quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Freyre, Lula e o Brasil

Há dias li esse poema de Gilberto Freyre, escrito em 1926 e publicado no livro Talvez Poesia (1962), mas que está também presente nessas novas edições de Casa Grande & Senzala.

Muito temos discutido aqui, entre amigos, na nossa Montanha Mágica do Sertão das Espinharas sobre bacharelismo, profissões, artífices, política. Temos discutido a imensa incapacidade que as pessoas no geral possuem de achar que um pedreiro não pode ler e decodificar a visão de mundo de um médico ou de um empresário ou mesmo de ele criar uma visão de mundo tão complexa quanto qualquer outra.

Em outras palavras, Gilberto Freyre mandou um recado a Caetano Veloso muitíssimo antes de Caetano dar a fatídica entrevista na Folha de São Paulo, onde ele chamou Lula de analfabeto. Com a palavra, o Mestre de Apipucos...


O outro Brasil que vem aí

Eu ouço as vozes
eu vejo as cores
eu sinto os passos
de outro Brasil que vem aí
mais tropical
mais fraternal
mais brasileiro.
O mapa desse Brasil em vez das cores dos Estados
terá as cores das produções e dos trabalhos.
Os homens desse Brasil em vez das cores das três raças
terão as cores das profissões e regiões.
As mulheres do Brasil em vez das cores boreais
terão as cores variamente tropicais.
Todo brasileiro poderá dizer: é assim que eu quero o Brasil,
todo brasileiro e não apenas o bacharel ou o doutor
o preto, o pardo, o roxo e não apenas o branco e o semibranco.
Qualquer brasileiro poderá governar esse Brasil
lenhador
lavrador
pescador
vaqueiro
marinheiro
funileiro
carpinteiro
contanto que seja digno do governo do Brasil
que tenha olhos para ver pelo Brasil,
ouvidos para ouvir pelo Brasil
coragem de morrer pelo Brasil
ânimo de viver pelo Brasil
mãos para agir pelo Brasil
mãos de escultor que saibam lidar com o barro forte e novo dos Brasis
mãos de engenheiro que lidem com ingresias e tratores europeus e norte-americanos a serviço do Brasil
mãos sem anéis (que os anéis não deixam o homem criar nem trabalhar).
mãos livres
mãos criadoras
mãos fraternais de todas as cores
mãos desiguais que trabalham por um Brasil sem Azeredos,
sem Irineus
sem Maurícios de Lacerda.
Sem mãos de jogadores
nem de especuladores nem de mistificadores.
Mãos todas de trabalhadores,
pretas, brancas, pardas, roxas, morenas,
de artistas
de escritores
de operários
de lavradores
de pastores
de mães criando filhos
de pais ensinando meninos
de padres benzendo afilhados
de mestres guiando aprendizes
de irmãos ajudando irmãos mais moços
de lavadeiras lavando
de pedreiros edificando
de doutores curando
de cozinheiras cozinhando
de vaqueiros tirando leite de vacas chamadas comadres dos homens.
Mãos brasileiras
brancas, morenas, pretas, pardas, roxas
tropicais
sindicais
fraternais.
Eu ouço as vozes
eu vejo as cores
eu sinto os passos
desse Brasil que vem aí.

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Sobre Fim

O amor acabou. Abruptamente findado por um gesto ainda agora incompreendido. Tudo recente, novo demais! Não houve tempo para racionalizar. "Por que ela fez isso?! Como entender?!" É natural que você se pergunte onde errou. Mais! Passada a surpresa no começo, aquela sensação de que o mundo parou de uma hora pra outra, e aí você começa a refazer e ressignificar toda a história do seu relacionamento a partir deste ato de fim que veio dela, a sua perspectiva é a do sujeito que fez tudo por onde as coisas dessem certo. Toda a recontagem é feita assim até que, quando da remontagem do mosaico das coisas antes insignificantes, soltas, dispersas mas agora visíveis, tornadas pistas (é por isso que ela falou daquele jeito tal dia!), até que você percebe que você errou. A única vantagem nesse processo doloroso é que você derrube, no fim das contas, a sua imponência, a sua aguda certeza de que fez tudo o que deveria ser feito.

Para quem já leu a A Dócil, novela do filho de Mikhail, traduzida por Vadim Nikitim pela Editora 34, presente na edição que traz junto a não menos fantástica narrativa O sonho de um homem ridículo, sabe também do que estou falando. A perplexidade do narrador em ainda não saber o que pensar do suicídio da sua esposa, da maneira como ela pôs fim ao amor deles, é evidenciada nas suas primeiras falas. Não sabe como foi acontecer, não aceita que isso tenha ocorrido! A racionalização ainda não chegou, as falas são inconclusas, os pensamentos alheios ao evento entram e saem sem sequer deixar claro o motivo de se pensar em tais idiotices (num momento como esse!). Mas está claro que ela ter se atirado pela janela redefiniu toda a compreensão que ele tinha da vida do casal. E ele vai atrás desse sentido, ele precisa contar (mais para si do que pros outros) uma história que possa substituir a história anterior, aquela do dia-a-dia, nada extrarodinária e que nem precisava ser contada, porque não precisava mesmo. Só se deve contar algo que ultrapassa o ordinário, ou então, que conte o ordinário para mostrar que ele é, no fim das contas, Absurdo.

O dono da loja de penhores (Raskolnikóv matou um tipo desses, todos sabem em inquérito já bem apurado) se apresenta como um cara de vida e hábitos comedidos. Ele cuida com muito esmero do seu negócio e administra com eficiência suas contas. Sabe que não pode levar uma vida de regalias, embora, de acordo com seus cálculos, mais alguns anos de trabalho e economias e ele terá a possibilidade de adquirir uma casa melhor num outro lugar, talvez noutro país; de uma visita mensal ao teatro, única diversão que cabe no seu orçamento agora, ele dará um salto para em cada noite um espetáculo diferente. Não se condena pelas privações no agora quando sabe que depois haverá a redenção material. Ele não é estúpido nem ingênuo. Não é com essas cores que Dostoiévski quer que o vejamos. Se no começo ele se apresenta como alguém cheio de si pelas metas seguras traçadas para seu futuro, essa segurança rui ao contato dele com aquela jovem que um dia chega na sua loja para penhorar alguns bens pessoais (se não me engano, um ícone). Não dá pra dizer que ele se apaixonou. Pelo menos não é o que o narrador afirma. Ele passa a prestar atenção nela depois que ela vai mais vezes na loja. Pôde saber que era estudante, que vivia com duas tias que a humilhavam, que precisava do dinheiro para pôr um anúncio no jornal (não me lembro agora se se oferecia para dar aulas ou para trabalhar de empregada). Num dos diálogos travados entre os dois, ele se apresenta a ela tal como Mefisto se define para o Dr. Fausto, citando imprecisamente Goethe: Eu sou uma parte daquela parte do Todo que quer fazer o Mal, mas cria o Bem.

Agora sim ele distinguia muito claramente o quanto aquele espírito era livre. Mas antes de sabermos se ele se apaixonou por ela, por sua beleza ou por seu jeito de pássaro arredio, ele pensou que lha faria um bem se se casassem. Imediatamente ele calcula o espaço equivalente na sua vida a uma esposa - algo que estava de fato previsto, afinal um sujeito modesto deve incluir uma esposa em seus planos. Mas essa era de início sua preocupação e foi honesto com ela ao deixar claro que o teatro, no máximo, era uma noite por mês, viu? Mas e ela? Aceitou casar-se por quê? Ora, segundo o narrador que está recontando tudo de frente pra trás, foi porque ele era vantajoso, como não? Ele era seu benfeitor e assim queria acreditar para dormir em paz na cama. Ele, nobre cavaleiro, salvaria a princesa encastelada pelas duas bruxas malvadas que queriam casá-la com um comerciante da vizinhança, um porco feio e sem modos. Não! Ele não permitiria essa injúria a uma jovem tão inteligente, tão apta e capaz (implicitamente, capaz dele, do narrador). E ela usaria de suas faculdades perfeitas para enxergar isso, que estava na cara, oras! Ela o escolheu porque, dadas as circunstâncias e o grau de julgamento dela, era o melhor a fazer. Mas aí vem a grande dúvida desse capítulo, que toma o leitor de assalto, que eu achei incrível e que infelizmente a sensação que me causou eu não conseguirei transpor para este texto. O narrador diz que, bem, ponderando tudo dessa maneira, ela só terminaria escolhendo o outro pretendente se fosse apenas por pirraça. Ele diz a si mesmo que ela não fez a escolha errada. Até aí o ponto de vista era exclusivamente dele. Ela não aparece, não temos idéia do que ela achava de cada um. E eis que, ao fim do capítulo e diante das coisas como aconteceram depois, o narrador é invadido por uma angústia enorme: mas e se ela escolheu mesmo, por pirraça, o pior dos pretendentes? E se era assim que ela o via?

