domingo, 10 de março de 2013

Cat Stevens

Coisa rápida. Foi só algo que vi e ouvi. Passava aquele programinha chato de Serginho Groisman nessa madrugada de sábado para domingo (10/03/2013) para eu ver que o Senador Eduardo Suplicy, num de seus momentos de humor alterado (sim, já se sabe faz um bom tempo que Suplicy tem transtorno bipolar), cantou na tribuna do Senado uma música da qual gosto muito e que fazia algum pedaço que não escutava. É talvez a mais conhecida de Cat Stevens, que depois de convertido ao Islamismo tem o nome de Yusuf Islam, chamada Father and son. Depois, no palco do programa, Suplicy a cantou toda com os dois filhos que se apresentavam na ocasião.


Sempre adorei essa canção. Ela difere das demais assim como o romance Pais e filhos de Turguêniev (não citado por acaso, diga-se de passagem) se destaca dos outros escritos por ele. Diria até que, com algumas boas exceções, as músicas de Cat Stevens são verdadeiramente muito "bonitinhas", não passando muito disso. É que na época dele talvez não se havia inventado o termo auto-ajuda, senão era como as classificaria. Salvam-se, todavia, porque tem melodias legais e a voz do cara é muito bonita. Aquela música dele, por exemplo, Don't be shy, que abre o filme Harold and Maude (1971) - filme este que tem toda a trilha sonora composta pelo próprio Stevens - quase não passa de auto-ajuda mesmo. E não seria redundância pensar o mesmo de um filme com uma trilha sonora assim, apesar de que gosto dele, é divertido. Mas não é do tipo que me lembro nas conversações.


Há uma Father and daughter, só que é de Paul Simon e é recente. Foi composta como forma de homenagem à mais antiga.

Curioso ouvir Cat Stevens essa noite. Por causa disso me lembrei de gente, uma amiga e um amigo que não vejo há certo tempo. Por causa dos dois, muitos anos atrás, acabei gostando bastante de Cat Stevens. Descobri que ainda gosto. Talvez ele faça parte do meu Inventário.

quarta-feira, 6 de março de 2013

Conflito geracional (às mulheres da outra geração)




AS MULHERES DE MINHA GERAÇÃO

As mulheres de minha geração abriram suas pétalas rebeldes
não de rosas, camélias, orquídeas ou outras flores.
De frivolidades tristes, de casinhas burguesas, de costumes anexos,
mas de pólens peregrinos entre ventos.

Porque as mulheres de minha geração floresceram nas ruas,
nas fábricas se fizeram fiandeiras de sonhos,
no sindicato organizavam o amor segundo seus sábios critérios.

Ou seja, disseram as mulheres de minha geração, cada uma segundo a sua necessidade
e capacidade de resposta,
como na luta golpe a golpe e no amor beijo a beijo.

Em escolas argentinas, chilenas ou uruguaias
aprenderam o que tinham que saber para o saber glorioso
das mulheres de minha geração.

Mini–saias em flor nos anos setenta,
as mulheres de minha geração não ocultaram nem as sombras
de coxas de fora como as de Tania. Erotizando com o maior dos calibres
os caminhos duros da hora marcada com a morte.

Porque as mulheres de minha geração
beberam com vontade o vinho dos vivos
acudiram a todos os chamados
e foram dignidade na derrota.

Nos quartéis lhes chamaram de putas e não as ofenderam
pois vinham de um bosque de sinônimos alegres: Minas, Brotos, Gatas, Moças, Pequenas, Gurias, Garotas,
velhas, Senhoras, Senhoritas, Panteras
até que elas mesmas escreveram a palavra Companheira
em suas costas e nas paredes de todas as celas
porque as mulheres de minha geração
nos marcaram com o fogo indelével de suas unhas
a verdade universal de seus direitos

Conheceram a prisão e os golpes.
Habitaram mil pátrias e nenhuma.
Choraram seus mortos e os meus como se fossem seus.
Deram calor ao frio e ao cansaço desejos,
à água sabor e ao fogo a direção correta.
As mulheres de minha geração pariram filhos eternos,
cantando Summertime os amamentaram,
fumaram marijuana nos poucos descansos da luta,
dançaram o melhor do vinho e beberam as melhores melodias.
Porque as mulheres de minha geração
nos ensinaram que a vida não se oferece em borbotões companheiros,
porém de golpe e até o fundo das conseqüências.

Foram estudantes, mineiras, sindicalistas, operárias,
artesãs, atrizes, guerrilheiras, até mães e parceiras
nos raros tempos livres da luta de Resistência
porque as mulheres de minha geração só respeitaram os limites que
superavam todas as fronteiras.

Internacionalistas de carinho, brigadistas do amor,
delegadas de dizer te amo, milicianas na carícia.

Entre uma batalha e outra as mulheres de minha geração se deram toda
e disseram que ainda era pouco.
Declararam-nas viúvas em Córdoba e Tlatelolco.
Vestiram-nas de negro em Porto Montt e São Paulo
e em Santiago, Buenos Aires ou Montevidéu
foram as únicas estrelas na longa noite clandestina.
Suas prisões não são prisões
porém uma forma de ser para o que fazer que lhe espera.

As rugas que aparecem em seus rostos
dizem tenho sorrido e chorado e voltaria a fazê-lo.

As mulheres de minha geração
ganharam alguns quilos de razões que se grudam em seus corpos
se movem um pouco mais lentas e cansadas de esperar-nos na meta final.

Escrevem cartas que incendeiam memórias.
Recordam aromas proscritos e os exaltam.
Inventam a cada dia as palavras e com elas nos empurram.
Nomeiam as coisas e nos preparam o mundo.
Escrevem verdades na areia e as entregam ao mar.
Convocam-nos e nos parem à mesa posta.

Elas dizem pão, justiça, liberdade
e a prudência se transforma em vergonha.

As mulheres de minha geração são como barricadas:
protegem e animam, dão confiança e suavizam o gume da ira.
As mulheres de minha geração são como um punho cerrado
que resguarda com violência a ternura do mundo.

As mulheres de minha geração não gritam porque elas derrotaram o silêncio.

Se algo nos marca, são elas.

A identidade do século são elas.
Elas: a fé fortalecida, o valor oculto num panfleto,
o beijo clandestino, o retorno de todos os direitos.

Um tango na serena solidão de um aeroporto,
um poema de Gelman escrito num guardanapo,
Benedetti compartilhado no mundo de um guarda-chuva
os homens e os amigos protegidos com raminhos de arruda.

As cartas que fazem beijar o carteiro.
As mãos que sustentam os retratos de meus mortos.
Os elementos simples dos dias que aterrorizam o tirano.
A complexa arquitetura dos sonhos de teus netos.
Isso é tudo e tudo se sustenta.
Porque tudo vem com seus passos e nos chega e nos surpreende.
Não há solidão onde elas cuidam
nem esquecimento enquanto elas cantam.
Intelectuais do instinto, instinto da razão,
prova de força para o forte e amorosa vitamina do fraco.

Assim são elas, as únicas, imprescindíveis
sofridas, golpeadas, negadas porém invictas
mulheres de minha geração.

Luis Sepúlveda Calbucura,
Santiago do Chile, 1999.