terça-feira, 23 de novembro de 2010

Gilberto Freyre, nós e eles



Segundo Coelho Rodrigues, ao erro da "liberdade incondicional dos escravos, atirados de chofre ao deus-dará, do fundo das senzalas às ruas da cidade", sucedera o de uma república caracterizada pelo predomínio regional do Estado de São Paulo e dos Estados do Sul confederados com São Paulo para "tirarem da União o máximo em troca do mínimo possível", em benefício quase exclusivo de "seus políticos fazendeiros". (...) Se logo após o 15 de Novembro começou a erguer-se, desejoso de poder político, um grupo de militares, quase todos positivistas, particularmente temidos pelo generalíssimo Deodoro, não foi menos terrível o grupo que, quase consolidada a República, se levantou com o mesmo fim no Sul do País, principalmente em São Paulo e formado por "advogados administrativos", "comerciantes políticos" e, segundo Coelho Rodrigues, "particularistas ferozes", que, "à socapa iam puxando a brasa para a sua sardinha e promovendo o braço-de-ferro entre as quatro províncias do Sul, ao mesmo tempo que embaraçavam o porto de Torres e a navegação do Araguaia". (...) Destaque-se a propósito dos políticos civis paulistas que se distinguiram, triunfante a República, em promover interesses econômicos de grupos estaduais ou regionais, nem sempre coincidentes com os gerais ou nacionais, que foram apenas alguns dentre os republicanos históricos de São Paulo. Outros se salientaram sempre pela integridade e até pela intransigente pureza de conduta; e também pela capacidade de considerar os problemas brasileiros como problemas nacionais. Através daqueles e não por intermédio destes, é que a República pareceu de certo modo constituir, nos seus primeiros dias de regímen consolidado, o "Eldorado" de São Paulo, com compra, pela União, do "ramal da São Paulo", o alargamento, realizado pelo governo federal, da bitola da mesma via férrea, a organização da cabotagem de São Paulo com o Rio Grande do Sul.

Freyre, Gilberto. Ordem e Progresso - Processo de desintegração das sociedades patriarcal e semipatriarcal no Brasil sob o regime de trabalho livre: aspectos de um quase meio século de transição do trabalho escravo para o trabalho livre; e da monarquia para a república. 6ª ed. rev. São Paulo: Global Editora, 2004 (Introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil - 3). Pp. 1010-1011. (Grifos meus)



Eu jurei que não me meteria no assunto porque minhas posições poderiam jogar mais querosene na fogueira. Eu consegui ficar na minha quando estouraram as primeiras declarações no Twitter de uma estudante de Direito de São Paulo, Mayara Petruso, e a seqüência de endosso que outras pessoas deram ao que ela falou sobre as eleições, sobre o voto desqualificado dos nordestinos e dos nortistas e sobre suas sugestões de matarem a nós, mortos-de-fome-que-elegemos-um-governo-corrupto-apenas-porque-pensamos-com-nossas-barrigas-e-barramos-a-possibilidade-das-regiões-com-eleitores-esclarecidos-que-votaram-conscientemente-no-futuro-do-país-de-elegerem-um-candidato-mais-preparado. Até aí, fiquei quieto. Essa história já estava circulando antes das eleições mesmo. De certo modo, até esperava algo parecido ao caso da estudante.

Mas decidi que a resposta precisava vir o mais rápido possível depois de ouvir ecos sepultados há muito se espalhando por aí, até nas páginas da Folha de S. Paulo. A coisa estava ficando séria quando acrescentaram os novos elementos fornecidos por Mayara e seus seguidores à fracassada Revolução Constitucionalista de 1932. Daí foram juntando os pedaços das idéias dos outros que, antes dela, já estavam polemizando na internet. Cada vez mais davam acolhida às palavras da tal futura advogada com base no passado. Quando percebi, o assunto já estava virando um problema de saúde pública. Aí eu resolvi entrar na parada.

Pois bem, vamos estudar história...