O casamento de ambos é cheio de controvérsias. Logo de início, o narrador diz que ela ajudou nos negócios, que era prestativa e que parecia interessada naquele projeto de vida. Mas havia algo nela de incompreensível, uma espécie de insatisfação, um enfastiamento. E não era a necessidade de ir mais de uma vez ao teatro. A sensação de ter um pássaro preso começou a perturbar a mente do narrador, que interpreta todas as falas e todos os atos da esposa como sinais e prenúncios do que viria a acontecer no futuro. Não que ela tivesse tendências suicidas, mas a vida viva que ela queria implicava em outras coisas, em desejos que estavam para além daquele projeto traçado, mas que estavam bem aqui e possíveis de realizar. Além disso, episódios extremos como o que ele acorda na mira de um revólver empunhado pela própria esposa, começam a pôr a discórdia em tudo. Num momento mesmo do texto, ele recupera a vez em que ela conhece um antigo amigo do narrador e de quem ela busca se aproximar e daí surge a desconfiança de traição. Em tempos antigos, esse sujeito causou um grande constrangimento ao narrador e ver a esposa acercar-se dele o enfureceu ainda mais. Termina que ela não o trai, apenas queria causar um mal-estar ao marido (juro a vocês que como faz tempo que li a novela não consigo tirar mais conclusões desse episódio, mas não é tão simplista como eu descrevo de memória - aliás, a história toda é cheia de mais coisas que isso que escrevo).

Ocorre que, aquela criatura livre, que cantava sempre enquanto costurava, definhou ao ponto de adoecer. O narrador conta que entre as febres convulsivas ele se desesperava na tentativa de mudar aquilo, de reverter tudo, dar novamente vida à esposa. Ele até acredita que isso foi possível quando decidiu jogar tudo pro alto e ir embora daquela existência numa manhã em que ela acordou bem. Prometeu isso a ela, prometeu que ia vender tudo e que iriam para a tão sonhada vida pela qual ele tanto lutou. Mas talvez isso jamais desse num efeito positivo. A sensação que se fica é de que havia uma espécie de ódio da esposa por se sentir, desde o começo, como a criatura dócil, assim tratada e vista pelo marido. Era como se houvesse uma gratidão que se expressava às avessas. Ou que ela quisesse demonstrar o tempo todo que não era nem sentimento de gratidão eterna nem o regozijo-do-dever-cumprido que ditam o ritmo de um amor. O narrador, nas linhas em que lhe é concedido o direito de tentar entender tudo, deixa claro que há um conflito de gerações, entre os corações jovens, cheios de vitalidade, cuja disposição para um gesto (o "gesto" aqui tomado na sua acepção plena, como algo quase impensado) de bondade e de sacrifício é motivada pela falta de experiência; experiência esta que os mais velhos têm, mas que conseqüentemente não os leva a agir com gestos inequívocos de bondade e sim sempre pensando no quanto algo que se faz pode dar ou em sucesso ou em fracasso.

Minha angústia pessoal consiste em não querer dar nem tirar a razão de nenhuma dessas posturas; nem poder questionar quem opta por uma ou pela outra...

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Para uma pessoa que me deixou saudades...

Amigos,


há muito tempo conheço essa canção. Talvez uma das mais perfeitas de Pablo Milanés, cantor e compositor cubano. Entre tantas, essa música diz coisas sobre a ausência e saudade de uma pessoa que é mostrada de uma maneira sóbria e ao mesmo lancinante. Varia entre essa admiração dos motivos plausíveis (racionais) pelos quais se gosta de alguém e por aqueles motivos que ninguém sabe quais são, mas que de qualquer forma se sente que se gosta. O receio, sempre de ordem racional, desse amor por tal pessoa, se completa com aquele impulso que faz por onde se lançar de qualquer modo pra cima dessa paixão. A canção está nessas duas tentativas de definição da amada para, no fim, sintetizar num titubeio de racionalidade misturado com delírio de êxtase: ela não é perfeita, mas se aproxima daquilo que eu simplesmente sonhei. Gostaria de compartilhar com todos "El breve espacio en que no estás", música de Pablo Milanés interpretada por Silvio Rodríguez, também cubano. A minha pessoa em questão sabe quem é, saberá. Talvez (eu disse "talvez") ela se supreenda com o fato de que na canção haja a possibilidade de se aceitar "dividi-la" com outras pessoas para que o vazio da vida seja menor. E ela sabe que eu sou chato.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Gilberto Freyre e o tapa na pantera

Essa é uma nota, a nota 73 do capítulo IV, de Casa Grande & Senzala, 50ª Edição (São Paulo: Global Editora, 2005, p. 479), do sociólogo/antropólogo/historiador pernambucano Gilberto Freyre. No corpo do texto no qual a nota é inserida (página 395), o autor trata da incorporação de objetos de culto e de prática religiosos pelos escravos no Brasil, a exemplo de ervas sagradas. Olhem bem como é um Antropólogo, mesmo dos mais (dito) conservadores, na sua pesquisa de campo:


"Entre outras, a erva conhecida no Rio de Janeiro - segundo Manuel Querino - por pungo e por macumba na Bahia; e em Alagoas por maconha. Em Pernambuco é conhecida por maconha; e também, segundo temos ouvido entre seus aficionados, por diamba ou liamba. Diz Querino que o uso de macumba foi proibido pela Câmara do Rio de Janeiro em 1830, o vendedor pagaria 20$000 de multa; o escravo que usasse seria condenado a 3 dias de cadeia. Já fumamos a macumba ou diamba. Produz realmente visões e um como cansaço suave; a impressão de quem volta cansado de um baile, mas com a música ainda nos ouvidos. Parece, entretanto, que seus efeitos variam consideravelmente de indivíduo para indivíduo. Como o seu uso se tem generalizado em Pernambuco, a polícia vem perseguindo com rigor os seus vendedores e consumidores - os quais fumam-na em cigarros, cachimbos e alguns até a ingerem em chás.

Alguns consumidores da planta, hoje cultivada em várias partes do Brasil, atribuem-lhe virtudes místicas; fuma-se ou "queima-se a planta" com certas intenções, boas ou más. Segundo Querino, o Dr. J. R. da Costa Dória atribui-lhe também qualidade afrodisíaca. Entre barcaceiros e pescadores de Alagoas e Pernambuco verificamos que é grande ainda o uso da maconha."

sábado, 14 de novembro de 2009

Nova entrevista com o Prof. João Carlos Cabrío

Semana passada, o emérito Professor João Carlos Cabrío esteve na Unicamp para participar de um evento e aproveitou o ensejo para nos brindar com o lançamento do seu novo trabalho, um compêndio de ensaios sobre as novas produções literárias brasileiras do chamado "mercado editorial independente", intitulado Poesia, pra que te quero? (Editora da Unicamp, 2009, 458 p.)

Da última vez que estivemos em contato, ano passado, o professor Cabrío demonstrou enorme gentileza e concedeu entrevista exlusiva ao Soda Cáustica quando de sua passagem pelo Vale das Espinharas, sertão da Paraíba, cidade de Patos, por onde peregrinava colhendo material para a pesquisa que ora está disponível neste belíssimo livro recém-saído do prelo. O leitor que quiser saber como foi essa entrevista, não espere muito e leia aqui.

Estava, pois, minha pessoa dando sopa em São Paulo quando soube desse evento e decidi dar uma olhada. A curiosidade foi grande em descobrir se o nosso desbravador da literatura das brenhas teria alguma recordação da experiência em Patos. Qual! Bem-humorado, sorridente pela cerimônia de celebração de seu livro, o professor não só se lembrou como me deu a honra de entrevistá-lo outra vez! E as surpresas não param por aí. Acompanhem...

Lau Cariri: Professor, deixe-lhe dizer com que gosto converso novamente consigo.

João Carlos Cabrío: Eu me sinto muito feliz em vê-lo e surpreso também. Vocês andam me seguindo? (Risos)

LC: (Risos) Foi uma coincidência estranha, professor.

JCC: Não vejo seu amigo, ele estava na conversa da outra vez...

LC: Sim, ele está em Patos. Esperava que não se lembrasse, honestamente. Mas me diga, sr. Cabrío, este livro é resultado daquelas pesquisas?

JCC: De fato, é. Foi penoso, mas veio a lume. Mas perceba, não me esqueci jamais. Inclusive, deixe lhe mostrar que coloquei na página dos Agradecimentos o nome de vocês. Não haveria como esquecer... Patos foi extremamente importante para a consolidação das minhas teorias.

LC: (O professor me mostra a página) Obrigado, sr. Cabrío! Em nome de todos que fazemos o Soda Cáustica, eu agradeço! Quanta lisonja! Mas diga, por favor, estou ávido por entender: como foi isso da contribuição de Patos? Foi tão decisiva assim? O que o sr. encontrou lá?

JCC: Foi sim. Por duas grandes razões. A princípio eu poderia dizer que Patos me ensinou que o empenho em analisar a adoção de políticas descentralizadoras facilita a criação do retorno esperado a longo prazo. Isso é salutar para compreender que o cuidado em identificar pontos críticos no acompanhamento das preferências de consumo faz parte de um processo de gerenciamento das posturas dos órgãos dirigentes com relação às suas atribuições. Do lado oposto, mas contribuindo também para a compreensão do problema, é que a consolidação das estruturas estimula a padronização das diretrizes de desenvolvimento para o futuro. Esses fatores foram cabais, modificaram meu modo de lidar na minha pesquisa com a literatura menor como um todo. E eles se encontram lá mesmo, em Patos.

LC: Pelo que entendi, professor, houve um avanço entre as produções no mercado editorial patoense que marca definitivamente essa padronização. Foi isso?

