da República. Setores quase exclusivamente voltados à exportação (principalmente do agronegócio) sabem que comercialmente seus produtos são simples (grãos de soja, por exemplo), não possuem valores agregados como aqueles da indústria de tecnologia de ponta e que, portanto, são vulneráveis demais às flutuações no câmbio. A única vantagem que lhes cabe é exportar com o Dólar mais caro. Nos jornais, a notícia é de que a valorização do Real e a queda do Dólar é ruim para o Brasil e como brasileiros devemos nos preocupar com esse cenário ruim para nossa economia. Mas não tratam, por exemplo, do bom momento da indústria nacional para adquirir máquinas a preços mais baratos para produzir mais e melhor aqui no país. Ou de que os consumidores-povão podem ter acesso a bens importados. Ou de que peças de informática ficam mais baratas a ponto de baratear computadores que, conseqüentemente, aumentarão a presença nos lares brasileiros. Há, porém, uma diferença essencial quanto às políticas trabalhistas durante a República. Hoje, a imprensa e os economistas brasileiros se dão ao trabalho, pelo menos, de defender o Dólar forte com vistas ao maior lucro das exportações nacionais utilizando o argumento da proteção do trabalho e do trabalhor nacional. Por esse raciocínio, a defesa abrange a manutenção dos empregos que dependem desses setores de comércio externo. Pois bem. Na República, sequer havia legislação trabalhista. O nacionalismo dos industriais não incluía o elemento mais nacional na produção, qual seja, o trabalho do brasileiro. Se lermos alguns pedaços de Ordem e Progresso teremos uma boa noção de como vivia o incipiente operariado nativo, no mais completo abandono.

Eis que, como vimos, no fim do XIX e começo do século XX, o Sul e Sudeste tiveram toda a chance e o favorecimento para adiantarem e desenvolverem sua indústria. O governo federal, notadamente administrado por representantes dessa região, deu aval a esse protecionismo nem um pouco patriota. Com relação a São Paulo, Gilberto Freyre termina sentenciando:

Embora não houvesse ainda no Brasil dos primeiros anos da República nenhuma área de concentração industrial-manufatureira que lembrasse a dos Estados Unidos, mas, ao contrário, uma dispersão que a Pierre Denis pareceu "extrema", encontrando-se "minúsculas fábricas até em pequenas aldeias", mesmo assim parecem ter se acentuado, sob o protecionismo, desequilíbrios prejudiciais à unidade inter-regional. Tais desequilíbrios viriam a culminar, em época mais recente que a considerada neste ensaio [1957], no império industrial-manufatureiro concentrado em São Paulo, dentro da área supermetropolitana formada pelo conjunto manufatureiro-urbanístico distrito federal - São Paulo. (p. 726)

Obviamente, Gilberto Freyre não levará às últimas conseqüências o teor dessas afirmações. Reconhece que as políticas de proteção à indústria nacional geraram bons resultados na soma de todos os fatores. É bom deixar claro, mais uma vez, que apesar dos abusos que o protecionismo causou, era muito difícil que outras medidas fossem tomadas dentro da República. São Paulo era a bola da vez, tinha todo o prestígio econômico consigo em função do seu café. Qualquer outro Estado ou região que estivesse na mesma situação naquele momento não agiria de outro modo. Talvez a melhor opção fosse uma política centralizadora semelhante à do Império que, segundo Freyre, jamais permitiria que qualquer região se sobrepusesse às demais. Mas o mais importante desta discussão é evidenciar o desenvolvimento desigual, o tratamento diferente que a União Federal dispensou ao Sul e Sudeste. As elites açucareiras do nordeste já não possuíam o mesmo poder de barganha de antes. E, sinceramente, esse inconformismo da mudança do eixo político e econômico para o Brasil meridional perseguirá Gilberto Freyre em quase todos os seus livros.

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Ocorre que, tendo São Paulo e o Sul-Sudeste, ganhado o filé dos investimentos da União durante, pelo menos, as três primeiras décadas da República, chegamos à situação do rompimento daquela política do Café-com-Leite, onde São Paulo revezava-se no poder com Minas Gerais (eu acho que quando o PSDB fala hoje de "alternância de poder" é com saudades dessa época). Como sabemos, foi um gaúcho nada eugênico que furou esse bloqueio, Getúlio Vargas. Não estou aqui dizendo que foi Getúlio o sujeito que solucionou tudo no Brasil. Mas basta que leiamos as mais recentes pesquisas sobre a historiografia brasileira para percebermos o quão centralista foi o seu governo, quase no sentido defendido por Freyre (ou exatamente defendido, não sei adivinhar). Foi Vargas o sujeito que se empenhou firmemente em unir os brasis, mesmo que para isso ele agisse com violência, como fizeram os Pedros. Lembram daquele livro de Allyrio Meira Wanderley? O Autor teve-o cassado, arrumou um processo, uma perseguição por defender o separatismo. (E aqui abro um parêntese: a República de 1889 também agiu violentamente, como no caso de Canudos - caso esse amaciado pela descrição que Freyre dá sobre aquele massacre covarde. Mas não agiu, pelo que se depreende da leitura de Ordem e Progresso, motivada pela união nacional. Foi mais uma violência de adequação aos ideais republicanos, já que Canudos, liderada por um fanático monarquista, era tido como uma vergonha retrógrada dentro da república acelerada e hiper-científica dos positivistas). Imaginem o impacto que o programa de rádio A Voz do Brasil, criado por Vargas, causou na vida dos brasileiros. Pela primeira vez, havia um presidente, de um país, falando a todos os cidadãos como um só. Essa foi apenas uma das medidas iniciadas por Vargas de tentar unir esse território continental chamado Brasil.