É conhecida a crítica feita à elite separatista de SP. Eu acho que isso é reduzir demais a questão, hoje. Mas em 1932, nem tanto. Quando Gilberto Freyre publicou Casa Grande & Senzala, em 1933, houve um tanto de panos quentes neste livro jogados em cima da questão da guerra civil que os paulistas quatrocentões travaram com a União Federal um ano antes. Há palavras muito apaziguantes do clima de separação que se criou quando São Paulo decidiu que não seria conduzida, conduziria - non ducor, duco. (E só pra deixar claro, não estou na tentativa de adivinhar as intenções do mestre pernambucano, estou apenas interpretando). Gilberto Freyre precisou escarafunchar a história brasileira e nela encontrar coisas de certa forma até "míticas" para justificar nosso plano maior de união nacional ameaçado por São Paulo: o brasileiro, a brasilidade, o Brasil. Precisava achar elementos que debelassem essas dissonâncias e soassem como um "deixa disso, rapaz" com os separatistas. Ele fez. Mas fez, curiosamente, de uma maneira malandra. Disse que a constância, a regularidade, a calma, a fixação ao solo só teriam condições de existir através do engenho que abrigava o par casa-grande & senzala - anotem aí: zona da mata canavieira, sobretudo nordestina; ao contrário do que ocorreu com o movimento dos bandeirantes que, segundo o próprio Freyre, em alguns momentos, ameaçaram dispersar a união da Colônia e fazer sumir o elemento luso-civilizador no meio das matas, pois bandeirantes se embrenhavam de tal maneira que nem El-Rey mais poderia encontrá-los - anotem aí: bandeirantes, capitania de São Vicente, futura São Paulo. Mas aí vem a tática do "morde-assopra" de Freyre. Ele sintetiza afirmando que, apesar de seu caráter aventureiro, os bandeirantes provaram seu valor para o plano divinal do Brasil que ainda não nascera através de sua grande mobilidade, de, por conta dessa virtude, sair em defesa dos irmãos mais longínquos - como o caso dos paulistas que andaram muito e foram socorrer os já-quase-brasileiros ajudando-os a expulsar os holandeses das terras do litoral do Nordeste. Grande contribuição deles, sem dúvida, foi também o adensamento da presença branca pelos sertões, sem contar que a expansão das fronteiras coloniais foi obra de quem se metia floresta adentro sem jamais pestanejar. Vejam que aqui Gilberto Freyre diz a paulistas e a pernambucanos: somos todos brasileiros.

Houve quem discordasse disso? Houve. Houve quem achasse esses argumentos furados? Houve. Como exemplo, dou um que nem era paulista. Não foi uma discordância tão bem montada, tão bem trabalhada, tão bonita quanto a fonte da discórdia (Casa-Grande & Senzala), mas Allyrio Meira Wanderley, um nordestino, no seu opúsculo As Bases do Separatismo (1935), levantou o dedo contra Freyre e disse que essa montagem da história brasileira foi arbitrária, foi manca e ilusória. Forçou a barra. Para Allyrio, o "ser brasileiro" ainda era nebuloso demais numa história que se desenvolveu regionalmente. A Confederação do Equador era tão nacionalista quanto a Inconfidência - Nação é aqui onde eu vivo, Pernambuco ou Minas Gerais. A Coroa Portuguesa e, posterior e principalmente, o Império foram os grandes avalistas da união nacional, salvando-a sempre que fosse necessário. Essa tendência de enxergar e escrever a História do Brasil sob a ótica da coesão do país orquestrada pelo Império foi bastantemente gestada durante os reinados de Pedro I e Pedro II (leiam Oliveira Viana). Gilbero Freyre é herdeiro dessa compreensão e esse escopo reaparece em Ordem e Progresso. Mas observem que já estamos discutindo a "construção" do Brasil. Já conseguimos perceber que o Brasil é, também, uma questão de perspectiva. Freyre apontava pra história e dizia: aqui, aqui e nisso ali tem Brasil. Allyrio olhava e dizia: nada a ver com Brasil.

(Honestamente, apesar de ser grande admirador de Allyrio, tenho que reconhecer a astúcia de Gilberto Freyre e reconheço que neste debate específico eu me alio - com restrições - ao sociólogo recifense).

Mas, adiante...