JCC: Perfeitamente, mas não apenas. Eu descobri que, evidentemente, a determinação clara de objetivos promove a alavancagem dos níveis de motivação departamental neste setor.

LC: Ano passado, conversamos detidamente sobre os escritores Wandecy Medeiros, Misael Nóbrega e José Mota Victor. Hoje, tendo o trabalho completo, como ficou sua visão do papel destas obras no contexto da sua pesquisa?

JCC: Acredito que muito desde então se modificou... da outra vez, fui muito severo com o sr. Misael Nóbrega. Lendo melhor seus textos, compreendi que podemos já vislumbrar o modo pelo qual a crescente influência da mídia talvez venha a ressaltar a relatividade do levantamento das variáveis envolvidas. Veja que eu disse talvez, porque afinal, não adianta que a valorização de fatores e subjetivos estimule a padronização das diversas correntes de pensamento se não houver, como contrapartida, o aumento do diálogo entre os diferentes setores produtivos que sempre promove a alavancagem do fluxo de informações. Mas acredito que sua poesia e sua prosa caminhem para importantes posições no estabelecimento das condições inegavelmente apropriadas.

LC: O senhor continua adepto da metodologia bakhtiniana de observação desses fenômenos?

JCC: Boa pergunta. Eu diria que sim e que não. Por exemplo, percebi que, no caso da obra de Wandecy Medeiros, Bakhtin possui limitações claras no auxílio às minhas análises. Wandecy, por apresentar todas as questões poéticas devidamente ponderadas, ele me levanta dúvidas sobre se a crescente influência da mídia representa uma abertura para a melhoria dos relacionamentos verticais entre as hierarquias. Eis o limite de Bakhtin que muitos estudiosos ignoram! Aqui, suas teorias são inválidas para ler as categorias wandecynianas. Nunca é demais lembrar o peso e o significado destes problemas, uma vez que o novo modelo estrutural aqui preconizado pode nos levar a considerar a reestruturação dos modos de operação convencionais. E por isso mesmo eu sigo afirmando o caráter revolucionário da poesia de Wandecy.

LC: Professor, isso é uma guinada significativa em relação à nossa última conversa, não posso deixar de observar. O senhor teve contato com o livro mais novo de Wandecy Medeiros, Mascando Arame Farpado? Se sim, como o enxerga dentro do plano geral da obra do poeta?

JCC: Sim, foi uma guinada, embora eu não abandonei o fato de achá-lo revolucionário. A diferença é que antes a certificação de metodologias que nos auxiliaram a lidar com o aumento do diálogo entre os diferentes setores artísticos era uma das consequências dos procedimentos normalmente adotados. E isto estava errado... ou melhor, incompleto! E, de fato, o contato com o seu novo livro, como você bem lembrou, foi decisivo para entender que minhas teorias engessavam a complexidade da poesia de Wandecy Medeiros. Desta maneira, vi que a determinação clara de objetivos exige a precisão e a definição das condições inegavelmente apropriadas. Foi partindo desse princípio que li o Mascando Arame Farpado, que, para mim, demarca um novo locus nas obras dele, já que o entendimento das metas propostas ressalta a relatividade do sistema de formação de quadros que corresponde às necessidades da expressão poética. Isso foi extremamente novo para mim, devo confessar.

LC: Mas me tire essa curiosidade, professor: onde, então, o sr. permanece fiel a Bakhtin?

JCC: Ora, justamente onde ele aponta que a certificação de metodologias que nos auxiliam a lidar com o aumento do diálogo entre os diferentes setores produtivos é uma das consequências dos procedimentos normalmente adotados pelos escritores. Não resta dúvida. O que eu vejo é que, ainda assim, existem dúvidas a respeito de como a adoção de políticas descentralizadoras causa impacto indireto na reavaliação dos paradigmas corporativos. Mas acredito que isso seja uma questão de tempo de resolver esse impasse teórico.

LC: Professor, faça justiça e comente também sobre sua crítia a José Mota Victor. Não o esqueça, por favor.

JCC: Mas se justamente era aí que eu daria um exemplo de minha fidelidade a Bakhtin... (risos). Percebo que José Mota fornece ainda elementos capazes de fixar a certificação de metodologias que nos auxiliam a lidar com o julgamento imparcial das eventualidades para agregar valor ao estabelecimento das direções preferenciais no sentido do progresso. Aprendi a dar importância a esse aspecto através do pensamento do linguista russo, de quem sou devedor. Mas não deixo de acrescentar o perigo que o teatro de José Mota Víctor corre pois a constante divulgação das informações deve passar por modificações independentemente das regras de conduta normativas, e o texto dramático passou por enormes modificações que precisam ser constantemente revistas pelos autores, inclusive José Mota. Dos três sobre os quais conversamos, ele é o mais volátil. Lembro que sustentei a tese da diferença entre José Mota e Misael Nóbrega naquela época do início da pesquisa. E hoje vejo que estava certo desde sempre. Mas eu confesso que em matéria de teatro, onde José Mota se caracteriza, sou ignorante no assunto. A revolução dos costumes acarreta um processo de reformulação e modernização do processo de comunicação como um todo no teatro e felizmente a poesia ou a prosa não se limitam apenas a isso.

LC: Professor, mais uma vez agradecemos pelas suas esclarecedoras palavras. Esperamos que, como da outra vez, elas forneçam cada vez mais ajuda aos estudiosos da Literatura em Patos. Para fechar, pode nos dizer palavras gerais sobre o seu livro, já que ele estuda inúmeros outros escritores em diversas localidades?

JCC: Sim, é verdade. A pesquisa é abrangente. Olha, acima de tudo, o que busquei dizer foi que é fundamental ressaltar que a mobilidade dos capitais internacionais obstaculiza a apreciação da importância das posturas dos órgãos dirigentes com relação às suas atribuições. Mas que todavia os escritores resistem e continuam a criar. Tentei mostrar isso em diversos níveis. Penso que minha modesta contribuição aos estudos de Literatura reside aí.

LC: Obrigado, professor João Carlos Cabrío. Boa sorte com seu livro.

JCC: Fico feliz em colaborar pela segunda vez com vocês.

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Divulgando

Amigos,


Em matéria de preocupação com os gastos públicos, as oposições no Estado de São Paulo estão muito bem aparelhadas. O saite do economista (achei legal ele mesmo escever com "e" minúsculo) Eduardo Marques, que é ligado à Liderança do PT na Assembléia Legislativa, traz uma contribuição àqueles que desejam entender o funcionamento dos gastos públicos do Estado, através de textos bem acessíveis. Eu recomendo (que já foi recomendação da minha adorada amiga Sueli) a todos, mesmo. Acrescento ainda, já que estamos a falar de dinheiro, que não custa nada observar como andam investindo o dinheiro do contribuinte. A Paraíba tem meios que disponibilizam online seus gastos, o uso dos seus e dos meus impostos. Seja pelo sistema do Sagres online, do Tribunal de Contas do Estado, seja pela publicação do Diário Oficial da Paraíba. Eu garanto que, depois de uma certa insistência, o negócio se torna divertido. Já acessei muitas vezes o Sagres. Dá pra saber um monte coisa.

Vocês não tão interessados em ver, não?

sábado, 17 de outubro de 2009

De um banheiro do IEL

Alguém escreveu:

"A vida é uma gambiarra..."

Ao que eu completo aqui:

"...com um bico de luz aceso perdido em algum lugar".

domingo, 4 de outubro de 2009

Para Mercedes, com amor

Foi com bastante tristeza que li, sexta-feira passada, sobre o estado de saúde de Mercedes Sosa. Ela, apesar de sua condição de "la bruja", quis a extrema-unção. Digo "apesar", mas agora vejo que não, não foi "apesar", porque ela, como a grande voz da América do Sul, acumulou aquele sincretismo típico das terras que lhe pertenciam e às quais ela pertencia, e que não encontra dificuldade em misturar fé, revolução, batucada africana, poesia, guerrilha e panteísmo indígena. Quando li que ela recebeu o padre para designar sua alma a Deus naqueles últimos instantes, eu percebi que aquela mulher que tanto alimentou os desejos de luta dos comunistas latinoamericanos, de tantos ateus ferrenhos que a ouviram cantar contra os regimes militares, percebi que ela jamais separou as coisas: e que o Deus libertador e a América Latina estão mais afinados do que imaginamos.

Morreu Mercedes hoje. E quão fiquei triste! Mercedes não está, agora, vestida de mar, como a poetisa Alfonsina Storni. Mercedes esperou a morte vir até ela. E por ter esperado, teve que ver muitas coisas mudando. Teve que saber que antes, quando o estado de exceção vigorava e cada ato, cada gesto, por mais violência que tivesse, que isso expressava a necessidade de um momento. Anos atrás, tomar a mão, roubar um beijo, fazia parte de uma verdade. Mercedes cantou a história de dor e de luta das mães dos desaparecidos na Argentina, dos mineiros bolivianos, dos que viram a chuva de bombas desabando sobre Santiago do Chile, da ditadura militar no Brasil... e em todos esse momentos, da mesma forma como valia a violência do Estado repressor, valia a violência, se preciso fosse, pela liberdade. Foi dessa forma que a Plegaria a un labrador, a canção que deu a Víctor Jara a vitória no Primeiro Festival da Nova Canção, no Estádio Nacional (nesse mesmo lugar, ele foi assassinado pelos militares chilenos em 1973), que Mercedes Sosa a cantou. Um hino que convoca os agricultores a unirem sua fé à justiça de um Deus que não espera, que deu a oportunidade a Seus filhos de cantar o Pai-Nosso como um chamado à revolução. E o espírito de Mercedes, como de tantos outros, foi marcado dessa associação, a arte e a violência necessária, e assim ela se mostrou, em todos os lugares, cantando sempre acompanhada daquele bombo onde quer que houvesse injustiça.