Se ele está justificado, se está abosolvido pelo julgamento da História, isso eu não sei. Mas Gilberto Freyre foi um dos grandes entusiastas das políticas nacionalistas de Vargas e, como sabemos, Freyre jamais daria apoio a quem não apostasse num projeto de construção da brasilidade. Pois foi contra essas políticas que São Paulo se insurgiu em 1932. Primeiro, porque já não tinha mais o controle do governo; segundo, porque começou a sentir o peso de um Estado concentrador de poder, o inverso da descentralização criada pelo 15 de novembro. Acho que todos já ouviram falar daquela novela, baseada no romance homônimo, Éramos Seis. É quase uma versão paulista de Guerra e Paz, de Tolstói, com a diferença de que Guerra e Paz é Guerra e Paz e acabou-se! Durante a história, há o surgimento da luta armada que São Paulo desencadeou contra Vargas. Há até uma referência ao movimento do MMDC, das cujas vítimas uma pertencia à família protagonista do romance.











Percebam o uso do símbolo do bandeirante como elemento definidor do paulistismo.



Não tenho dúvida de que os paulistas, depois da derrota, tenham aderido à ideologia da união dos povos brasileiros. Mas em algum momento, isso ficou em estado de alerta, em 1932. Curiosamente, sai em defesa de Mayara Petruso, a tal estudante de Direito, a colunista Janaína Conceição Paschoal que escreve na Folha jogando a culpa pelo novo acirramento regionalista no governo Lula. O incentivo ao "nós contra eles". Diz ainda que Mayara é um sintoma dessas políticas discriminatórias. Que o Brasil é tolerante, pluri-regional e, mesmo assim, um só. É engraçado como ela assimilou a mensagem freyriana mesmo carregando nas costas a memória das intenções da Revolução de 1932 que foi desencadeada por se opor a um presidente que queria unir a nação. Curioso como, em 1932, não era Lula o presidente. É ela quem afirma, também, ser fato que São Paulo banca as políticas sociais que alimentam os banguelas nordestinos. Pô! Mas será que, depois de se beneficiar tanto da União, como vimos, não daria pra São Paulo abrir a mão sem reclamar demais? Cuspiria no prato federal em que comeu?










Na foto, Mayara Petruso em reencarnação passada.


Os senhores e senhoras que me leram acharão fortes minhas palavras, minha argumentação? Terei jogado querosene na fogueira, como não era intenção? É uma dúvida que vou carregar. Mas confesso o quão chato é mexer nesse assunto. É complicado escapar às reações de raiva e de revide. Mas uma resposta a essas pessoas que tentam criar um destino manifesto para a paulistanidade muito dificilmente traria palavras doces. Não sei precisar o quanto de mensagem preconceituosa contra o resto dos brasileiros fazia parte da ideologia dos separatistas de 1932. Acredito que isso não estava em questão. Talvez admitia-se a separação por razões de autonomia financeira e política. Mas o conteúdo agressivo contra nordestinos, por exemplo, não imperava - isso só uma pesquisa poderia dizer, mas minha impressão é de que não houve (se bem que Menotti del Picchia...). Só que hoje, esses sentimentos dos anos 1930 se juntaram a outros de aspecto pejorativo, racista. Vem de pessoas que ajudam a criar o estereótipo da elite-paulista-separatista e agora xenófoba e que precisam, urgentemente, entender que não está apenas na raiz mítica do bandeirantismo de sua gente a explicação de sua pujança econômica. Está também no favorecimento desigual que São Paulo gozou ao longo do começo da República. O Nordeste não ficou pra trás somente por não ter se ajustado aos novos tempos. Ficou para trás, entre muitas razões, por conta das políticas de segregação regional que sofreu. Tirar-nos as mudanças que ora vemos aqui por nossas terras, graças ao governo Lula, é de um egoísmo sem par. Será que a União não pode, ao menos dessa vez, privilegiar outro lugar? E pra deixar bem claro, eu não quero, para minha cidade, o mesmo modelo de desenvolvimento que São Paulo capital aceitou, por exemplo. Não estou com vontade de abraçar um xique-xique. Quero que São Paulo fique mesmo com os paulistas, se assim desejam; que eles continuem conservando a cultura que eles construíram de tanto comer BigMac's e tomar Starbucks e da qual tanto se orgulham.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Ainda sobre o Patrimônio Histórico - I

Trecho de Sobrados e Mucambos, do Mestre de Apipucos, Gilberto Freyre.

Mas antes, duas coisas sobre o trecho:

1. Quem deseja se enredar por essa discussão do Patrimônio Histórico; para aqueles que amam estudar o Brasil e suas nuances familiares, políticas, habitacionais, sexuais e alimentares; para aqueles que desejam encontrar motivos para usar o ponto-e-vírgula (;) nos seus textos, Sobrados e Mucambos é leitura obrigatória;