Sim, mas e por que naquele texto que você usou como epígrafe lá em cima eu fiquei com a impressão de que Gilberto Freyre tava malhando os "mano" paulistas? Que bondade de Judas é essa em mediar o resto do Brasil com São Paulo usando aquelas palavras?

Apesar do tom ressentido (não apenas neste trecho, mas em vários outros do livro), Gilberto Freyre deixa claro que houve mérito dos paulistas em se adiantarem e morderem esse pedaço dos recursos da União e conseguirem tantos ganhos para sua região. Não foi apenas por questões econômicas ligadas aos interesses dos barões do café, desejosos de expandir seus negócios, que São Paulo se beneficiou mais do que outros Estados das políticas promovidas pla União. Foi lá também que se desataram, antes de outras províncias, nós cabais como o do trabalho livre assalariado que permitiu a existência, concomitante e posterior à lavoura cafeeira, da indústria urbana. Isso foi decisivo para a largada na frente de São Paulo ao nascer da República. Contribuiu para isso a presença cada vez maior de figuras políticas de caráter mais pragmático, gestor e administrativo no cenário do governo federal, produzidas por uma São Paulo que se modernizava em sua maneira de ver o mundo, diferentemente daqueles políticos retóricos e eloqüentes produzidos pela elite caduca dos patriarcas baianos, caso de Rui Barbosa. Uma nova classe política que fez toda a diferença pois estava munida de outros ideais de comércio, produção, gestão de recursos, estratégias para obras essenciais, e por aí vai.

Em artigo que dorme na caixa-das-almas, no prelo eterno, no curriculum mortis do Jerimum Beta, eu trouxe essa discussão ainda que de forma acanhada e incompleta. Mas vou pincelar: o ressentimento de Gilberto Freyre está no fato de que ele tem de reconhecer que Pernambuco e o Recife viveram seus dias de glória quando precisaram lidar com uma vertente tropical do capitalismo que não era tão complicada de se praticar e cujo modelo, o da monocultura escravocrata e exportadora, estava amparado pela pouca turbulência do cenário econômico mundial (e político no que tange às relações entre Colônia e Metrópole) que se manteve estável até os idos do século XVIII, quando no XIX entrou em franca decadência. Esse longo intervalo meio que acumulou "vícios" na família patriarcal, dando a ela a impressão de ser impossível sua queda. Ao discorrer sobre esse tempo, a idéia sugerida por Gilberto Freyre é de que a relação do nosso presente, do Sul-Sudeste rico e desenvolvido e do Nordeste pobre e atrasado, era completamente invertida. Mas quando a mesa virou, tomou de surpresa os sinhôs e as sinhás. Pois, enquanto São Vicente (depois São Paulo) permaneceu a prima pobre do Nordeste açucareiro, no romper dos novos tempos, quem já estava em cena não era mais a cana e sim o café paulista. Mas aqui surge uma pergunta: mas se São Paulo, que estava agora na dianteira produzindo café sob o (quase) mesmo esquema da cana nordestina - latifúndio, monocultura, trabalho, já livre, e regime de exportação - então por que as coisas foram diferentes por lá? Por que o café, ao entrar em decadência, como a cana entrou no Nordeste, não afundou São Paulo também?

A resposta eu dou formulando com a ajuda do próprio Freyre. O tempo de maturação de uma cultura baseada no café não foi suficientemente largo, em São Paulo, para criar a mesma relação que a lavoura da cana criou no Nordeste. Freyre apresenta quase - quase não! - uma civilização desenvolvida pela cana. Um modo de viver e morrer. Um modo de família. Um modo de estar no mundo. Além de não haver esse tempo, São Paulo enriqueceu com o café num momento gritantemente distinto daquele vivenciado pelo Nordeste. A forma de se enxergar o capitalismo era outra. Mas, muito mais que isso: a forma de ver o mundo era outra. Era de um tempo que se distanciava daquele tempo da lavoura de cana, um tempo que se acelerava em relação a este. São Paulo aprendeu a lidar com dinheiro (o seu dinheiro!) e com negócios no melhor momento do Brasil: a passagem do século XIX para o XX. Num momento em que a República laicizava tudo, secularizava as coisas. Onde as pessoas não guardavam mais dinheiro em botijas e enterravam nas grossas paredes das casas-grandes antes de morrerem - e quando um sortudo tinha o privilégio de recebê-la de presente da alma do defunto, ao desenterrá-la o dinheiro não valia mais nada. Agora tinham os bancos atualizando os valores diariamente, corrigindo os juros das aplicações. Dinheiro parado era dinheiro morto. Dinheiro agora era capital; e capital gerava capital. Terra era capital e não um território indivisível e sagrado. Esse novo capitalismo, São Paulo aprendeu-o fazendo. E a classe que resultou disso soube muito bem transitar para outro nível quando o café deu sinais de falência. Eu diria até que ela antecipou esse processo. Ao contrário da visão freyriana de que o patriarcado buscou permanecer a si mesmo o máximo possível.

