quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Entre amigos (suicidas)

A história é que o poeta russo Siérguei Iessiênin, depois de tanto perseguir o Homem Negro, finalmente o encontrou no Hotel Inglaterra e lá, nas paredes de um quarto, escreveu com o próprio sangue dos pulsos cortados, os últimos versos. Foram dedicados ao seu companheiro Anatoli Marienhof, com quem já vivia há quatro anos. Mas antes de morrer de sangrar, conseguiu ainda pôr a corda no pescoço. Suas palavras...


Até logo, até logo, meu companheiro,
Guardo-te no meu peito e te asseguro:
O nosso afastamento passageiro
É sinal de um encontro no futuro.

Adeus, amigo, sem mãos nem palavras.
Não faças um sobrolho pensativo.
Se morrer, nesta vida, não é novo,
Tampouco há novidade em estar vivo.


Tradução Augusto de Campos

Seu amigo, Maiakovski, que também não era afeito à crítica literária do realismo socialista, atribuiu parte da angústia sofrida por Iessiênin aos caras da Massolit, aquela mesma da qual fazia parte o poeta Bezdômny. Sim, o mesmo que foi parar no hospício depois que encontrou Satanás num parque em Moscou. Não eram incomuns coisas desse tipo (digo, não encontros com Satanás), mas nos anos 1930, qualquer deslize fora das linhas do Partido, os artistas pagavam o preço. Por causa de Pôncio Pilatos, na verdade, de um romance que escreveu sobre o Procurador da Judéia, é que o Mestre também foi parar no hospício, onde lá conheceu o já aludido Bezdômny. Aliás, ambos foram pra lá por causa de Pilatos. A crítica não entendeu como um romance desses edificaria o socialismo e aí o pessoal da Massolit caiu matando.


Mas Maiakovski... ele também foi queimado pelo brilho do sol enganador. (Curioso é que no começo desse filme, as notícias que são lidas no jornal dão conta de fenômenos estranhos em Moscou e que batem claramente com os episódios ocorridos na visita do Demônio à cidade). Maiakovski (que também se suicidou) escreveu o seguinte, em resposta ao último poema do amigo:

A SIERGUÉI IESSIÊNIN

Você partiu,
                 como se diz,
                                    para o outro mundo.
Vácuo. . .
             Você sobe,
                             entremeado às estrelas.
Nem álcool,
                 nem moedas.
Sóbrio.
           Vôo sem fundo.
Não, lessiênin,
                      não posso
                                     fazer troça, -
Na boca
             uma lasca amarga
                                        não a mofa.
Olho -
          sangue nas mãos frouxas,
você sacode
                  o invólucro
                                 dos ossos.
Sim,
       se você tivesse
                             um patrono no "Posto"(1) -

ganharia
            um conteúdo
                               bem diverso:
todo dia
            uma quota
                           de cem versos,
longos
          e lerdos,
                       como Dorônin(2).
Remédio?
               Para mim,
                               despautério:
mais cedo ainda
                        você estaria nessa corda.
Melhor
           morrer de vodca
que de tédio !
Não revelam
                   as razões
                                 desse impulso
nem o nó,
               nem a navalha aberta.
Pare,
        basta !
                   Você perdeu o senso? -
Deixar
          que a cal
                        mortal
                                  Ihe cubra o rosto?
Você,
         com todo esse talento
para o impossível;
                          hábil
                                  como poucos.
Por quê?
             Para quê?
                            Perplexidade.
- É o vinho!
                 - a crítica esbraveja.
Tese:
         refratário à sociedade.
Corolário:
                muito vinho e cerveja.