2. Para quem simplesmente gosta de literatura e deseja ler um dos textos mais aprazíveis, Sobrados e Mucambos.

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O túmulo monumental ou o jazigo chamado perpétuo ou a simples cova marcada com uma cruz de madeira - prolongamentos das casas-grandes, depois dos sobrados, das casas térras, dos mucambos, hoje das últimas mansões ou casas puramente burguesas e do numeroso casario pequeno-burguês, camponês, pastoril e proletário - é, como a própria casa, uma expressão ecológica de ocupação ou domínio do espaço pelo homem. O homem morto ainda é, de certo modo, homem social. E, no caso de jazigo ou de monumento, o morto se torna expressão ou ostentação de poder, de prestígio, de riqueza dos sobreviventes, dos descendentes, dos parentes, dos filhos, da família. O túmulo patriarcal, o jazigo chamado perpétuo, ou de família, o que mais exprime é o esforço, às vezes pungente, de vencer o indivíduo a própria dissolução integrando-se na família, que se presume eterna através de filhos, netos, descentedes, pessoas do mesmo nome. E sob esse ponto de vista, o túmulo patriarcal é, de todas as formas de oucupação de espaço cuja arquitetura, cuja escultura, cuja simbologia continua e até aperfeiçoa a das casas-grandes e dos sobrados dos vivos, requintando-se, dentro de espaços imensamente menores que os ocupados por essas casas senhoriais, em desafios ao tempo. Esses desafios têm assumido, no Brasil, a forma de imagens ou figuras de dragões, leões, anjos, corujas, folhas de palmeira ou de louro, santos, da própria Virgem, do próprio Cristo: símbolos de imortalidade. Símbolos ou figuras que, feitas de mármore, de bronze, de outros materiais nobres, guardam os jazigos privilegiados - jazigos com pretensões a eternos - como que defendendo-os, até que chegue o dia de juízo, de ladrões, de ímpios, de enchentes, de bichos imundos, das tempestades, dos raios, das profanações dos muleques. Um tanto à maneira dos cães defenderem as casas dos senhores vivos, defendidas, também, simbólica ou misticamente, por figura de santos, de anjos, de leões, de dragões e por plantas profiláticas, aquelas outras figuras simbólicas guardam as casas dos mortos ricos ou ilustres. Casas guarnecidas quase sempre de palmeiras. As palmeirás-imperiais (sic) se tornaram, na ecologia patriarcal do Brasil, a marca ou o anúncio de habitação ou casa nobre, com pretensões a eterna ou imortal; e também a marca de cemitérios ilustres ou dos túmulos monumentais.

Vãs pretensões. A ruína ou degradação dos sobrados, das casas nobres, das casas-grandes, dos próprios túmulos ou jazigos de família mais suntuosos, é tão freqüente, no Brasil, que parece revelar, no brasileiro, singular negligência pelo que foi obra ou fundação de antepassado ou de avô morto. Não neguemos ao brasileiro esse defeito que, aos olhos dos entusiastas do Progresso com P maiúsculo, se apresenta, talvez, como qualidade: os mortos que não penurbem (sic) as atividades criadoras dos vivos com as sobrevivências de suas criações já arcaicas. A verdade é que, desintegrado o patriarcado, aquelas casas, aqueles sobrados, aqueles túmulos, só raramente podem ser mantidos por uma sociedade pós-patriarcal ou - como diria o professor Carl C. Zimmermann - "atomística", como, em suas formas dominantes, grande parte da brasileira de hoje. À decadência de famílias por três, quatro, cinco ou seis gerações patriarcalmente opulentas, teria de corresponder o que vem acontecendo, entre nós: a ruína, por abandono, de velhas casas-grandes de fazenda ou de engenho; ou a sua transformação em fábricas, asilos, quartéis, refúgios de fantasmas de subúrbio ou de malandros de cais. A transformação, também, de antigos sobrados urbanos ou suburbanos, outrora habitações de famílias solidamente patriarcais, em hospitais, cortiços, "cabeças-de-porco", prostíbulos, escolas, museus; conventos, colégios, pensões, hotéis, fábricas, oficinas, depósito de mercadorias, armazéns.

Quanto aos túmulos suntuosos - os jazigos de família ou chamados perpétuos - sua conservação é dispendiosa. Excede, freqüentemente, à capacidade econômica dos descendentes dos senhores ricos que levantaram tais monumentos nos dias de sua máxima opulência patriarcal.

Ocorre-nos, a este propósito, a recordação de curiosa experiência: a de termos um dia comparecido ao enterro de velha senhora pernambucana, muito amiga das pessoas mais velhas da nossa famílila materna. Chegados ao cemitério de Santo Amaro verificamos que éramos apenas três os que acompanhávamos o corpo da velhinha ao túmulo. Pelo que pedimos a um estranho que nos ajudasse a conduzir o caixão, da porta do cemitério ao túmulo. Caminhamos cemitério adentro, por entre palmeiras-imperiais, até o jazigo da família da morta.

Era um túmulo com alguma coisa de monumental. Mandara-o levantar família opulenta do tempo do Império. Seu chefe fora ministro de Pedro II. Abandonado, arruinado, sujo, o túmulo patriarcal abria-se naquela tarde de chuva, longos anos depois de falecido o de sobrado de azulejo da Boa Vista, de dono de carruagem forrada de veludo e guarnecida de lanternas de prata, para receber o corpo magro e vestido simplesmente de chita branca com salpicos azuis de uma pobre velha sua neta - cujo enterro não chegara a atrair as clássicas seis pessoas necessárias para a condução decente de qualquer ataúde. Entretanto, por um contraste irônico, aquele corpo de velha pobre e moradora de casa térrea, ia sepultar se não em cova rasa - igual àquela em que, outro dia triste, vimos sumir-se na terra preta, e pegajenta do mesmo cemitério de Santo Amaro do Recife o corpo de um Wanderley antigo e autêntico, velho flamengamente louro e alvo, filho de senhor de engenho do sul de Pernambuco e dono, nos seus dias de senhor-moço, de alguns dos melhores cavalos e de alguns dos mais bravios galos de briga daqueles sítios - mas num jazigo de família com alguma coisa de monumental.