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Desvios e explicações à parte, voltemos ao que interessa. Não é preciso muito esforço para entender que o Mestre de Apipucos via com certo receio o advento da República. Neste ponto, sua perspectiva é a de um conservador. O pacto federativo, na verdade, teria provocado um grande ensejo para aquilo que ele terminava condenando: a autonomia exagerada das unidades federativas. Como afirmei antes, a visão do Império e do Imperador, montada e herdada sobretudo do Segundo Reinado, corroborada por Freyre no séc. XX, é respectivamente a de um sistema político eqüânime, porém duro; e da figura paternal e paternalista de Pedro II. Como sistema, atuava contendo os ânimos das regiões mais exaltadas em detrimento das outras (a ferro e fogo, diga-se de passagem). Como Pai, saía sempre em defesa dos mais pobres, protegendo-os das ganâncias dos poderosos. Onde o conservadorismo de Gilberto Freyre me parece "revolucionário"? Em termos simples e grosseiros, diria que no instante em que ele lembra aos republicanos tarados pelo desenvolvimento e pela aceleração do país rumo ao futuro prometido no Hino Nacional que há coisas, detalhes mínimos, que vocês, desenvolvimentistas, esqueceram: há milhares de pobres, ex-escravos, mestiços, vivendo miseravelmente nas cidades; gente passando fome a juntar de pá. A República se punha tão progressista que ficou cega, comportando-se como quem não vivia num país onde as questões sociais mais elementares estavam a todo momento clamando por soluções. Comportou-se assim em vários pontos: tentou a duras penas modernizar o câmbio, ao que Gilberto Freyre censurou: modernizar uma coisa que quase não existe - a moeda nacional? O progresso está na indústria urbana? Mais importante é valorizar primeiro atividades como a agricultura e a pecuária! Posto que as políticas paternalistas de apoio aos desvalidos eram características do Império, é aí que se expõe o tal "conservadorismo revolucionário": defender o Império e defender os pobres dentro de um ambiente que os esqueceu, mas que ainda assim se achava a coisa mais adiantada do mundo, era mais revolucionário do que qualquer idéia ou prática republicanas. Ainda em 1950, Juscelino Kubitschek, apesar de tudo, também não entendeu essa mensagem quando resolveu abrir estradas pelo país todo quando só agora, em 2010, "qualquer miserável pode ter um carro".

Engraçado como os livros de história, ao tratarem da tal República Velha - essa em que as unidades federativas ganharam força e autonomia, quase ameaçando a União - ressaltam logo a figura do Coronel nordestino, esse que você acha em qualquer romance de Jorge Amado. Esquecem que Coronéis também existiram no Sul e Sudeste, travestidos com outros panos, mas existiram. Esquecem de dizer que foi a República de 1889 que favoreceu o surgimento deles e de dizer, principalmente, que quem mais se beneficiou dessa República foi justamente o Sul e o Sudeste (leia-se "São Paulo").

