quinta-feira, 29 de julho de 2010

A queda da casa da memória

Turuna Tântalo acaba de me ligar informando que, segundo nosso amigo Zé Bebelo, um prédio antigo daqui de Patos veio abaixo. Derrubaram, na verdade. Antes de prosseguir sobre esse assunto, quero dizer que a notícia disparou a vontade de escrever um texto sobre um negócio já antigo...

Tempos atrás, muitos tempos atrás, um grande amigo meu, colega de curso na faculdade, resolveu estudar o patrimônio histórico na cidade de Areia, na região do Brejo paraibano. Não era um ESTUDO, como esses que envolvem muita gente e recursos. Era um trabalho de coleta de entrevistas dos moradores que ocupavam os imóveis tombados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Areia possui quase toda a área do centro composta de casarões, sobrados antigos, datados ainda do Império (Parêntese - Areia é a cidade natal dos dois Américo: Pedro Américo, o pintor e romancista - sim!, poucos sabem disso; e José Américo de Almeida, o político escritor, o d'A Bagaceira - fecha parêntese). Bom, esse meu amigo tinha um escopo, algo que se faz muito nas Ciências Sociais que eu acho comum, porém não deixo de fazer minhas ressalvas: ele queria testar uma hipótese. Coisa que na verdade quase sempre termina forçando uma realidade a entrar de qualquer jeito numa roupa, e aí não se testa a hipótese, mas simplesmente se procura confirmá-la. O que ele queria confirmar era que os conflitos que ocorriam entre os atuais moradores dos sobrados, desejosos de poder dispor do espaço físico da casa de acordo com suas necessidades, e as autoridades do IPHAN, que proibiam qualquer alteração no imóvel, eram na verdade conflitos de ordem maior. Supunham uma briga de afirmação entre o Novo e o Velho.

O problema é que, segundo entendi das conversas com esse meu amigo, o cidadão que queria derrubar umas paredes e abrir uma garagem para pôr seu carro, ele se comportava como "agente da modernidade". Numa dessas conversas, estava presente um professor da UEPB, pai de outro grande amigo meu. Ao ouvir nosso diálogo, ele imediatamente questionou a proposição. Não seria possível atribuir um caráter tão apurado de consciência a essa ação; imputar a esse propietário a condição de "agente da modernidade" caso ele quisesse abrir uma garagem, algo tão simples e pragmático. Neste caso, uma garagem é apenas uma garagem, pelo que entendi. A demanda pode ser nossa, do nosso tempo, como para o tempo dos escravistas reservar um pedacinho do Engenho pra construir uma senzala era normal; mas não significa que o propietário está imbuído, possesso, do espírito da modernidade quando olha e diz: preciso de uma garagem. Seria necessário um pouco mais para enxergar a afirmação da modernidade neste caso. Ponto para o professor, assim penso. Além do mais, é possível mudar e conservar ao mesmo tempo. Hegel, Marx, Lukács, Max Weber, Walter Benjamin e Gilberto Freyre souberam muito bem disso. Dependendo de como se conduz esse movimento de mudança/conservação, pode se chegar a resultados perigosos ou benéficos. Mas isso é assunto pra outra conversa.

Antes que me apedrejem concluindo, por essas poucas linhas, que eu sou favorável à derrubada de imóveis antigos para atender nossas demandas, eu acrescento à discussão: a quem serve o patrimônio histórico? Ou melhor: quem se lembra dele? Melhor ainda: como se lembram dele? O "como" já deixa claro, em questões de memória, o "quem". Mas o "como" leva a discussão para outro patamar, do qual falarei mais adiante. Só de passagem vou rememorar que patrimônio está mui claramente associado àquilo que pertence ao pai. Já se disse que o Estado brasileiro é patrimonialista, em todos os sentidos. E essa atitude se estendeu ao IPHAN que, ao ser criado por Vargas, definia patrimônio, no fim das contas, como as "coisas do pai". Num nível um pouco mais simbólico, o que se erguia forte, imponente, sob os auspícios dos patriarcas senhores de engenho da Colônia; depois sob o espírito do Pai-Imperador, precisava ser preservado como totens sociais para lembrar a todos a presença do pai, mesmo morto. O culto aos defuntos, como donos das vidas dos vivos, já foi amplamente discutido por Gilberto Freyre em Casa-Grande & Senzala. Eu me lembro de ver fotos dos avós mortos nas paredes das salas das casas. E dizer assim parece tão longe, quando na verdade isso ainda existe por aqui.