Sim,
       se você trocasse
                                a boêmia
                                             pela classe;
A classe agiria em você,
                                    e lhe daria um norte.
E a classe
                por acaso
                               mata a sede com xarope?
Ela sabe beber -
                        nada tem de abstêmia.
Talvez,
          se houvesse tinta
                                    no "Inglaterra"(3);
você
        não cortaria
                          os pulsos.
Os plagiários felizes
                              pedem: bis!
Já todo
           um pelotão
                           em auto-execução.
Para que
              aumentar
                            o rol de suicidas?
Antes
         aumentar
                       a produção de tinta!
Agora
         para sempre
                           tua boca
                                        está cerrada.
Difícil
        e inútil
                  excogitar enigmas.
O povo,
            o inventa-línguas,
perdeu
          o canoro
                       contramestre de noitadas.

E levam
             versos velhos
                                 ao velório,
sucata
          de extintas exéquias.
Rimas gastas
                    empalam
                                  os despojos, -
é assim
            que se honra
                                um poeta?
-Não
        te ergueram ainda um monumento -
onde
        o som do bronze
                                 ou o grave granito? -
E já vão
            empilhando
                             no jazigo
dedicatórias e ex-votos:
                                   excremento.
Teu nome
               escorrido no muco,
teus versos,
                  Sóbinov(4) os babuja,
voz quérula
                 sob bétulas murchas -
"Nem palavra, amigo,
                               nem so-o-luço".
Ah,
      que eu saberia dar um fim
a esse
          Leonid Loengrim!(5)
Saltaria
            - escândalo estridente:
- Chega
            de tremores de voz!
Assobios
             nos ouvidos
                              dessa gente,
ao diabo
             com suas mães e avós!
Para que toda
                    essa corja explodisse
inflando
            os escuros
                            redingotes,
e Kógan(6)
               atropelado
                               fugisse,
espetando
                os transeuntes
                                      nos bigodes.
Por enquanto
                    há escória
                                    de sobra.
0 tempo é escasso -
                              mãos à obra.
Primeiro
             é preciso
                           transformar a vida,
para cantá-la -
                      em seguida.
Os tempos estão duros
                                   para o artista:
Mas,
        dizei-me,
                     anêmicos e anões,
os grandes,
                 onde,
                          em que ocasião,
escolheram
                  uma estrada
                                     batida?
General
            da força humana
                                     - Verbo -
marche!
            Que o tempo
                               cuspa balas
                                                 para trás,
e o vento
             no passado
                              só desfaça
um maço de cabelos.
Para o júbilo
                   o planeta
                                 está imaturo.
É preciso
              arrancar alegria
                                     ao futuro.
Nesta vida
                morrer não é difícil.
O difícil
           é a vida e seu ofício.


Tradução de Haroldo de Campos
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1. Alusão à revista Na Postu (De Sentinela), órgão da RAPP (Associação Russa dos Escritores Proletários), cujos colaboradores se mostravam muito zelosos em atacar os escritores que lhes pareciam transgredir a moral proletária.
2. Referências ao poeta soviético I.I. Dorônin (n. em 1900).
3. Hotel em que Iessiênin se suicidou.
4. O famoso cantor L.V. Sóbinov (1872-1934) foi um dos participantes
da homenagem à memória de Iessiênin, que teve lugar no Teatro de Arte de Moscou, em 18 de janeiro de 1926, quando interpretou uma canção de Tchaikóvski.
5. O papel de Loengrim, da ópera deste nome, de Wagner, constituiu um dos grandes êxitos da carreira artística de Leonid Sóbinov.
6. O crítico P.S. Kógan (1872-1932), representante da crítica mais dogmática, com quem Maiakóvski manteve freqüentes polêmicas.

sábado, 12 de outubro de 2013

Quando eu for grande...