Pois foi! Chegar agora e bradar que São Paulo carrega os pobres-miseráveis-banguelas-analfabetos-que-votam-pelo-bolsa-família é muita arrogância. Pois mesmo ressaltando o pioneirismo por contingências históricas, sociais e culturais de São Paulo e seu possível mérito em ganhar bônus junto às receitas da União após o 15 de Novembro, ainda assim Gilberto Freyre apresenta um quadro desigual e injusto da condução que os paulistas e sulistas de um modo geral deram às políticas nacionais. Em outras palavras, São Paulo merecia, mas também abusou. Acham cruel minha fala? Pois acompanhemos:

Em livro publicado em Paris em 1909, Le Brésil au Xe Siècle, Pierre Denis fixou em páginas menos de sociólogo da economia que de economista-geógrafo, alguns dos traços característicos da situação brasileira durante os primeiros anos da República. Inclusive o que havia de postiço num protecionismo a serviço de poucos e contrário, quase sempre, ao interesse mais ampla e autenticamente nacional (Freyre, 2004, p. 724).

Sim. A defesa exaustiva do desenvolvimento da indústria nacional foi bandeira dos republicanos. Positivistas em sua maioria, fiavam-se no progresso material guiado pela industrialização. Os primeiros focos dela, no Sudeste e Sul, surgiram tímidos e, para sobreviver, garantir sua existência e proliferar, precisavam de um protecionismo fiscal que impedisse que produtos estrangeiros, mais baratos sem as altas tarifações, fossem escolhidos pelo consumidor nativo. Uma indústria nacional incipiente e pouco competitiva não teria como enfrentar os produtos estrangeiros. Então vamos valorizar o que é nosso! Assim é que somos autenticamente nacionais! Mas naquele contexto isso soou vazio a muitos brasileiros. Continuando de onde parou o trecho acima, temos:

Era assim que se tributavam proibitivamente - como já destacara o Jornal do Commercio - os tecidos de lã, sem que o País possuísse lanifício e realizasse a criação sistemática dos lanígeros; os chapéus-de-chuva, para que, por preços módicos, os fabricantes brasileiros importassem os cabos, a armação, a seda cortada em triângulo, resumindo-se a fabricação nacional desses artigos em "juntar as partes componentes". O mesmo quanto a papel pintado. Quanto a fósforos. Com relação aos fósforos, o Brasil, país de florestas inexploradas, dava-se ao desfrute de importar da Noruega a madeira em pequenas lâminas.

Tratava-se de uma indústria nacional em parte carnavalesca; e cujo progresso era antes ficção que realidade. À Exposição de 1908 não faltou assim alguma coisa de bovarístico; e os amazonenses e paraenses que se aventuraram a visitá-la, vindos do extremo Norte ao Rio de Janeiro em patrióticos vapores do Lloyd, devem ter sentido de perto a crueldade de um protecionismo que para eles e outros brasileiros de pouca ou nenhuma indústria manufatureira não significava senão aumento de preços, vida cara, existência precária.

O Estado do Amazonas, por exemplo - notou-o o barão d'Anthouard - não tendo indústria manufatureira, vinha pagando aos Estados manufatureiros da União, sob o regímen protecionista, "verdadeiro tributo": "un véritable tribut, afin de leur réserver son marché". E é curioso ter sido necessário aparecer um francês para destacar em livro que havia nesse desajustamento inter-regional, no Brasil, reminiscência dos chamados pactos coloniais entre metrópoles e colônias (pp. 724-725 - grifos em negrito meus).

Acho completamente inútil repetir com outras palavras o que está mais que claro acima. Mas é assim que teses de doutorado são feitas todos os dias no mundo. Então vamos lá: a miraculosa e messiânica indústria nacional, que, de longe, dificilmente atenderia a demanda de abastecimento do mercado interno, era protegida pelas leis fiscais dotadas pela União. Para quem tinha indústria no seu Estado, massa! Mas a gigantesca maioria do país não tinha. Resultado é que, além de termos uma indústria que macaqueava os produtos e que de nacional tinha quase nada consistente que justificasse esse ufanismo protecionista, o prejuízo para quem necessitava adquirir bens de consumo, como a simples comida, ficava exatamente nas mãos de quem era o real motivo de um nacionalismo de verdade: os brasileiros. Vamos mais uma vez com Freyre:

Coincidiu, entretanto, com a Exposição de 1908 do Rio de Janeiro - espécie de parada ou exibição de progresso estreitamente industrial e metropolitano num país em que se fizera a República, alegando-se sobretudo, contra o Império, o seu caráter unitário, a centralização do seu governo, o abandono das Províncias pela corte, o desprezo dos agricultores pelos políticos demagógicos do Rio de Janeiro - uma petição ao Congresso Nacional do comércio do Amazonas que outra coisa não foi senão clamor de colônia contra abusos de exploração metropolitana. Por essa petição tornou-se evidente o desenvolvimento, no Brasil, de um imperialismo econômico da parte do Rio de Janeiro e, talvez, já, de São Paulo, com relação a Estados inermes, pior, sob mais de um aspecto, para esses Estados, que o imperialismo político da corte com relação às antigas províncias. Para a população do Amazonas, com o protecionismo, favorável sobretudo ao Rio de Janeiro e a São Paulo, um tano menos, a Minas Gerais e ao Rio Grande do Sul, e, ainda menos, a Pernambuco, os direitos de importação haviam aumentado de 562% sobre o arroz, de 383% cento (sic) sobre a batata chamada inglesa, de 122% sobre a cebola, 161% sobre o feijão, de 117% sobre a manteiga, de 50% sobre a carne em conserva. O mesmo com relação aos panos grosseiros. (p. 725 - grifos em negrito meus)

O arremate vem da seguinte forma:

Com semelhante aumento de custo de vida, em regiões incapazes de se compensarem em parte desse aumento por meio de uma industrialização real ou fictícia, o progresso nacional no Brasil, sacrificado à mística pan-industrialista - isto é, manufatureirista -, tendia a tornar-se um paradoxo: isto é, um antiprogresso. Um antiprogresso, além de um perigo para a ordem econômica de um país da extensão do Brasil. Para a ordem econômica, para a ordem política e para a ordem social. (p. 725 - grifos em negrito meus)

O perigo de cair novamente no mesmo erro vem se repetindo e repetindo ao longo da história do Brasil. Como disse noutro texto, a estranheza causada com a leitura de Ordem e Progresso é de que o tempo dá voltas. Nesses últimos dias há uma pandemia econômica nacional sobre cuja solução tanto governo de esquerda quanto opositores de direita se encontram de acordo. Trata-se do Dólar barato que fez com que o Real se fortalecesse. A lógica é quase a mesma posta por Freyre sobre a indústria no começo da República. Setores quase exclusivamente voltados à exportação (principalmente do agronegócio) sabem que comercialmente seus produtos são simples (grãos de soja, por exemplo), não possuem valores agregados como aqueles da indústria de tecnologia de ponta e que, portanto, são vulneráveis demais às flutuações no câmbio. A única vantagem que lhes cabe é exportar com o Dólar mais caro. Nos jornais, a notícia é de que a valorização do Real e a queda do Dólar é ruim para o Brasil e como brasileiros devemos nos preocupar com esse cenário ruim para nossa economia. Mas não tratam, por exemplo, do bom momento da indústria nacional para adquirir máquinas a preços mais baratos para produzir mais e melhor aqui no país. Ou de que os consumidores-povão podem ter acesso a bens importados. Ou de que peças de informática ficam mais baratas a ponto de baratear computadores que, conseqüentemente, aumentarão a presença nos lares brasileiros. Há, porém, uma diferença essencial quanto às políticas trabalhistas durante a República. Hoje, a imprensa e os economistas brasileiros se dão ao trabalho, pelo menos, de defender o Dólar forte com vistas ao maior lucro das exportações nacionais utilizando o argumento da proteção do trabalho e do trabalhor nacional. Por esse raciocínio, a defesa abrange a manutenção dos empregos que dependem desses setores de comércio externo. Pois bem. Na República, sequer havia legislação trabalhista. O nacionalismo dos industriais não incluía o elemento mais nacional na produção, qual seja, o trabalho do brasileiro. Se lermos alguns pedaços de Ordem e Progresso teremos uma boa noção de como vivia o incipiente operariado nativo, no mais completo abandono.