Mas o tempo passa e ficamos velhos, diz a canção de Pablo Milanés. E agora, tendo ocorrido tanta coisa, todos tentam construir algo novo, à sombra daquele passado em que todos eram jovens e dispostos a dar a vida, fazer valer a máxima do Che: melhor morrer lutando que de joelhos. E foi na juventude que eu me apeguei à voz e à mensagem de Mercedes (digo na juventude, embora tenha 26 anos e não tive idade suficiente para ver a guerrilha sandinista na Nicarágua). Mas os tempos não parecem, mesmo assim, tão novos. Honduras que o diga. No entanto, não é que a injustiça mudou ou acabou, mas mudaram aqueles injustiçados. Perceberam que há outras formas de lutar que não apenas empunhar o fuzil ou o arado. E mesmo eu, que tive meu idealismo apaixonado até - acredito - meus 20 anos, e acalentei-o ao som da música de Mercedes, eu tive que mudar. Eu não sabia o que era, apenas acreditava na justiça, na revolução, na luta. Nunca militei no PSTU, PSOL, PCdoB. Meu negócio era o idealismo, o romantismo de ler Mario Benedetti dizendo que na rua, lado a lado, somos muito mais que dois; daquele lirismo tendencioso de Las venas abiertas de América Latina; de poder acreditar que a música estava a serviço, como as outras artes, do engajamento e da luta, como disse Maiakóvski uma vez a mim; de ouvir Te recuerdo, Amanda e chorar vendo Amanda pela rua molhada indo encontrar Manoel e ser amada e ser feliz ali, junto dele, aproveitando os únicos 5 minutos de intervalo da fábrica que tem Manoel. Em verdade, por esses tempos de idealismo, eu peço desculpas. Eu não conhecia, nem nunca vi uma fábrica soando a sirene. Tampouco soube na época o que era ser operário, salário-mínimo. Eu conhecia esse mundo pelas músicas, pelos poemas de Neruda, de Nicolás Guillén e de José Martí. E acho que me deixei enganar por todos eles.

Mas foram eles que me ensinaram, depois, que eu não precisava me cegar para tudo isso. Porque se Violeta Parra - um dos meus símbolos de arte engajada - se apaixonou, já idosa, por um jovem e por não suportar a impossibilidade desse romance, se matou, eu vi que a paixão pode estar em tudo, não só na Revolução. E que a própria Beleza, em si, já é subversiva. É ela que, quando tudo estiver perdido, salvará o mundo, disse o príncipe Míchkin. A paixão, ela está no filho que nasce, na casa que se ergue, no esgotamento sanitário que você e os moradores da sua rua conseguiram depois de tanto esforço e cobrança e que fazendo todas essas coisas com paixão está-se, sim, fazendo a Revolução. E eu aprendi isso, também, com Mercedes Sosa que cantando Violeta Parra, agradece à vida por tudo que esta tem lhe presenteado. E são todas essas coisas que fazem com que tudo valha a pena: o ouvido que ouve os grilos; o abecedário nos dá a formar as palavras "mãe", "amigo", "irmão"; o coração que se alegra diante dos frutos do cérebro humano; a marcha dos pés cansados que nos levou a todos os lugares. Amar e defender tudo isso: eis a Revolução.

Se hoje ainda chorei, foi por me lembrar de como eu era menino com todas aquelas crenças. De como era tolo. E de como acreditei em tanta coisa sem saber por onde começar a fazer. E Mercedes Sosa era a voz desse meu espírito de menino que se via diante da figura de Deus, alumbrado. E deu vontade, ao ouvi-la de novo, de sentir as coisas que já senti, os idealismos nos quais acreditei. Mesmo sabendo dos riscos, mesmo sem ser sábio competente. Busquei me rever na infância ideológica (ainda sou adolescente nisso). Saber como era, por que motivos eu já fui tão infantil quanto a essas questões. E consegui ver só um pouquinho. E ri. E chorei por ver que tudo me era tão fácil de acreditar. Agora, vejo como mudei. Que muitas dessas crenças se abalaram, se transformaram, mas não se perderam: migraram para sonhos menores, porém não menos grandes. Mas eu me perdôo, eu já fui jovem.

Hoje, eu acho que voltei aos meus 17...

Adeus, Mercedes!

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Lula é pelo Rio

Eu bolei de rir, mas não deixei de achar uma coisa muito bonita todas as reações dos brasileiros, sobretudo do presidente Lula, na cerimônia de eleição da cidade-sede dos Jogos Olímpicos de 2016. "Populismo", dirão uns sobre as lágrimas de Lula, ou sobre toda a quebra de protocolo que ele propiciou diante do presidente do COI, Jacques Rogge, e de toda a imprensa internacional. Aliás, esse foi o destaque de todos os grandes jornais do mundo: o choro de Lula. Incrível como até esse momento nenhum dos portais de notícias da Folha online ou da Veja sequer mencionou toda a carga de emoção que a comissão brasileira investiu na sua apresentação ou das lágrimas de felicidade engasgadas do presidente quando este assinou o contrato junto com o governador do Estado do Rio de Janeiro e com o prefeito da cidade vencedora. No portal da Veja, mais absurdo ainda, nem o nome de Lula, nem imagem sua estão lá.

Não estou afirmando que foi Lula que venceu. Ele mesmo disse que não. E de fato, não foi. Houve um aparato gigantesco muito bem montato pela comissão brasileira e exibido para todos e que possibilitou a confiança no Rio pelos votantes. Mas dá pra dizer que houve uma particularidade nessa comissão. E se dá pra falar em algo tipicamente brasileiro, sem dúvida é esse jeito passional de lidar com uma disputa e da maneira como se manifesta a alegria na vitória. Correm as notícias de que o discurso de Lula foi decisivo para a escolha pelo fator emotivo, apelativo. Para ajudar na decisão, valeu até fazer o sinal-da-cruz. Mas o que esperar de um chefe de Estado que pulou feito moleque quando da divulgação do resultado? Ali eu me senti feliz junto com Lula. E acho que muitos outros também. No portal do Terra, o jornalista que assina essa matéria só deu destaque aos arroubos de emoção e de brincadeiras do presidente, capaz de dizer que no Japão você cumprimenta um primeiro-ministro pela manhã e outro pela tarde, tamanha a mudança que eles têm por lá.

Muitos são os que dizem que essa vitória era mais que esperada, que não há novidade na escolha. Mas esses que não se assustam, não se emocionam. Acham que essa espirituosidade brasileira é coisa de gente acanalhada. Preferem usar a emoção de forma mais contida, demonstrada com mais sinceridade só para saudar outro cidadão na rua com um vibrante vive la France, como faziam muitos no fim do século XIX no Rio de Machado de Assis, como fez Fernando Henrique Cardoso em 2001, na Assembléia Nacional Francesa. Mas depois de hoje, assistindo à comemoração dos cariocas na praia, eu acho que alguma coisa pode mudar.

Excurso: no blogue de Reinaldo Azevedo, acho que ele deixou passar um comentário meu. Talvez ele não tenha entendido a ironia quando detectei tanto na postagem quanto nos comentários da maioria dos leitores aquela chaga que tanto prostra os brasileiros: o Complexo de Vira-lata.

terça-feira, 22 de setembro de 2009

João Cabral de Melo Neto

De "Os Três Mal-Amados" (Fala de Joaquim)

Joaquim:

O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.

O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.

O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.

O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.

Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.

O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.

O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.

O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.

O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.

O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.

O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Matemática para Pensantes - Lição 2

Na Matemática, nem sempre é fácil mostrar o óbvio. Porque o que nos é apresentado, é dado de maneira errada, é errado pensar que determinado fato é óbvio só porque conseguimos visualizá-lo. Quando digo isso, me refiro à demonstração do fato, pois muitas vezes a nossa intuição nos leva a crer que uma dada proposição é correta apenas porque nos parece claro e razoável que o seja.

Uma pergunta simples: "Quantos números primos existem?". Em quase todas as vezes em que se pergunta isso a alguém, esse alguém responde (e é bastante natural que isso ocorra) que os primos são infinitos. Ora, isso nem chega a nos passar pelo sentido, intuitivamente dizemos que eles são infinitos, somos levados a dizer isso por alguma lembrança infantil, ou porque isso já é um fato consolidado em nossas mentes, ou por qualquer outro motivo. Só que para a Matemática, essa intuição não basta. Se pensarmos mais um pouco, surge uma outra pergunta: "Será que sempre vai existir um número que só é divisível por um e por ele mesmo?". A pergunta central aqui é justamente o que vai nos garantir que tal número irá sempre existir ou não.