Não era sem razão que a gente antiga do Recife chamava o beco que ia do centro da cidade ao cemitério de Santo Amaro de "Quebra Roço". "Roço" é brasileirismo que quer dizer - ensina Mestre Rodolfo Garcia - "presunção, vaidade, orgulho". E é como o tempo - e através do tempo, a dissolução das instituições, e não apenas a dos indivíduos - age sobre as casas e os túmulos - mesmo os monumentais, e não apenas os modestos: quebrando-lhes o roço. O roço do que o patriarcado no Brasil teve de mais ostensivo, isto é, a sua arquitetura característica - casas-grandes, sobrados, monumentos fúnebres: criações de pedra e cal, de mármore, de bronze com que as famílias patriarcais ou tutelares pretendiam firmar seu binômio não só no espaço como no tempo - vem sendo quebrado à vista de toda gente.

Para acompanharmos a degradação dos valores menos visíveis, característicos da poderosa instituição, é que necessitamos de estudá-la nas suas intimidades mais sutis e esquivas. E essas intimidades não as alcança apenas o estudo histórico ou sociológico; algumas delas só se abrem ao conhecimento ou ao estudo psicológico; várias vezes só ao conhecimento poético, vizinho do cientificamente psicológico. Elas precisam de ser estudadas em nós mesmos ou nos nossos avós - produtos ou reflexos, ao mesmo tempo que animadores, e não apenas portadores, da instituição. Nas pessoas e não apenas nas formas impessoais em que histórica e sociologicamente se objetivou ou materializou o patriarcado no Brasil.


Freyre, Gilberto. Sobrados e Mucambos : decadência do patriarcado e desenvolvimento do urbano. 16ª ed. - São Paulo: Global, 2006. - (Introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil; 2). pp. 45-48.

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Algumas coisas pós-texto:

1. A menção a um antigo Wanderley. Este trecho é da Introdução à segunda edição de Sobrados e Mucambos, de 1951. Sei, por saber e pelas minhas pesquisas, das rusgas e desavenças intelectuais entre Allyrio Meira Wanderley e Gilberto Freyre. Pela crítica (muitas vezes injusta, hoje, mas perdoável, à época) que Allyrio fez ao mestre recifense no seu livro Os Carneiros Cinzentos, é possível ter uma noção de onde ia parar a briga. Mas nunca tive sequer confirmação de alguma réplica a Allyrio. Apenas numa carta, à qual tive acesso, o próprio Allyrio comenta com seu correspondente que alguém lhe teria dito que Freyre ficara muito magoado com os artigos cruéis que o paraibano escreveu. Em Casa Grande & Senzala (1933), Freyre já tratara da família Wanderley, dos seus traços característicos físicos e familiares. Mas aqui em Sobrados e Mucambos, essa menção a esse Wanderley decadente me inspira cuidados. A primeira edição é de 1936, cuja Introdução não fala nada dos Wanderleys. Os artigos de Allyrio só saíram durante os anos 1945-1947. A citação quase incidental do triste fim que esse senhor de engenho teve, que era do sul de Pernambuco, é interessante, apesar da família de Allyrio ser territorialmente outra. Confabulações à parte, a decadência persegue Allyrio Meira Wanderley. Nos seus romances, famílias decadentes. Na vida real, morreu jovem e soterrado pela história intelectual brasileira; os pais do escritor, que não deixavam de pertencer a uma família tradicional e opulenta, terminaram suas vidas pobres, acolhidos na casa do antigo vaqueiro da fazenda dos Meira Wanderley (segundo depoimentos recolhidos em pesquisa).

2. Morte e Vida Severina. Não percam de vista a possibilidade de ler este trecho selecionado em comparação ao poema do também pernambucano João Cabral de Melo Neto. Especialmente o trecho em que Severino encontra com as mortes no Sertão. A tragicidade da decadência patriarcal só fez sentido com a evocação de uma imagem, que ganha mais relevo narrativo porque foi presenciada pelo Autor. Percebam como cada elemento faltante - três pessoas conhecidas da defunta e mais um estranho(!) para carregar o caixão até o túmulo, e não seis; a roupa fúnebre - aumentam no leitor a impressão de decadência e de como eles aparecem agigantados em importância de simbologia para essa outrora tão opulenta elite. Perguntem-se se há o sentimento de alguma perda simbólica para os lavradores que enterram o agricultor no poema de João Cabral. Ironicamente, há um ganho material: a terra que ele nunca teve agora ELA O TERÁ. Não quero aventar a possibiliadade de que, brutalizados pela vida árdua, agindo como bichos de um romance de Zola, os camponeses perderam o apelo ao sagrado enterrando seus mortos de qualquer jeito, sem qualquer consideração. Mas as sensações de degradação ou decadência são quase ausentes já que, no máximo, o que se perdia era o único que se tinha, a vida. Tal qual Gilberto Freyre, Severino é testemunha e precisa sê-lo para levar sua angústia e descrença até o limite vendo toda a desgraça ao longo do Capibaribe, até chegar no Recife. Mas não é "roço" que se quebra nesse trajeto. É a fé, a alma, a sensibilidade, a última coisa que o torna Homem. As duas situações são até muito semelhantes no que diz respeito ao fato de serem vidas humanas que deixam tristemente o mundo. Mas no caso da velhinha, essa dor é muito mais mediada pelo fator simbólico, expressivamente maior em quem é herdeiro de famílias que já estavam muito distantes da materialidade crua de certos aspectos da vida, imersas em preocupações distintas de quem não precisa se deter naturalmente com a vida (o que farei para comer hoje?). O camponês, exatamente por ser materialmente mais próximo dessas necessidades, naturalmente mais ligado à vida, morre mediado por outros elementos - menos simbólicos e mais diretos (breve lição aprendida lendo Tolstói - e fica a indicação: o conto Três Mortes). Percebam ainda que o sentido da história, de quem "está por cima", é de degradação. O futuro é tenebroso. Embora Freyre seja um daqueles que busquem conciliação e enxergue, algumas vezes, com bons olhos as mudanças estruturais na sociedade com a decadência patriarcal, ainda assim, prevalece o sombrio decadentismo. Thomas Mann e José Lins do Rego se encontram muitas vezes aqui. Na contramão, percebam como em Morte e Vida Severina, tipologicamente representante dos que "estavam por baixo", existe a redenção. O futuro se abre, no rebento de uma vida, como possibilidade de conter a boa-nova. Ainda que numa vida severina.