Não quero me queixar de orelha em orelha
Ficar parado se quem me agrada se afasta
Negar o reflexo que deixo em meu espelho
Nem guardar rancor entre as sobrancelhas

Não quero guardar tantos segredos
Nem estar representado num quadro grotesco
Como os Montéquio e os Capuleto
Não quero em tua idade ficar obsoleto

Nem perder o vigor, nem dizer sem rigor
Que todo tempo passado sempre foi melhor
Nem chegar em minha casa transtornado e abatido
Não quero estar cansado de carregar a mim mesmo

E mesmo que esta verdade possa doer
Tenho que dizê-la, sem compaixão
Mas se ofendo, peço perdão
Quando eu for grande, não quero ser como o senhor

Não quero cometer teus mesmos erros
Nem acreditar que todos são enganadores
Não quero manejar teus mesmos valores
Nem que cada dia seja igual aos anteriores

Não quero não poder controlar meus humores
Nem carregar essa tristeza nos olhos
Molhados e vermelhos, murchos e frouxos
Não quero resignar-me a ser os meus despojos

Nem lançar com veemência a culpa aos outros
Daquilo que é minha incumbência e responsabilidade
Nem que me permita fazer em alguma idiotice
O que não pude fazer quando tive 23

E mesmo que esta verdade possa doer
Tenho que dizê-la, sem compaixão
Mas se ofendo, peço perdão
Quando eu for grande, não quero ser como o senhor

Não quero que nada mais me provoque prazer
Nem quando a dor me toque me evoque o passado
Nem olhar fotos velhas e me pôr a chorar
Ou que digam o nome de alguém e eu comece a tremer

Não quero levar essa vida maltratada
Com suspeitas de culpa e ilusão desfeita
Nem lançar pestes como se fosse Apolo
Nem que me machuque em algumas datas estar só

E mesmo que isto seja mal interpretado
Não quero que creiam que é apenas por criticar
E espero que seja somente uma declaração
Porque nem eu sei se quero que queiras ser como eu

E mesmo que esta verdade possa doer
tengo que dizê-la, sem compaixão
Mas se ofendo, peço perdão
Quando eu for grande, não quero ser como o senhor

Roberto Musso

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Y hay que quemar el cielo si es preciso por vivir...

Quando ele morreu, em 09 de outubro de 1967, nas florestas da Bolívia, Jean-Paul Sartre declarou: "Morreu o homem mais completo do século XX".

Seu nome e seu sobrenome são fuzil contra fuzil.

Hasta siempre...

















Norma Bengell

Esse blog vai terminar virando um necrológio. Mas enfim...

Hoje morreu aos 78 anos a atriz, diretora e teatróloga brasileira Norma Bengell. Abaixo, assistam a uma bela entrevista, dividida em duas partes, que ela concedeu a Antônio Abujamra no programa Provocações, da TV Cultura, e percebam alguns dos motivos de saudá-la nesse dia e sempre.

Entre tantos, ela atuou no filme O pagador de promessas (1962), com direção de Anselmo Duarte, baseado numa peça homônima de Dias Gomes. Entendam bem: poucos filmes brasileiros foram tão premiados como esse. A todos digo que é um dos melhores que já vi na vida. Todo brasileiro deveria ver, assim como digo o mesmo de Casa-Grande & Senzala na leitura. Aliás, um grupo de estudo que tentei montar tempos atrás sobre o livro de Gilberto Freyre começava por assistir a O pagador de promessas. Só rolou o filme, com a participação de um amigo. Normal. A esse tipo de coisa já estou acostumado. Pois bem. Filme e livro se aproximam e se afastam. Desde o sincretismo religioso popular aceito tacitamente pela Igreja "de porta para fora", mas que decide radicalizar ao impedir Zé do Burro (Leonardo Villar) de entrar no templo católico só porque ele fez a promessa pra Santa Bárbara, Iansã, de salvar seu burro, num terreiro de candomblé; até às disputas político-ideológicas travadas pelos outros em torno do simples desejo de cumprir a promessa do personagem naïf Zé, passando por um Brasil cuja tradição é carnavalizar tudo, para o bem ou para o mal (tomem isso no mais amplo espectro de bem e mal).

Norma Bengell fez parte, na vida e na arte, dessas realizações.

Sem mais por acrescentar.