Os números primos de fato são infinitos. Mas essa garantia que nós temos disso, não foi dada a partir desse pensamento intuitivo. Euclides demonstrou essa proposição a mais de 2000 anos, de forma clara e satisfatória, e essa mesma demonstração ainda válida até hoje, mesmo havendo variações para a mesma. Apesar da demonstração para esse problema ser simples e de fácil entendimento, acho que não cabe mostrá-la aqui, e nem agora.

Um exemplo fácil de mostrar como a nossa intuição pode nos levar a erros é o seguinte: dado o número P = n² - n + 41, com n pertencente aos naturais (0, 1, 2, 3, ...), temos que o número P é primo para n = 0, 1, 2, ..., 40. Se testássemos apenas esses primeiros valores, naturalmente constataríamos que todo número da forma n² - n + 41 é primo. Mas veja que para n = 41, temos P = 1681, que é igual 41², que não é primo. Esse número que obtemos é chamado de contra-exemplo, e a partir dele mostramos que a proposição é falsa.

O que se deve ressaltar é que, a Matemática requer demonstrações rigorosas que garantam a validade de um dado evento para qualquer instância sua. Essas instâncias são os infinitos casos em que o evento pode ocorrer. Não há uma forma de realizar operações para todas as instâncias, afinal elas são infinitas. Então temos de pensar num modo de garantir isso para todos os casos sem precisar testá-los um por um. A esse modo dá-se o nome de Demonstração. E é nessa busca por uma demonstração rigorosa que a obviedade da coisa desaparece, quando vemos que mostrar uma coisa que a princípio era claro, nos deparamos com a dificuldade em encontrar a garantia de que aquilo é válido para suas infinitas instâncias.

Esqueçam que as coisas são óbvias, mesmo que pareça razoável pensar que sejam, e até mesmo que o sejam, pois a Matemática não é construída a partir de adivinhações, nem de pensamentos puramente intuitivos. Os matemáticos não querem demonstrações infalíveis para que suas proposições jamais possam ser revistas ou refutadas, o que os matemáticos querem são provas que possam validar determinados resultados, para que possam ser usados em novos teoremas, novas descobertas, novas construções desse pensamento humano que é a Matemática.


quarta-feira, 26 de agosto de 2009

David Bowie, o ator


Quando se fala em David Bowie, quase sempre o que se vem a mente é aquela imagem da fase glam rock, aquele rosto com um relâmpago desenhado, capa do Aladdin Sane. Pelo menos pra mim, decidi ouvir Bowie seriamente, depois de vê-lo, já velho, cantando Thursday's Child de frente ao espelho do banheiro num clip da MTV, isso em 2000. Era a música mais triste do universo inteiro.
Verdade seja dita, Bowie não tem voz pra cantar, mas é um p. cantor. Não sei como. Um cantor que consegue interpretar, literalmente, em todos os estilos, uma olhada na discografia dele pra constatar. Para isso, existe uma teoria. Ele é tão bom ator que interpreta um cantor e todo mundo acredita. Hahaha. Na verdade, ele é um gênio, e uma pessoa que tem um olho azul e outro preto é porque, não por acaso, era pra ser diferente de todo o resto.
Esses dias, assisti Furyo - Em nome da honra, filme do diretor japonês Nagisa Oshima. Até agora não consigo entender porque o título aqui no Brasil é assim. No original se chama Merry Christmas Mr. Lawrence, aí a gente ver mais sentido, Lawrence é o oficial britânico preso na Ilha de Java pelos japoneses, durante a Segunda Guerra Mundial, que tenta inutilmente evitar baixas dos prisioneiros dialogando com os oficiais japoneses.
Lawrence acredita que o fim da guerra está próximo e tenta a todo custo a difícil tarefa de se manter vivo. A rotina na ilha é alterada com a chegada de outro oficial britânico, Jack Celliers, que desafia autoridades do local com seu comportamento insolente.
Jack Celliers é David Bowie e é claro que eu assisti o filme por causa disso.
Fora esse detalhe, o filme fala do choque de culturas, do senso de coletividade dos japoneses - que por qualquer besteirinha já enfiam logo um punhal no abdômen pra acabar com o muído - em uma conversa com Jack, Lawrence tenta explicar a atuação do Japão na guerra 'Alguém deve ter enlouquecido e como eles não fazem nada sozinho a nação inteira enlouqueceu também'. Fala também da honra de Jack por sua liberdade, que está acima de todas as coisas. Fala da honra de Lawrence por sua vida, que não hesita em subordinar sua liberdade em nome dela. Etc, etc, etc.
Eu já havia assistido Basquiat, o filme, no qual David faz uma encarnação de Andy Warhol, mas achei a participação muito pequena. Sim, e detestei Basquiat, melhor se tivessem feito um filme de Warhol!
Quem quiser conferir o ator David Bowie:
Furyo:Em nome da honra - Nagisa Oshima
Basquiat - Julian Schnabel
A última tentação de Cristo - Martin Scosese

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Matemática para Pensantes - Lição 1

A Matemática é um aspecto único do pensamento humano, e sua história difere na essência de todas as outras histórias.
Com o passar do tempo, quase todo campo de esforço humano é marcado por mudanças que podem ser consideradas como correção e/ou extensão. Assim as mudanças na história de acontecimentos políticos e militares são sempre caóticas; não há como prever o surgimento de um Gêngis Khan, por exemplo, ou as consequências do pouco duradouro Império Mongol. Outras mudanças são questão de moda e opinião subjetiva. As pinturas nas cavernas de 25.000 anos são geralmente consideradas como grande arte, e embora a arte tenha mudado continuamente - até caóticamente - nos milênios subsequentes, há elementos de grandeza em todas as modas. Semelhantemente, cada sociedade considera seus próprios costumes naturais e racionais, e acha os de outras sociedades estranhos, ridículos e respulsivos.

Mas somente entre as ciências existe verdadeiro progresso; só ai existe o registro de contínuos avanços a alturas sempre maiores.
E no entanto em quase todos os ramos da ciência o processo de avanço é tanto de correçãoquanto de extensão. Aristóteles, uma das maiores mentes que jamaiscontemplaram leis físicas, estava completamente errado em suas idéis sobre corpos em queda e teve que ser corrigido por Galileu por volta de 1590. Galeno, o maior dos médicos da antiguidade, não foi autorizado a estudar cadáveres humanos e estava completamente errado em suas conclusões anatômicas e fisiológicas. Teve que ser corrigido por Versaliusem 1543 e Harvey em 1628. Até Newton, o maior de todos os cientistas, estava errado em sua visão sobre a natureza da luz, a acromaticidade das lentes e não percebeu a existência de linhas espectrais. Sua obra máxima, as leis de movimento e a teoria da gravitação universal, tiveram que ser modificadas por Einstein em 1916.

Agora vemos o que torna a Matemática única. Só na Matemática não há correção significativa, só extensão. Uma vez que os gregos desenvolveram o método dedutivo, o que fizeram estava correto, correto para todo sempre. Euclides foi incompleto e sua obra foi enormemente estendida, mas não teve que ser corrigida. Seus teoremas, todos eles, são válidos até hoje. Ptolomeu pode ter desenvolvido uma representação errônea do sistema planetário, mas o sistema de trogonometria que ele criou para ajudá-lo em seus cálculos permanece correto para sempre.
Cada grande matemático acrescenta algo ao que vei antes, mas nada tem que ser removido. Consequentemente, temos a figura de uma estrutura crescente, sempre mais alta e mais larga e mais bela e magnífica e com uma base que é tão sem mancha e tão funcional agora como era quando Tales elaborou os primeiros teoremas geométricoa a quase 26 séculos.
Nada que se refere á humanidade nos apareceu tão bem quanto a matemática. Aí, e só aí, tocamos a mente humana em seu ápice.

Prefácio do livro História da Matemática, por Isaac Asimov.

Talvez esse tópico abra algo que já pensava há tempos, falar sobre como a matemática está intimamente ligada à maneira como pensamos, no sentido de que as construções matemáticas estão diretamente ligadas às estruturas do pensamento, seja ele qual for. E também falar sobre como ela, a rainha das ciências, afeta nossas vidas de forma direta ou indireta.

P.s.: Levar isso a cabo, vai depender da minha boa vontade. [risos]

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Dostoiévski de novo?

Sim, parece que o homem tá com tudo. A minissérie O Idiota (2003), de produção de um canal russo, acredito que foi a primeira que iniciou um interesse na própria pátria do escritor por torná-lo visível às novas gerações, que gostam cada vez mais do outro místico, Paulo Coelho. Não tenho referências muito seguras, mas me parece que fez bastante público por lá. Poderia não ter feito e não é estranho dizer isso, já que é incomum a escolha de Dostoiévski para estas montagens cinematográficas na própria Rússia, pois o grande autor nacional é Liev Tolstói, o retratista das castas, da nobreza, das cortes e dos espíritos elevados. Não dá pra explicar, porque eu mesmo não entendo essa particularidade que reside nos leitores russos, mas dizem que Dostoiévski é ainda observado com certa temeridade, suas viagens insólitas dentro dos subúrbios escuros das cidades e da alma humana são consideradas "feias", toscas (no sentido mais poético da palavra) diante da magnitude do sol resplandecente que brilha no horizonte extenso dos quase poemas epopéicos de Tolstói.