Eis que, como vimos, no fim do XIX e começo do século XX, o Sul e Sudeste tiveram toda a chance e o favorecimento para adiantarem e desenvolverem sua indústria. O governo federal, notadamente administrado por representantes dessa região, deu aval a esse protecionismo nem um pouco patriota. Com relação a São Paulo, Gilberto Freyre termina sentenciando:

Embora não houvesse ainda no Brasil dos primeiros anos da República nenhuma área de concentração industrial-manufatureira que lembrasse a dos Estados Unidos, mas, ao contrário, uma dispersão que a Pierre Denis pareceu "extrema", encontrando-se "minúsculas fábricas até em pequenas aldeias", mesmo assim parecem ter se acentuado, sob o protecionismo, desequilíbrios prejudiciais à unidade inter-regional. Tais desequilíbrios viriam a culminar, em época mais recente que a considerada neste ensaio [1957], no império industrial-manufatureiro concentrado em São Paulo, dentro da área supermetropolitana formada pelo conjunto manufatureiro-urbanístico distrito federal - São Paulo. (p. 726)

Obviamente, Gilberto Freyre não levará às últimas conseqüências o teor dessas afirmações. Reconhece que as políticas de proteção à indústria nacional geraram bons resultados na soma de todos os fatores. É bom deixar claro, mais uma vez, que apesar dos abusos que o protecionismo causou, era muito difícil que outras medidas fossem tomadas dentro da República. São Paulo era a bola da vez, tinha todo o prestígio econômico consigo em função do seu café. Qualquer outro Estado ou região que estivesse na mesma situação naquele momento não agiria de outro modo. Talvez a melhor opção fosse uma política centralizadora semelhante à do Império que, segundo Freyre, jamais permitiria que qualquer região se sobrepusesse às demais. Mas o mais importante desta discussão é evidenciar o desenvolvimento desigual, o tratamento diferente que a União Federal dispensou ao Sul e Sudeste. As elites açucareiras do nordeste já não possuíam o mesmo poder de barganha de antes. E, sinceramente, esse inconformismo da mudança do eixo político e econômico para o Brasil meridional perseguirá Gilberto Freyre em quase todos os seus livros.

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Ocorre que, tendo São Paulo e o Sul-Sudeste, ganhado o filé dos investimentos da União durante, pelo menos, as três primeiras décadas da República, chegamos à situação do rompimento daquela política do Café-com-Leite, onde São Paulo revezava-se no poder com Minas Gerais (eu acho que quando o PSDB fala hoje de "alternância de poder" é com saudades dessa época). Como sabemos, foi um gaúcho nada eugênico que furou esse bloqueio, Getúlio Vargas. Não estou aqui dizendo que foi Getúlio o sujeito que solucionou tudo no Brasil. Mas basta que leiamos as mais recentes pesquisas sobre a historiografia brasileira para percebermos o quão centralista foi o seu governo, quase no sentido defendido por Freyre (ou exatamente defendido, não sei adivinhar). Foi Vargas o sujeito que se empenhou firmemente em unir os brasis, mesmo que para isso ele agisse com violência, como fizeram os Pedros. Lembram daquele livro de Allyrio Meira Wanderley? O Autor teve-o cassado, arrumou um processo, uma perseguição por defender o separatismo. (E aqui abro um parêntese: a República de 1889 também agiu violentamente, como no caso de Canudos - caso esse amaciado pela descrição que Freyre dá sobre aquele massacre covarde. Mas não agiu, pelo que se depreende da leitura de Ordem e Progresso, motivada pela união nacional. Foi mais uma violência de adequação aos ideais republicanos, já que Canudos, liderada por um fanático monarquista, era tido como uma vergonha retrógrada dentro da república acelerada e hiper-científica dos positivistas). Imaginem o impacto que o programa de rádio A Voz do Brasil, criado por Vargas, causou na vida dos brasileiros. Pela primeira vez, havia um presidente, de um país, falando a todos os cidadãos como um só. Essa foi apenas uma das medidas iniciadas por Vargas de tentar unir esse território continental chamado Brasil.