Excurso: continuo essa discussão aqui no Jerimum Beta.

quinta-feira, 29 de julho de 2010

A queda da casa da memória

Turuna Tântalo acaba de me ligar informando que, segundo nosso amigo Zé Bebelo, um prédio antigo daqui de Patos veio abaixo. Derrubaram, na verdade. Antes de prosseguir sobre esse assunto, quero dizer que a notícia disparou a vontade de escrever um texto sobre um negócio já antigo...

Tempos atrás, muitos tempos atrás, um grande amigo meu, colega de curso na faculdade, resolveu estudar o patrimônio histórico na cidade de Areia, na região do Brejo paraibano. Não era um ESTUDO, como esses que envolvem muita gente e recursos. Era um trabalho de coleta de entrevistas dos moradores que ocupavam os imóveis tombados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Areia possui quase toda a área do centro composta de casarões, sobrados antigos, datados ainda do Império (Parêntese - Areia é a cidade natal dos dois Américo: Pedro Américo, o pintor e romancista - sim!, poucos sabem disso; e José Américo de Almeida, o político escritor, o d'A Bagaceira - fecha parêntese). Bom, esse meu amigo tinha um escopo, algo que se faz muito nas Ciências Sociais que eu acho comum, porém não deixo de fazer minhas ressalvas: ele queria testar uma hipótese. Coisa que na verdade quase sempre termina forçando uma realidade a entrar de qualquer jeito numa roupa, e aí não se testa a hipótese, mas simplesmente se procura confirmá-la. O que ele queria confirmar era que os conflitos que ocorriam entre os atuais moradores dos sobrados, desejosos de poder dispor do espaço físico da casa de acordo com suas necessidades, e as autoridades do IPHAN, que proibiam qualquer alteração no imóvel, eram na verdade conflitos de ordem maior. Supunham uma briga de afirmação entre o Novo e o Velho.

O problema é que, segundo entendi das conversas com esse meu amigo, o cidadão que queria derrubar umas paredes e abrir uma garagem para pôr seu carro, ele se comportava como "agente da modernidade". Numa dessas conversas, estava presente um professor da UEPB, pai de outro grande amigo meu. Ao ouvir nosso diálogo, ele imediatamente questionou a proposição. Não seria possível atribuir um caráter tão apurado de consciência a essa ação; imputar a esse propietário a condição de "agente da modernidade" caso ele quisesse abrir uma garagem, algo tão simples e pragmático. Neste caso, uma garagem é apenas uma garagem, pelo que entendi. A demanda pode ser nossa, do nosso tempo, como para o tempo dos escravistas reservar um pedacinho do Engenho pra construir uma senzala era normal; mas não significa que o propietário está imbuído, possesso, do espírito da modernidade quando olha e diz: preciso de uma garagem. Seria necessário um pouco mais para enxergar a afirmação da modernidade neste caso. Ponto para o professor, assim penso. Além do mais, é possível mudar e conservar ao mesmo tempo. Hegel, Marx, Lukács, Max Weber, Walter Benjamin e Gilberto Freyre souberam muito bem disso. Dependendo de como se conduz esse movimento de mudança/conservação, pode se chegar a resultados perigosos ou benéficos. Mas isso é assunto pra outra conversa.

Antes que me apedrejem concluindo, por essas poucas linhas, que eu sou favorável à derrubada de imóveis antigos para atender nossas demandas, eu acrescento à discussão: a quem serve o patrimônio histórico? Ou melhor: quem se lembra dele? Melhor ainda: como se lembram dele? O "como" já deixa claro, em questões de memória, o "quem". Mas o "como" leva a discussão para outro patamar, do qual falarei mais adiante. Só de passagem vou rememorar que patrimônio está mui claramente associado àquilo que pertence ao pai. Já se disse que o Estado brasileiro é patrimonialista, em todos os sentidos. E essa atitude se estendeu ao IPHAN que, ao ser criado por Vargas, definia patrimônio, no fim das contas, como as "coisas do pai". Num nível um pouco mais simbólico, o que se erguia forte, imponente, sob os auspícios dos patriarcas senhores de engenho da Colônia; depois sob o espírito do Pai-Imperador, precisava ser preservado como totens sociais para lembrar a todos a presença do pai, mesmo morto. O culto aos defuntos, como donos das vidas dos vivos, já foi amplamente discutido por Gilberto Freyre em Casa-Grande & Senzala. Eu me lembro de ver fotos dos avós mortos nas paredes das salas das casas. E dizer assim parece tão longe, quando na verdade isso ainda existe por aqui.

No caso específico de Areia, vou pôr aqui minha leitura particular. E peço mais uma vez que esperem antes de me apedrejarem.

Todos os casarões, absolutamente todos, ninguém duvide que pertenciam a senhores de engenho da região. A escravos é que não eram. A única coisa em pé na cidade que remete diretamente a uma construção erguida para e pelos escravos é uma igreja, a Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, mais afastada do centro onde estão os casarões (ainda que se possa dizer que as senzalas também eram erguidas para e pelos escravos). Para os senhores, havia outro templo, mais próximo. Convido-lhes a conhecerem a cidade de Areia e depois me contarem qual das igrejas é a mais preservada, ornamentada, arquitetonicamente mais bem erguida. Dou uma garrafa de Bruxaxá de presente a quem acertar.