Uma prova disso é a forma da narrativa do filho de Mikhail: seus personagens falam gaguejando, não possuem linearidade plena nas enunciações, são reticentes pelo exaspero de querer comunicar algo que não conseguem, eles simplesmente deliram. E deliram mesmo. São febris, convulsivos, biliosos, doentes. No romance O Idiota, Míchkin delira tanto que sai por aí afirmando que "a Beleza salvará o mundo". E notem que não há um ponto no livro em que ele próprio abre a boca (ou um travessão) e diz isso, não há mesmo. Nós conhecemos essa frase do príncipe porque outro doido, Hippolit Tierentiev, é quem nos faz saber que Míchkin anda dizendo essas besteiras. Aglaia Ivánovna também nos dá notícia desses dizeres. Notável como um negócio tão importante para a idéia do romance e tão central para a triste figura do epiléptico príncipe Míchkin só se fica sabendo pelos outros. Não é regra, mas em Tolstói são raros personagens desse tipo. A nobreza deles não permite o acesso a certas doenças da alma ou quando permite eles buscam resolver de uma forma muito natural, isto é, toda doença espiritual é um afastamento do homem dos desígnios mais simples da existência, é uma tentativa de superação daquilo que é da natureza e isso é ruim. Por exemplo, viver próximo de tudo que é naturalmente vivo é o ideal de beleza do nobre Liévin, do romance Anna Kariênina. É quase pagão, poder-se-ia dizer. Dostoiévski chega praticamente ao mesmo resultado, só que chafurdando tanto na lama da alma dos mais desgraçados para lá inclusive encontrar alguma coisa que faz valer a pena viver para eles. Dostoiévski talvez tente levar às últimas consequências
o afastamento entre homem e natureza e nesse extremo encontrar algo tão elevado quanto a vida natural defendida pelo velho barbudo, Conde Tolstói.

Por que é que Hippolit se irrita tanto com o tratamento que seu vizinho lhe dá, um miserável que assiste à morte do próprio filho de fome e frio? Para Hippolit, um ateu, não era aceitável ver um pai se apoiar no consolo de Deus e por isso não fazer nada para evitar a morte de um inocente. Quando a criança morre, Hippolit vai meio que sacanear com a dor do outro; seu olhar diz "Tá vendo? Eu avisei. Você poderia ter feito algo". Nesse instante, o outro se aproxima e muito cordialmente diz: "Saia". Desse dia em diante, toda vez que se avistam no prédio, o homem gentilmente retira o chapéu da cabeça e cumprimenta Hippolit. E isso o irrita demais! Ele deve pensar: como pode ser? Eu, que sou instruído, moderno, que deveria me sentir por cima desse miserável ignorante, sinto ódio pela maneira altiva com que este sujeito se porta diante de mim. Era eu que deveria sentir pena dele e não ele de mim. - Notem como nenhum deles vive um ideal puro. Ao contrário, seres abjetos vivendo uma vida suja, longe de qualquer natureza reconciliadora, embora o vizinho esteja mais próximo de encontrar a conformidade do mundo do que Hippolit.

Para os entendidos no assunto, Dostoiévski ainda cria um clima de bagunça completa entre os nobres e os humilhados e ofendidos. Ele os obriga coexistir em momentos comuns, por mais impossível que isso fosse de se pensar numa sociedade hierarquizada e de corte como a Rússia oitocentista. Este é um dos aspectos daquilo que nomearam de "carnavalização" nos seus romances. Por isso, no sarau de Nastácia Filíppovna, estão generais, empresários, gente de bem, mas estão também pessoas de conduta duvidosa como Fierdischenko - que por sinal propõe um jogo no qual os participantes deveriam contar o ato mais vil e mesquinho já cometido na vida; e funciona, pois todos, inclusive esses nobres e ricos, acabam se revelando homens terríveis pela feiúra dos seus atos narrados - e, pra acanalhar o sarau, Rogójin e seus amigos arruaceiros entram pra inverter de vez o establishment. O príncipe Míchkin também é uma figura engraçada nesse aspecto: ele prefera a companhia de bêbados, como o general Ívolguin, não só ele, pois quase todo mundo no romance uma vez ou outra aparece bêbado; um homem mundano desgraçado como Parfen Rogójin; uma prostituta autocondenada ao inferno que é Nastácia Filíppovna; um tísico ateu condenado à morte que é Hippolit Tierentiev; Liébdiev, um trapaceiro ganancioso e intérprete do livro do Apocalipse; Keller, o mentiroso e briguento boxeador. E é impressionante como Míchkin, um nobre que acaba ganhando uma fortuna por ocasião de um testamento, anda com todos eles, e os ama. Aliás, é o elo que une os dois mundos, pois permite a presença de todos esses tipos nos mesmos espaços de pessoas distintas, como a generala Lisavieta, uma senhora da alta sociedade, frequentadora das casas de condes, de quem ele recebe muitas censuras por andar com gente desse nível. É através de Míchkin que ela tem a sensação de que o mundo está realmente de pernas pro ar. Imaginem se ela tivesse conhecido Raskólnikov, Kiríllov, Nicolai Stavróguin ou o quase espírito zombeteiro Ivan Karamázov.

Antes que esqueça, vou deixar o linque do recado principal dessa postagem. Parece que saiu, está pra sair, ainda não sei, a minissérie também russa baseada n'Os Irmãos Karamázov. Massa, né? É prova de que finalmente estão redescobrindo o aspecto torto do velho filho de Mikhail por lá? No caso da adaptação de O Idiota, que foi em 2003, eu li na internete que o negócio casou com as discussões entre a abertura para o Ocidente ou a ideologia eslava de fechamento, no contexto do governo de Vladímir Pútin. E sim, o romance trata demais dessa questão. Mas o que vão dizer sobre o contexto da adaptação de Os Irmãos Karamázov? Aí vai uma informação: este romance pode ser entedido como anunciador do fim dos tempos. Agora uma dica: peguem o mote da generala Lisavieta, de que o mundo está prestes a acabar, e leiam em conjunto com a primeira coisa dita neste vídeo que ora vocês verão (eu espero que vejam). Meu palpite está dentro disso aí.


sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Nietzsche de novo?



Sim. E agora no Jerimum Beta. Foi um moído (muído) muito grande pra se gravar o podiqueste lá postado hoje. Jamais gravei algo daquela natureza e sobretudo publicar assim, na internete. Eu gostei do resultado, embora tenha ficado paralisado quando disseram: agora fale! Mas enfim, saiu alguma coisa. Continuo achando esquisito ouvir podiquestes e no caso do lançado hoje tem agravante de ouvir a própria voz o que, na minha opinião, é uma das experiências mais lesas que já vivi. Todavia, eu quero fazer a ressalva e dizer que o negócio ficou muito bom. Rapaz, porque pra quem estava de dentro e participou, a edição e a arrumação dos diálogos ficou muito massa. Eu poderia até afirmar que ficou outra conversa, até para mim, só que igual à não-editada. Elogio o trabalho de João Neto pela paciência com a montagem e a Zé Márcio e Rondinelly pelas sugestões de emendas e desemendas das falas.

Além do que, o assunto é danado, sejamos sinceros. Danado de verdade. Não é todo dia que se fala em Nietzsche e no Cristianismo tentando desenrolar o nó dado tanto em torno do próprio Nietzsche como do Cristianismo. E para quem gostou, eu queria quebrar o sigilo (se o há, pois não colocaram esse aviso no Jerimum) e dizer que a segunda parte dessa conversa sairá em breve. Bem mais breve do que para a primeira ter ido ao ar.

Pra fechar, só sei que algumas coisas deixamos de fazer na gravação. Uma delas, seria talvez ler passagens de textos. Lamentei o fato de ter esquecido uma menção ao livro de Albert Camus, O Homem Revoltado, onde ele afirma claramente que Nietzsche é cristão nos termos em que foram postos nas nossas falas e também pela proximidade gritante entre o existencialismo e o cristianismo de Cristo e também dos textos "canônicos" para além dos evangelhos. O fim último não é demonstrar o deserto da existência, segundo Camus. Isso é muito simples até. Muitíssimo mais difícil é viver nesse deserto sabendo que ele é um deserto e construir as coisas num deserto, com a perspectiva sempre de que construiremos para habitar um deserto e mais: tentar tornar a vida aí algo digna de se viver ao ponto de qualquer indivíduo poder afirmar, para si e para os outros, que vale a pena exercer minha vida e meus desejos neste lugar e entre todos vocês. Matamos a Deus não por simplesmente matá-Lo, mas para fazer da culpa que carregaremos por esse assassinato algo proveitoso para os próximos tempos.

Retificando: sim, na apresentação do próprio podiqueste, João Neto diz que há uma segunda parte do negócio e que sairá depois. Erro de atenção meu.

Bebidas por conta de Pearl!