No caso específico de Areia, vou pôr aqui minha leitura particular. E peço mais uma vez que esperem antes de me apedrejarem.

Todos os casarões, absolutamente todos, ninguém duvide que pertenciam a senhores de engenho da região. A escravos é que não eram. A única coisa em pé na cidade que remete diretamente a uma construção erguida para e pelos escravos é uma igreja, a Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, mais afastada do centro onde estão os casarões (ainda que se possa dizer que as senzalas também eram erguidas para e pelos escravos). Para os senhores, havia outro templo, mais próximo. Convido-lhes a conhecerem a cidade de Areia e depois me contarem qual das igrejas é a mais preservada, ornamentada, arquitetonicamente mais bem erguida. Dou uma garrafa de Bruxaxá de presente a quem acertar.

Se, por acaso, a idéia seja manter de forma inerte esses monumentos tombados, é difícil defender que assim eles permaneçam pelos séculos dos séculos. Sobretudo se eles ficarem nas mãos de particulares. E pelos meus instantes de revolta, muitas vezes defendi que passassem com um trator no centro histórico de Areia e varressem aqueles casarões. Afinal, boa parte da memória dos cidadãos do município que mora numa área afastada do centro em casebres muito modestos e não-tombados (porque não-históricos) está ligada à memória dos potentados dos sobrados. É presumível, pela coloração da pele dos que moram à margem do centro tombado, de que maneira eles poderiam se lembrar daqueles casarões.

Mas felizmente, graças à minha aproximação "conservadora" de Gilberto Freyre, eu penso doutro jeito sobre o tema. Primeiro, que o Estado é quem deve tutelar esse patrimônio histórico. Isso acaba, até certo ponto, com o problema de alterações estruturais dos imóveis. Segundo, que esse mesmo Estado deve fomentar o espaço desses prédios históricos como verdadeiro território de disputa dos que, de alguma maneira, se lembram deles. A casa, o engenho, a usina, a fábrica, mais do que lugares de expiação para muitos, representam espaços de memórias conflitantes. Fazer com que essas memórias venham à tona, mediadas pela pesquisa histórica, resulta em algo importante na reapropriação dos antigos partícipes (ou dos herdeiros) daquele espaço. Como mostra Freyre, foi na casa, na repetida luta do dia-a-dia, que tudo se construiu. Mesmo que tenha prevalecido a força do patriarca sobre as mulheres, as crianças ou os escravos, dizer assim é simples demais. As tramas, os enredos, o que se perde pelo cotidiano porque é pouco digno de nota escrita-documental - aí reside o colorido das memórias em conflito. São as senhoras de engenho que se aliam aos filhos mais velhos para destronar o senhor de engenho; são as tapiocas, os alfenins, a cocada, a imbuzada que aliam as pessoas nas conversas de cozinha que podem decidir as vidas e as mortes de muita gente; são as escravas que amamentam os sinhozinhos e contam histórias de reinos encantados. Todo esse universo está em jogo e deve ser evocado para esses espaços hoje. Esse é o "como se lembrar" a que aludi acima. A posição da memória que demonstra a sua relação com o objeto - de superioridade ou de inferioridade. Mas hoje, ela deve ser impulsionada para que se mostre que não existe mais a prevalência, ou pelo menos não deve mais existir, das mesmas relações hierárquicas do passado. E até a memória da dor deve ser trazida para que se diga que "aqui se sentiu dor" para que a argamassa dessas paredes expresse essa dor. É claro que existe o sagrado direito de quem queira esquecer e deixar esquecido. Mas quem quiser lembrar, que conte sua versão para que seja acrescida à memória do prédio. Essa é a minha atual noção de patrimônio histórico: mantenha-se o máximo de coisas em pé mas que jamais se mantenha a neutralidade poeirenta das estátuas que nada falam.