Se, por acaso, a idéia seja manter de forma inerte esses monumentos tombados, é difícil defender que assim eles permaneçam pelos séculos dos séculos. Sobretudo se eles ficarem nas mãos de particulares. E pelos meus instantes de revolta, muitas vezes defendi que passassem com um trator no centro histórico de Areia e varressem aqueles casarões. Afinal, boa parte da memória dos cidadãos do município que mora numa área afastada do centro em casebres muito modestos e não-tombados (porque não-históricos) está ligada à memória dos potentados dos sobrados. É presumível, pela coloração da pele dos que moram à margem do centro tombado, de que maneira eles poderiam se lembrar daqueles casarões.

Mas felizmente, graças à minha aproximação "conservadora" de Gilberto Freyre, eu penso doutro jeito sobre o tema. Primeiro, que o Estado é quem deve tutelar esse patrimônio histórico. Isso acaba, até certo ponto, com o problema de alterações estruturais dos imóveis. Segundo, que esse mesmo Estado deve fomentar o espaço desses prédios históricos como verdadeiro território de disputa dos que, de alguma maneira, se lembram deles. A casa, o engenho, a usina, a fábrica, mais do que lugares de expiação para muitos, representam espaços de memórias conflitantes. Fazer com que essas memórias venham à tona, mediadas pela pesquisa histórica, resulta em algo importante na reapropriação dos antigos partícipes (ou dos herdeiros) daquele espaço. Como mostra Freyre, foi na casa, na repetida luta do dia-a-dia, que tudo se construiu. Mesmo que tenha prevalecido a força do patriarca sobre as mulheres, as crianças ou os escravos, dizer assim é simples demais. As tramas, os enredos, o que se perde pelo cotidiano porque é pouco digno de nota escrita-documental - aí reside o colorido das memórias em conflito. São as senhoras de engenho que se aliam aos filhos mais velhos para destronar o senhor de engenho; são as tapiocas, os alfenins, a cocada, a imbuzada que aliam as pessoas nas conversas de cozinha que podem decidir as vidas e as mortes de muita gente; são as escravas que amamentam os sinhozinhos e contam histórias de reinos encantados. Todo esse universo está em jogo e deve ser evocado para esses espaços hoje. Esse é o "como se lembrar" a que aludi acima. A posição da memória que demonstra a sua relação com o objeto - de superioridade ou de inferioridade. Mas hoje, ela deve ser impulsionada para que se mostre que não existe mais a prevalência, ou pelo menos não deve mais existir, das mesmas relações hierárquicas do passado. E até a memória da dor deve ser trazida para que se diga que "aqui se sentiu dor" para que a argamassa dessas paredes expresse essa dor. É claro que existe o sagrado direito de quem queira esquecer e deixar esquecido. Mas quem quiser lembrar, que conte sua versão para que seja acrescida à memória do prédio. Essa é a minha atual noção de patrimônio histórico: mantenha-se o máximo de coisas em pé mas que jamais se mantenha a neutralidade poeirenta das estátuas que nada falam.

O IPHAN tem adotado novas prerrogativas para definir patrimônio histórico. Já foi um avanço. Aqueles chamados patrimônios imateriais terminam por ser a grande sacada do que defendia Gilberto Freyre. Estes, mais do que as construções em tijolos, quase sepulcros da memória, possuem a dinâmica do conflito e da exaustão do cotidiano entranhados na alma. Sejam desde a feijoada, as festas do bumba-meu-boi, ao aboio do vaqueiro na caatinga. Estão para além dos monumentos.

Agora, o caso particular, que motivou a escrita desse texto. Trata-se da derrubada de um casarão que fica no "centro histórico" de Patos. Coloco as aspas porque oficialmente ele não existe. A memória, ou as memórias, ligadas a esse casarão eu não conheço. Não sei o quanto delas foi reivindicada. A única coisa que sei é que ele pertenceu (isso eu suponho pelas informações coletadas) à família do escritor patoense Allyrio Meira Wanderley. Vocês certamente já devem ter ouvido falar dele aqui no blogue. Allyrio foi um romancista, ensaísta, crítico literário e escritor ligado ao marxismo no Brasil que, depois de morto precocemente (com 49 anos em 1955), desapareceu do cenário intelectual brasileiro. Atribuo seu sumiço a duas grandes coisas: desapego pela própria obra, o que o levou a não ter muito interesse em promovê-la, sem se associar a "igrejinhas" de intelectuais - isto fruto de um grande orgulho na defesa de suas posturas ideológicas; e segundo, não sei se como conseqüência do motivo anterior, ao escanteamento que ele sofreu após sua morte dentro da história intelectual brasileira. Ironicamente, na mesma rua onde ficava o casarão de sua família, existe o casarão de Ernani Sátyro. Este, preservado, transformado em museu e sede da Fundação com seu nome, fundação de intenções com dinheiro público duvidosas. Ernani Sátyro, o acolhido no colo de poderosos: durante a Ditadura Militar, à qual deu total apoio, foi nada mais nada menos que presidente da UDN, líder do governo no Congresso (???) nos anos de Costa e Silva, quando presidiu o Superior Tribunal Militar (somente!!) e ainda foi interventor do Estado da Paraíba. Belo curriculum.

O casarão dos Meira Wanderley é citado em dois romances de Allyrio, Sol Criminoso (1931) e Ranger de Dentes (1945). Naquele, aparece nas primeiras linhas, quando é narrado o episódio de uma chuva gigante que se abate sobre Patos e as águas derrubam algumas telhas da casa; e no fim do livro, quando o Autor põe, para referendar o onde e o quando concluiu o romance:

"Palácio", 5 de junho de 1925.
Patos - Parahyba do Norte.