Quando chegou em San Francisco, o então berço e capital da liberdade, por volta de 1963, Janis era só uma garota esquisita do Sul. Nascida e criada em Port Arthur, Texas, algo como Patos na época, enquanto era tiranizada por seus colegas, familiares e demais habitantes da cidadezinha buscava refúgio fugindo nos fins de semana com um grupo de amigos desordeiros, na maioria negros, para Austin ouvir os cantores de blues, e claro, beber um pouco pra esquecer, man! The fuck dam life.
Chet Helms, um amigo feito durante um frenético período de fugas, havia prometido encontrar a garota perfeita para o vocal feminino do promissor grupo Big Brother and Holding Company. E assim, Janis chegou a eles. O cabelo num rabo de cavalo, jeans e camiseta e um surrado violão folk. The perfect girl! Pensaram Sam Andrews, Dave Getz e James Gurley e riam. As garotas do Big Brother, sobretudo, a mulher de Gurley tentaram dá um jeito em Janis. Como transformar uma garota insegura, desengonçada, do interior numa estrela de rock?
A esposa de Gurley, Nancy, era um visão. O cabelo esvoaçante, enfeitado de flores, o vestido cheio de cores e contas e mais contas no pescoço e nos braços, uma deusa da floresta. Mais tarde, morreria, prematuramente e grávida, de overdose de heroína.
Aquela imagem imprimiu-se na mente provinciana da garota do Texas, que criou um alterego para subir aos palcos; PEARL (as roupas brilhosas, as plumas, o ar glamouroso, a garrafa de Southern Comfort). Este é o título do álbum póstumo de 1971, o mais vendido.
De 63 a 70 foi assim, tomar whisky e drogas para ser maravilhosa e tudo terminar num camarim frio. Durante a gravação do segundo álbum, ela pergunta: "Ainda tenho sotaque texano?"
Em entrevista a David Dalton explicava sua perspectiva:
"Kozmic Blues (álbum solo) quer dizer que não importa o que você faça, não vai ganhar a guerra. Quando eu era criança, as pessoas me diziam que eu era infeliz porque estava na adolescência, mas que um dia ia ficar tudo legal. E eu acreditava. Primeiro achava que quando o homem certo aparecesse, seria a hora, depois que se eu pudesse trepar em paz, depois se eu conseguisse algum dinheiro, etc. Até que um dia, sentada num bar, entendi de repente que nunca ia acontecer nada, que nunca ia ficar legal, que o tempo todo tem alguma coisa errada, sempre, só muda o problema. Não era um prazo de espera, era toda a minha vida...
Não sei se estou sendo insensível se disser que o blues do negro é sempre baseado na falta-de. 'Estou triste porque não tenho mulher, porque não tenho dinheiro, porque não tenho isso ou aquilo'. E não é o que está faltando que faz você infeliz, mas o desejo específico por alguma coisa que não pode conseguir. Não é o nada, o não ter: é o querer"
Indico:
Pearl (1971); Me and Bobby Mcgee, Trust me, My baby.
The Rose (1979) com Bette Midler.
Monterey Pop Festival (1967)


quinta-feira, 23 de julho de 2009

Belchior e o Sertão

Ora! Belchior é sem dúvida um dos melhores músicos brasileiros de todos os tempos e talvez o melhor cara que fizesse um papel de Nietzsche no cinema (tomando em consideração os bigodes).

Hoje, dias já vão que cheguei de férias ao Sertão e ainda escuto o rapaz-latino-americano-sem-dinheiro-no-bolso-e-vindo-do-interior. Hoje, em particular, depois de conversar com uma amiga de Patos, Aninha, e porque ela me disse que "Pequeno Mapa do Tempo" é a minha cara. Aí foi o negócio de sentir vontade de ouvir de novo.

Engraçado isso. Tempos atrás me lembrei de uma coisa que outro amigo me disse. Schroder, para outros é "Xeróide", falara que não gosta de Belchior porque todas suas músicas tratavam do rapaz do sertão que foi pra cidade grande. Primeiro que eu não concordo totalmente com isso. Ele tem músicas de uma poética gigante, como "Hora do Almoço", "Carisma", "Clamor no Deserto". E há uma fase, por assim dizer, "experimental" da música desse cearense - digo isso porque é legal usar o termo "experimental" pra designar qualquer coisa que mixe o som das baleias com a voz humana pra criar um efeito altamente mais ou menos. É só ouvir o primeiro disco de Belchior, onde o miserável inventa de cantar poemas concretistas ao som de uma coisa parecida com o som armorial.

Mas sobre as demais canções, sim! Belchior compôs várias com o mesmo tema, mas na minha opinião, dizendo tudo de maneira mais massa a cada nova música. A clássica eu já citei, "Apenas um rapaz latino americano". Mas tem outras, como "Galos, noites e quintais", capaz de criar imagens bonitas:

Quando eu não tinha o olhar lacrimoso
que hoje eu trago e tenho
quando adoçava meu pranto e meu sono
no bagaço de cana do engenho
quando eu ganhava esse mundo de meu Deus
fazendo eu mesmo o meu caminho
por entre as fileiras do milho verde que ondeia
com saudade do verde marinho.

Ainda que nessa canção o tema do emigrante nordestino não apareça, mas há imagens da nostalgia de um tempo anterior e melhor. Há uma que tem versos muito bonitos, "Notícia de terra civilizada". Ela pega um mote dado por Luiz Gonzaga na sua "Riacho do navio", onde se mostra o desejo de viver uma vida "sem rádio e sem notícia das terra civilizada". Na releitura de Belchior:

Era uma vez um cara do interior
Que vida boa, água fresca e tudo mais
Rádio e notícia de terra civilizada
Entrou no ar da passarada
E adeus paz!
Agora é mudar de vida
Um bilhete só de ida
Que voltar, não volta não
Seguir sem mulher nem filho
Ó brilho cruel do trilho
Do trem que sai do sertão
Acreditou no sonho
Da cidade grande
E enfim se mandou um dia
E vindo, viu e perdeu
Indo parar - paraíba! - na delegacia
Lírico, rindo, relembra
Um ditado esquecido:
"... antes de tudo, um forte."
Com fé em Deus, um dia,
Faz algum dinheiro
Pra voltar pro Norte.

Há ainda outra música, "Fotografia 3X4". Essa insiste na situação de miseréria em que vive o migrante nesse sol enganador que é "Sum Paulo" ou Rio de Janeiro. "Veloso, o sol não é tão bonito pra quem vem do Norte", adverte o cantor a Caetano Veloso pelas suas palavras em "Alegria, alegria". Ao fim da canção, Belchior se coloca como o típico nordestino: "eu sou como você que me ouve agora".

Talvez a que eu ache mais massa seja mesmo "Pequeno mapa do tempo". Fala do medo de uma maneira cortante. O medo que eu senti. Belchior pode finalizar melhor que eu o assunto:

Eu tenho medo e medo está por fora
O medo anda por dentro do teu coração
Eu tenho medo de que chegue a hora
Em que eu precise entrar no avião

Eu tenho medo de abrir a porta
Que dá pro sertão da minha solidão
Apertar o botão: cidade morta
Placa torta indicando a contramão
Faca de ponta e meu punhal que corta
E o fantasma escondido no porão

segunda-feira, 20 de julho de 2009

Dorian Gray




Se tem uma estória que mereça uma adaptação contemporânea e caprichada no cinema é O retrato de Dorian Gray. No passado, o romance ganhou às telas preto e branco na filmagem de Albert Lewin em 1945. Dorian usava bastante gel no cabelo e não estava em sua plena beleza física. Sybil Vane era uma mulher de trinta e poucos anos. Lorde Henry não era nem charmoso, nem divertido. Mas como todo filme antigo tem seu encanto. Melhores cenas do filme são: o assassinato de Basil Hallward que vemos com o auxílio das sombras dos atores; o assassinato do retrato, decididamente, o melhor efeito do filme. Em 1973, esta obra-prima de Oscar Wilde ainda ganhou outra versão feita para TV com Shane Briant (O amante de Lady Chatterly).


Agora, parece que, finalmente, veremos uma versão cinematográfica "digna" da obra. Está em fase de pós-produção o filme Dorian Gray de Oliver Parker, responsável por outras bem sucedidas adaptações de Wilde como Marido Ideal (1999) e a Importância de ser Ernesto (2002). O elenco, muito bem escalado, tem Colin Firth (O Diário de Bridget Jones, Mamma Mia!) no papel de Henry Wotton, Ben Barnes (Crônicas de Nárnia - Princípe Caspian) como o personagem título e Rachel Hurd-Wood (O perfume) como a inocente Sybil Vane.

Para quem não conhece o enredo do livro, Dorian Gray é um jovem de rara beleza que inspira o sensível pintor Basil a fazer seu retrato. Através da influência perversa, porém irressitível, de seu novo amigo Lord Henry, Dorian realiza um pacto com o retrato cuja aparência passa a envelhecer e degradar-se em seu lugar. Enquanto isso, ele se entrega a todos os tipos de vícios e prazeres sem levantar suspeitas. A leitura é marcada pelo humor ácido e hilário de Lord Henry sobre a hipócrita sociedade londrina do século XIX.