O IPHAN tem adotado novas prerrogativas para definir patrimônio histórico. Já foi um avanço. Aqueles chamados patrimônios imateriais terminam por ser a grande sacada do que defendia Gilberto Freyre. Estes, mais do que as construções em tijolos, quase sepulcros da memória, possuem a dinâmica do conflito e da exaustão do cotidiano entranhados na alma. Sejam desde a feijoada, as festas do bumba-meu-boi, ao aboio do vaqueiro na caatinga. Estão para além dos monumentos.

Agora, o caso particular, que motivou a escrita desse texto. Trata-se da derrubada de um casarão que fica no "centro histórico" de Patos. Coloco as aspas porque oficialmente ele não existe. A memória, ou as memórias, ligadas a esse casarão eu não conheço. Não sei o quanto delas foi reivindicada. A única coisa que sei é que ele pertenceu (isso eu suponho pelas informações coletadas) à família do escritor patoense Allyrio Meira Wanderley. Vocês certamente já devem ter ouvido falar dele aqui no blogue. Allyrio foi um romancista, ensaísta, crítico literário e escritor ligado ao marxismo no Brasil que, depois de morto precocemente (com 49 anos em 1955), desapareceu do cenário intelectual brasileiro. Atribuo seu sumiço a duas grandes coisas: desapego pela própria obra, o que o levou a não ter muito interesse em promovê-la, sem se associar a "igrejinhas" de intelectuais - isto fruto de um grande orgulho na defesa de suas posturas ideológicas; e segundo, não sei se como conseqüência do motivo anterior, ao escanteamento que ele sofreu após sua morte dentro da história intelectual brasileira. Ironicamente, na mesma rua onde ficava o casarão de sua família, existe o casarão de Ernani Sátyro. Este, preservado, transformado em museu e sede da Fundação com seu nome, fundação de intenções com dinheiro público duvidosas. Ernani Sátyro, o acolhido no colo de poderosos: durante a Ditadura Militar, à qual deu total apoio, foi nada mais nada menos que presidente da UDN, líder do governo no Congresso (???) nos anos de Costa e Silva, quando presidiu o Superior Tribunal Militar (somente!!) e ainda foi interventor do Estado da Paraíba. Belo curriculum.

O casarão dos Meira Wanderley é citado em dois romances de Allyrio, Sol Criminoso (1931) e Ranger de Dentes (1945). Naquele, aparece nas primeiras linhas, quando é narrado o episódio de uma chuva gigante que se abate sobre Patos e as águas derrubam algumas telhas da casa; e no fim do livro, quando o Autor põe, para referendar o onde e o quando concluiu o romance:

"Palácio", 5 de junho de 1925.
Patos - Parahyba do Norte.

As aspas são por conta de Allyrio. Acredito que para retirar a caracterização oligárquica, imperial. Era mesmo um modo carinhoso, familiar de como fora batizado ou de como o então jovem escritor, com 19 anos, o chamava (ele que nasceu em 1906).

Em Ranger de Dentes, existe a mesma menção no começo do livro, a chuva que derruba parte das telhas. Na verdade, o romance mais tardio é uma "esticada" do primeiro, Sol Criminoso. Mas isso é assunto pra outro lugar, assim espero...

Pra concluir, eu queria meio que abandonar toda essa verborragia daí de cima e dizer apenas que, como pesquisador da obra de Allyrio, sinto muito pela extinção daquela casa. Para ele, que em seus romances sempre apresentou personagens saudosos de sua terra natal, agora não tem mais lar onde habite sua memória. Tomara que encontre o tronco de uma oiticica onde possa dizer

A minha sombra há de ficar aqui!