As aspas são por conta de Allyrio. Acredito que para retirar a caracterização oligárquica, imperial. Era mesmo um modo carinhoso, familiar de como fora batizado ou de como o então jovem escritor, com 19 anos, o chamava (ele que nasceu em 1906).

Em Ranger de Dentes, existe a mesma menção no começo do livro, a chuva que derruba parte das telhas. Na verdade, o romance mais tardio é uma "esticada" do primeiro, Sol Criminoso. Mas isso é assunto pra outro lugar, assim espero...

Pra concluir, eu queria meio que abandonar toda essa verborragia daí de cima e dizer apenas que, como pesquisador da obra de Allyrio, sinto muito pela extinção daquela casa. Para ele, que em seus romances sempre apresentou personagens saudosos de sua terra natal, agora não tem mais lar onde habite sua memória. Tomara que encontre o tronco de uma oiticica onde possa dizer

A minha sombra há de ficar aqui!

quarta-feira, 23 de junho de 2010

E agora?

José

E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, Você?
Você que é sem nome,
que zomba dos outros,
Você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?

Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?

E agora, José?
sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio, - e agora?

Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?

Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse,
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse....
Mas você não morre,
você é duro, José!

Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde?


Carlos Drummond de Andrade

sexta-feira, 18 de junho de 2010

São Turismo João em Patos

De repente, como se um redemoinho tivesse deitado raízes no centro do povoado, chegou a companhia bananeira perseguida pela revoada*. Era uma revoada revolta, alvoroçada, formada pelos desperdícios humanos e materiais dos outros povoados; sobras de uma guerra civil que cada vez parecia mais remota e inverossímil. A revoada era implacável. Contaminava tudo com seu movimentado fedor das multidões, fedor de secreção à flor da pele e de recôndita morte. Em menos de um ano despejou sobre o povoado os escombros de numerosas catástrofes anteriores a ela mesma, espalhou pelas ruas sua confusa carga de desperdícios. E eses desperdícios, precipitadamente, ao compasso desajeitado e imprevisto da tempestade, iam selecionando-se, individualizando-se, até converter aquilo que fora um beco com um rio num extremo e um curral para os mortos no outro, em um povoado diferente e complicado, feito com os desperdícios dos outros povoados. Ali vieram, confundidos com a revoada humana, arrastados por sua impetuosa força, os desperdícios dos armazéns, dos hospitais, dos salões de diversão, das plantas elétricas; desperdício de mulheres solitárias e de homens que amarravam a mula numa forquilha do hotel, trazendo como única bagagem um baú de madeira ou uma trouxa de roupa, e em poucos meses tinham casa própria, duas comcubinas e o título militar que lhes ficaram devendo por terem chegado tarde à guerra.

Até os desperdícios do amor triste chegaram até nós na revoada e construíram pequenas casas de madeira, e fizeram primeiro um cantinho onde meio catre era o sombrio lugar para uma noite, e depois uma ruidosa rua clandestina, e depois toda uma vila de prostituição dentro do povoado.

No meio daquela ventania, daquela tempestade de caras desconhecidas, de toldos na via pública,
de homens trocando de roupa na rua, de mulheres sentadas nos baús com os guarda-chuvas abertos, e de mulas e mulas abandonadas, morrendo de fome no estábulo do hotel, os primeiros éramos os últimos; nós éramos os forasteiros; os adventícios. Depois da guerra, quando viemos a Macondo e apreciamos a qualidade do seu solo, sabíamos que a revoada havia de vir alguma vez, mas não contávamos com seu ímpeto. De modo que, quando sentimos que chegava a avalanche a única coisa que pudemos fazer foi pôr o prato com o garfo e a faca detrás da porta e sentar-nos pacientemente a esperar que nos conhecessem os recém-chegados. Então apitou o trem pela primeira vez. A revoada virou-se e saiu para vê-lo e com a volta perdeu o impulso, mas alcançou unidade e solidez; e sofreu o natural processo de fermentação e se incorporou aos germes da terra.

(Macondo, 1909)




Márquez, Gabriel García. La Hojarasca. Sexta Edición. Barcelona: PLAZA & JANES, S.A., 1979 (tradução livre).


*La Hojarasca, literalmente, a folharada, traz dificuldade em traduzir pro Português. As edições brasileiras mais antigas trazem como título O Enterro do Diabo. Mais recentemente, traduziram por A Revoada. Achei boa idéia acompanhar
.

domingo, 16 de maio de 2010

O Economista Engenheiro

Se não existe um "pré-script", eu acabo de inventar.

- Eu faço campanha pró-Dilma Roussef.

Dúvidas?

Fiquem agora com a bela propaganda sobre a Educação meritocrática criada por Nosferatu e em seguida com a sua Aula Inaugural do ano no curso de Engenharia Econômica (ou seria Economia Engenhática) que ele deu sobre porcentagem na Sorbonne-Nouvelle.






Em tempo: até que se mostre o contrário, José Serra não possui registro em nenhum conselho de Engenharia ou Economia do país. Legalmente, ele não pode divulgar, seja com que fim, que exerce profissão dessa natureza sem o devido registro num dos conselhos. Breve lição de lógica: todo Advogado é Bacharel em Direito, mas nem todo Bacharel em Direito é Advogado. A idéia é por aí...

sábado, 15 de maio de 2010

Assalto à Beleza

Vou recomendar a todos que leiam esse texto escrito, num dos raros momentos bons, n'O Estadão.

