terça-feira, 22 de setembro de 2009

João Cabral de Melo Neto

De "Os Três Mal-Amados" (Fala de Joaquim)

Joaquim:

O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.

O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.

O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.

O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.

Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.

O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.

O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.

O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.

O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.

O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.

O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Matemática para Pensantes - Lição 2

Na Matemática, nem sempre é fácil mostrar o óbvio. Porque o que nos é apresentado, é dado de maneira errada, é errado pensar que determinado fato é óbvio só porque conseguimos visualizá-lo. Quando digo isso, me refiro à demonstração do fato, pois muitas vezes a nossa intuição nos leva a crer que uma dada proposição é correta apenas porque nos parece claro e razoável que o seja.

Uma pergunta simples: "Quantos números primos existem?". Em quase todas as vezes em que se pergunta isso a alguém, esse alguém responde (e é bastante natural que isso ocorra) que os primos são infinitos. Ora, isso nem chega a nos passar pelo sentido, intuitivamente dizemos que eles são infinitos, somos levados a dizer isso por alguma lembrança infantil, ou porque isso já é um fato consolidado em nossas mentes, ou por qualquer outro motivo. Só que para a Matemática, essa intuição não basta. Se pensarmos mais um pouco, surge uma outra pergunta: "Será que sempre vai existir um número que só é divisível por um e por ele mesmo?". A pergunta central aqui é justamente o que vai nos garantir que tal número irá sempre existir ou não.

Os números primos de fato são infinitos. Mas essa garantia que nós temos disso, não foi dada a partir desse pensamento intuitivo. Euclides demonstrou essa proposição a mais de 2000 anos, de forma clara e satisfatória, e essa mesma demonstração ainda válida até hoje, mesmo havendo variações para a mesma. Apesar da demonstração para esse problema ser simples e de fácil entendimento, acho que não cabe mostrá-la aqui, e nem agora.

Um exemplo fácil de mostrar como a nossa intuição pode nos levar a erros é o seguinte: dado o número P = n² - n + 41, com n pertencente aos naturais (0, 1, 2, 3, ...), temos que o número P é primo para n = 0, 1, 2, ..., 40. Se testássemos apenas esses primeiros valores, naturalmente constataríamos que todo número da forma n² - n + 41 é primo. Mas veja que para n = 41, temos P = 1681, que é igual 41², que não é primo. Esse número que obtemos é chamado de contra-exemplo, e a partir dele mostramos que a proposição é falsa.

O que se deve ressaltar é que, a Matemática requer demonstrações rigorosas que garantam a validade de um dado evento para qualquer instância sua. Essas instâncias são os infinitos casos em que o evento pode ocorrer. Não há uma forma de realizar operações para todas as instâncias, afinal elas são infinitas. Então temos de pensar num modo de garantir isso para todos os casos sem precisar testá-los um por um. A esse modo dá-se o nome de Demonstração. E é nessa busca por uma demonstração rigorosa que a obviedade da coisa desaparece, quando vemos que mostrar uma coisa que a princípio era claro, nos deparamos com a dificuldade em encontrar a garantia de que aquilo é válido para suas infinitas instâncias.

Esqueçam que as coisas são óbvias, mesmo que pareça razoável pensar que sejam, e até mesmo que o sejam, pois a Matemática não é construída a partir de adivinhações, nem de pensamentos puramente intuitivos. Os matemáticos não querem demonstrações infalíveis para que suas proposições jamais possam ser revistas ou refutadas, o que os matemáticos querem são provas que possam validar determinados resultados, para que possam ser usados em novos teoremas, novas descobertas, novas construções desse pensamento humano que é a Matemática.