O Poeta e o poeta



Eu tentei buscar na internet, um conto de Oscar Wilde que eu tinha lido - acho que quando fazia oitava série, por aí - chamado O poeta. O livro era da biblioteca da UFCG e tinha além desse outros contos mais famosos do escritor como Célebre Foguete, O Bom Amigo e O Princípe Feliz, (esse último faz todo mundo chorar!) traduções preciosas de Mário Lago. Então, eu fiquei com a estória do conto na cabeça (O poeta), querendo ler de novo pra tentar lembrar completamente, igual o que acontece com uma música (a gente fica larara larara, como um chiclete, são os memes!) até que a escutemos inteira. E na internet não achava nada sobre, e comecei a duvidar da existência dessa estória.
Por fim, do que lembro dizia assim 'numa pequena vila havia um poeta que todos os dias ia passear no bosque.
Ao retornar, as crianças logo viam lhe perguntar o que ele tinha visto e ele falava de criaturas mágicas, elfos, faunos e fadas e descrevia-os com riqueza de detalhes sua aparência, seus modos, suas falas (aí ele descrevia muito essa parte, quem já leu Wilde sabe como é o lado esteta dele).
Um dia ele vai ao bosque e se depara com elfos, faunos, fadas e etc.
Voltando à vila, as crianças logo lhe indagam - o que poeta tinha visto?
E ele responde: - Hoje? Hoje não vi nada.
Assim, em um conto está resumida toda a essência de Wilde. O artista para ele era um ser de imaginação. Esse era o artista que ele era. Mais tarde, egresso da prisão, suas tentativas de escrever sobre seus próprios dramas foram inutéis, frustrantes. A realidade era uma contaminação. O realismo era a pobreza da literatura.

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Filmes que a maioria não viu e nem quer ver


Dias de Nietzsche em Turim

Esse é um filme que vem merecidamente encabeçar a lista dos filmes que quase ninguém viu, nem quer ver e tem raiva de quem fala que é bom. Só pela intenção, já valia ser indicado ao Oscar, ao Golden Globe ou Saga Awards: uma produção brasileira recria os últimos dias (sãos) da vida do filósofo alemão Friedrich Nietzsche na cidade italiana de Turim. O corajoso dessa história é o diretor Júlio Bressane que tem no currículo um clássico 'sem pé nem cabeça' dos anos 60, Matou a família e foi ao cinema, mas esse é tão clássico que nem eu consegui ver ainda (fico devendo).
Nietzsche é vivido por Fernando Eiras. Eiras não tem carreira cinematográfica, e se você não assistiu as novelas da Manchete, provavelmente, nunca ouviu falar nele (Ele era Luís Felipe em Xica da Silva e ainda pode ser visto na atual reprise de Dona Beija). Ele está ótimo, considerando a dificuldade de atuar detrás daquele bigode. A nossa versão tupiniquim é muito melhor do que a de Armand Assante em Quando Nietzsche chorou que pareceu encarnar mais a concepção de Yalom, muito amargurada e melancólica, quase frágil.
É em Turim que Nietzsche concebe seus livros "Crepúsculo dos Ídolos", "Os ditirambos" e passagens do "Ecce Homo". É lá também que lhe vem suas idéias mais aterradoras como o Eterno Retorno. Enquanto isso, ele perambula solitário pela cidade, vai dezenas vezes ao teatro ver Carmen e tem seus surtos de loucura no quarto (cena memorável de Nietzsche doidinho de pedra). Mariana Ximenes capricha na cara de mal para encanar Elizabeth, a irmã tirânica do filósofo, cuja interpretação não deixa impressão alguma.
De repente, durante a leitura de um texto nietzscheano aparece uma mulher nua. Calma! Isso é um filme brasileiro, não esqueça! Tem que está atento para sacar as viagens do cineasta.
A produção é de 2001, e eu pude assistir em 2003 no pay-per-view. No ano passado a TV Brasil exibiu o filme na sua programação, o que significa que o filme deve voltar a passar no mesmo canal que costuma reprisar muito os filmes em Cadernos do Cinema Brasileiro.

domingo, 5 de julho de 2009

Dizeres esparsos

Não sei onde vi isso, mas eu achei no mínimo impressionante quando li:

Um homem é mais homem pelas coisas que silencia do que pelas que diz. Vou silenciar muitas. Sabendo que não há causas vitoriosas, gosto das causas perdidas; elas exigem uma alma inteira, tanto na derrota quanto nas vitórias passageiras. Criar é viver duas vezes... Todos tentam imitar, repetir e recriar sua própria realidade. Sempre acabamos adquirindo o resto das nossas verdades.

Albert Camus.

Para os demais

Adiei este post por uns tempos, pois me faltava discurso no que ia falar. Pois bem, seguindo a linha do comentário feito por Lau Cariri (que hoje está volta ao seu sobrenome), falo aqui sobre os amigos que estão tendo participação e que são também criadores do blogue JerimumBeta. Vejo que eles agora se embrenharam em outras veredas, diferentes das do Soda Cáustica, com outra proposta, outra cara. Isso é um fato que acontece sempre em nossas vidas, quando temos que deixar alguma coisa para podermos correr atrás de outra, isso eu considero completamente natural de se ocorrer, e sempre irei respeita-los por isso, pois estão buscando sempre mais, e a ambição vista nesse sentido é sempre bom de se admirar.

Mas voltando ao Jerimum, eu que acompanho o blogue desde o começo, tenho visto várias críticas, e como tudo que é novo, existe sempre uma resistência por parte dos espectadores. Mas isso é irrelevante aqui no meu comentário, o que quero dizer é que o blogue dos meninos está criando uma cara própria, agora não aparece mais aos nossos olhos com a homogeneidade que a internete pode vir a causar. Pelo contrário, o blogue está se definindo aos poucos, e se mostrando à proposta que o deu início: o pensar de certos nordestinos sobre o mundo.

Para quem não ouviu o primeiro podcast gravado pelos meninos João Neto, Rondinelly e Zé Márcio, aconselho que vejam, pois realmente é um podcast gravado com moldes bem diferentes do que temos visto por aí.

Deixando as coisas de lado, digo a todos os amigos do Soda Cáustica que não se preocupem, o Soda sempre fará parte de nossas vidas, mesmo que seja apenas como um breve interlúdio.

sábado, 20 de junho de 2009

Para os insetos

Caros,

Do jeito que as coisas vão o próximo a postar aqui será Gregor Samsa. Alguns dos amigos que costumeiramente escreviam neste espaço estão trabalhando agora num projeto muito bacana (e acrescentaria também "ousado") de iniciativa de João Neto, o Jerimum Beta.

Daqui do Soda, além dele, quem colabora é Rondinelly e José Márcio, embora este me parece que não escreveu nada ainda, mas participou já de um podcast, acho que o primeiro feito pelo saite, gravado exatamente por esses três. Por sinal, ficou bom. Deu pra escutar as vozes de gente que não vejo há quatro meses e isso foi engraçado. Achei que faltou uma menção de que parte do assunto do negócio que eles conversaram foi comentado de passagem por várias pessoas no Soda Cáustica.

Aliás, eles lá assinam com seus os próprios nomes quando aqui tem seus pseudônimos. E aqui está a brincadeira para os curiosos: descubram quem é quem nos dois blogues.

É isso. Vamos esperar Gregor. Tomara que ele consiga usar um computador. Bom, se ele conseguir pelo menos sentar numa cadeira, já foi grande coisa.

sexta-feira, 12 de junho de 2009

Reflexão episódica I

Na parede do banheiro, dentro daquela caixinha, mas não dentro, em cima (já que não havia mais espaço no interior), ele guardava (guardava? mas não estão fora?) duas bisnagas de pasta-de-dente: uma grande e outra pequena. Ora, uma para uso diário comum e outra para levar em viagens esporádicas. Não é o que todos pensam?

Todas as manhãs, ao se aprontar para sair, havia sempre a mesma dúvida angustiante, que apesar de angustiante vinha como um pensamento rápido seguido de uma decisão rápida. Precisava viajar mesmo? Não foi para isso que comprou a menor, durante um daqueles momentos em que inventamos uma necessidade tão descartável quanto o objeto que vemos na prateleira do supermercado? Ele, como todo mundo que alguma vez ou outra vai às compras, sempre olha as mercadorias a partir do "e se...?". "E se precisar viajar, uma viagem rápida?" Pensou ao ter visto a bisnaga pequena na prateleira, "essas que são feitas para viagens, pois menores são mais fáceis de carregar". A confecção do objeto, seu tamanho, design, o conceito no qual foi concebido, sugeriu esse pensamento a ele? Ou foi mesmo o contrário? E se ele pensou e depois o viu? É o cão que abana o rabo ou o rabo que abana o cão?

Essa pergunta não interessa. Mesmo porque ele não possui cachorro em casa. Estamos de novo no banheiro e ele olha sem saber de qual das duas vai espremer na escova a pasta, não interessando mais de que jeito vai ficar, pois desistiu de deixar como na imagem da caixa há muito tempo. "E se precisar viajar...? E se não precisar?" Ele decide, por hoje, e por sempre, que não vai viajar. "Uma viagem esporádica", como pensava, não vai acontecer, então usa da pequena. Usa dessa para acabar logo e assim passar à maior.

"Mas eu vou viajar sim". É o que pensa na manhã seguinte, quando se esquecia da decisão do dia anterior. Agora se apresentava clara a possibilidade de viajar de repente. Usará a maior e poupará a menor para este acaso.

Ocorrerá isso todos os dias, perguntar-se-á qual usará hoje, colocar-se-á diante da dúvida sobre viagem ou não-viagem, mudará a sua compreensão particular dos mistérios das bisnagas de pasta-de-dente, hoje uma coisa, amanhã outra, enquanto existirem as duas em cima do estojo do banheiro.