Se ele está justificado, se está abosolvido pelo julgamento da História, isso eu não sei. Mas Gilberto Freyre foi um dos grandes entusiastas das políticas nacionalistas de Vargas e, como sabemos, Freyre jamais daria apoio a quem não apostasse num projeto de construção da brasilidade. Pois foi contra essas políticas que São Paulo se insurgiu em 1932. Primeiro, porque já não tinha mais o controle do governo; segundo, porque começou a sentir o peso de um Estado concentrador de poder, o inverso da descentralização criada pelo 15 de novembro. Acho que todos já ouviram falar daquela novela, baseada no romance homônimo, Éramos Seis. É quase uma versão paulista de Guerra e Paz, de Tolstói, com a diferença de que Guerra e Paz é Guerra e Paz e acabou-se! Durante a história, há o surgimento da luta armada que São Paulo desencadeou contra Vargas. Há até uma referência ao movimento do MMDC, das cujas vítimas uma pertencia à família protagonista do romance.











Percebam o uso do símbolo do bandeirante como elemento definidor do paulistismo.



Não tenho dúvida de que os paulistas, depois da derrota, tenham aderido à ideologia da união dos povos brasileiros. Mas em algum momento, isso ficou em estado de alerta, em 1932. Curiosamente, sai em defesa de Mayara Petruso, a tal estudante de Direito, a colunista Janaína Conceição Paschoal que escreve na Folha jogando a culpa pelo novo acirramento regionalista no governo Lula. O incentivo ao "nós contra eles". Diz ainda que Mayara é um sintoma dessas políticas discriminatórias. Que o Brasil é tolerante, pluri-regional e, mesmo assim, um só. É engraçado como ela assimilou a mensagem freyriana mesmo carregando nas costas a memória das intenções da Revolução de 1932 que foi desencadeada por se opor a um presidente que queria unir a nação. Curioso como, em 1932, não era Lula o presidente. É ela quem afirma, também, ser fato que São Paulo banca as políticas sociais que alimentam os banguelas nordestinos. Pô! Mas será que, depois de se beneficiar tanto da União, como vimos, não daria pra São Paulo abrir a mão sem reclamar demais? Cuspiria no prato federal em que comeu?










Na foto, Mayara Petruso em reencarnação passada.


Os senhores e senhoras que me leram acharão fortes minhas palavras, minha argumentação? Terei jogado querosene na fogueira, como não era intenção? É uma dúvida que vou carregar. Mas confesso o quão chato é mexer nesse assunto. É complicado escapar às reações de raiva e de revide. Mas uma resposta a essas pessoas que tentam criar um destino manifesto para a paulistanidade muito dificilmente traria palavras doces. Não sei precisar o quanto de mensagem preconceituosa contra o resto dos brasileiros fazia parte da ideologia dos separatistas de 1932. Acredito que isso não estava em questão. Talvez admitia-se a separação por razões de autonomia financeira e política. Mas o conteúdo agressivo contra nordestinos, por exemplo, não imperava - isso só uma pesquisa poderia dizer, mas minha impressão é de que não houve (se bem que Menotti del Picchia...). Só que hoje, esses sentimentos dos anos 1930 se juntaram a outros de aspecto pejorativo, racista. Vem de pessoas que ajudam a criar o estereótipo da elite-paulista-separatista e agora xenófoba e que precisam, urgentemente, entender que não está apenas na raiz mítica do bandeirantismo de sua gente a explicação de sua pujança econômica. Está também no favorecimento desigual que São Paulo gozou ao longo do começo da República. O Nordeste não ficou pra trás somente por não ter se ajustado aos novos tempos. Ficou para trás, entre muitas razões, por conta das políticas de segregação regional que sofreu. Tirar-nos as mudanças que ora vemos aqui por nossas terras, graças ao governo Lula, é de um egoísmo sem par. Será que a União não pode, ao menos dessa vez, privilegiar outro lugar? E pra deixar bem claro, eu não quero, para minha cidade, o mesmo modelo de desenvolvimento que São Paulo capital aceitou, por exemplo. Não estou com vontade de abraçar um xique-xique. Quero que São Paulo fique mesmo com os paulistas, se assim desejam; que eles continuem conservando a cultura que eles construíram de tanto comer BigMac's e tomar Starbucks e da qual tanto se orgulham.