E dizer também que cidades como João Pessoa passam por essa voracidade extrema de imóveis, onde tudo que se oferece é o suficiente para não mais se sair de casa.

Recomendo também isso:

Minha terra

Saí menino de minha terra.
Passei trinta anos longe dela.
De vez em quando me diziam:
Sua terra está completamente mudada,
Tem avenidas, arranha-céus...
É hoje uma bonita cidade!

Meu coração ficava pequenino.

Revi afinal o meu Recife.
Está de fato completamente mudado.
Tem avenidas, arranha-céus.
É hoje uma bonita cidade.

Diabo leve quem pôs bonita a minha terra!

Manuel Bandeira
(1886-1968)

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Conforto Inútil

Que seria de mim sem as cores que não vi.
Ao certo não mais as veria,
Nem as cores que trago nos olhos
Ou as outras que não vivi.

Assim, submerso em negro manto
E absorto às ilusões da calmaria,
Eu te possa mostrar com maestria
Os afagos na dor que entorna o canto.

Mas receio, contudo, que seja tudo inútil.
Que esse estágio de sobrevivência seja fútil
À capacidade de sofrer de alguém vivente.

E mesmo em escuridão inebriante,
Na ausência de qualquer gozo deflagrante,
Minha tristeza possa seguir em frente.

terça-feira, 27 de abril de 2010

Nada de novo no front

Agora eu entendi qual é a sensação esquisita que a leitura de Ordem e Progresso, do mestre de Apipucos, me causava e eu não fazia idéia do nome dela. É o tipo de sensação que só se compreende quando, ao ler o livro que trata da transição Império-República no Brasil, você hoje se depara com coisas que lhe dão o mesmo gosto que a madeleine de Proust em relação ao passado. Aliás, Proust não é citado aqui de graça, já que o próprio Gilberto Freyre admite pretender fazer, nas entrelinhas, de Ordem e Progresso a Em busca do tempo perdido dos 1870-1920 brasileiros. Se eu tiver paciência escreverei um texto melhor sobre isso.

Pois bem. A sensação, dizia eu, agora sei qual é. É a mesma que Úrsula Buendía, a matriarca de Cem Anos de Solidão, começa a ter quando fica muito velha: a sensação de que o tempo está voltando.

Pelos textos de Reinaldo Azevedo e outros, e os comentários do pessoal nos seus blogues, dá pra se tirar uma medida do que eu digo. Em tempo: o livro de Freyre é recheado de depoimentos de pessoas que viveram os últimos decênios do Império e os primeiros da República.

Agora eu imagino o quanto foi difícil, ou mesmo contraditório, para alguns depoentes de Ordem e Progresso, aceitar a abolição da escravidão. Como diz Turuna Tântalo ao exemplificar as reações de quem defende hoje o latifúndio brasileiro, "onde já se viu dar terra a pequenos produtores?". Idem para "onde já se viu escravo liberto?", em 12 de maio de 1888. Reinaldo Azevedo diz que o direito à propriedade está na Lei. A escravidão também estava. O avatar da Veja ainda diz que o latifúndio é o melhor para a economia brasileira - é ela que fornece as maiores divisas, no agronegócio, para o país. O latifúndio na mão-de-obra escrava do mesmo jeito.

Esse é o tempo que volta, sobretudo em momentos de crise. Quem ouviu o podcast do Jerimum Beta (aqui e aqui) sabe que o anúncio do fim do mundo é sempre associado à transmutação de valores quase sempre impensáveis para o establishment de uma cultura ou sociedade. Essa mudança, quando surge em, digamos assim, "prenúncios pacíficos", quase sempre é condenada, impedida de alguma forma. O problema é que quando ela volta, aí sim ela se apresenta de maneira horrível, sem nenhum semblante pacificador. É assim que a reforma agrária, defendida de longa data por muitos, foi sempre postergada para, depois, voltar de alguma forma com as cenas horríveis durante o Jornal Nacional de loucos fanáticos derrubando cercas, quebrando prédios públicos, bloqueando estradas num melhor retrato de fim dos tempos jamais pintado por Bosch ou por Peter Bruegel. Quem não diria olhando pra isso: meu Deus, que mundo é esse?!

A questão é quando tudo se apresenta sob o manto da crise. Krisis, na cultura grega, é o momento que antecede o julgamento de uma situação - julgar, eu julgo em grego se diz krino. Krisis é, portanto, o impasse. O instante que põe tudo em suspensão até que se decida algo. Quem duvida que foi uma crise gigante a vivida pelos brasileiros do 15 de novembro de 1889, já precedida pelo 13 de maio de 1888? Quem se lembra do pânico instaurado nas elites e do "eu tenho medo!", de Regina Duarte, na campanha que elegeu Lula, em 2002?

Não sei se estou atingindo o alvo com esses exemplos, mas repito: lendo o incrível livro de Gilberto Freyre, é exatamente isso. Não há nada de excepcionalmente novo, é tudo voltando com outra cara. O conteúdo é diferente, mas a forma permanece.

Adendo para futuro-possível-texto: Freyre, ao falar desse momento difícil da história brasileira, se mostra partidário da ideologia de que o Brasil é um país ordeiro. Não sucumbiu aos aventureirismos das repúblicas vizinhas, onde um sujeito fazia um discurso numa praça e se proclamava presidente. Do Império para a República, segundo ele e pelos documentos que analisa, quase nada mudou nos primeiros anos. E parece que assim somos pois preferimos a contemporização ao conflito, sempre. Eis onde agora habita minha pulga atrás da orelha: apesar de minha grande paixão (por que não dizer?) pelo mestre recifense, eu me pergunto o quanto de recalque se acha nesse ossuário de contemporizações...