quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Pinta-me anjinhos negros!

Ah, mundo! A Negra Juana,
a desgraça que lhe aconteceu!
morreu-lhe seu negrinho,
sim senhor.

- Ai, compadrezinho de alma,
tão gordinho que estava o negro!
Eu lhe enxergava as dobras,
eu não lhe enxergava o osso;
como eu me enfraquecia,
o media com meu corpo,
ele ia ficando fraco
como eu ia ficando.
Morreu-me meu negrinho;
Deus o terá chamado;
já o terá colocado
como anjinho do Céu.

- Desengane-se, comadre,
que não há anjinhos negros.
Pintor de santos de alcova,
pintor sem terra no peito,
que quando pintas teus santos
não te lembras de teu povo,
que quando pintas tuas Virgens
pintas anjinhos belos,
mas nunca te lembraste
de pintar um anjo negro.

Pintor nascido em minha terra,
com o pincel estrangeiro,
pintor que segues o caminho
de tantos pintores velhos,
ainda que a Virgem seja branca,
pinta-me anjinhos negros.

Não há pintor que pintara
anjinhos de meu povo.
Eu quero anjinhos brancos
com anjinhos morenos.
Anjo de boa família
não basta para meu céu.

Se resta um pintor de santos,
se resta um pintor de céus,
que faça o céu em minha terra,
com os tons de meu povo,
com seu anjo de pérola fina,
com seu anjo de cabelo curto,
com seus anjos ruivos,
com seus anjos morenos,
com seus anjinhos brancos,
com seus anjinhos índios,
com seus anjinhos negros,
que vão comendo manga
pelas periferias do céu.

Se ao céu vou algum dia,
tenho que te encontrar no céu,
anjinhozinho do diabo,
serafim boliçoso.

Se sabes pintar tua terra,
assim hás de pintar teu céu,
com seu sol que tosta brancos,
com seu sol que sua negros,
porque para isso tens
calorzinho e dos bons.
Ainda que a Virgem seja branca,
pinta-me anjinhos negros.

Não há uma igreja de estrada,
não há uma igreja de povoado,
onde deixaram entrar
no quadro anjinhos negros.
E então, aonde vão,
anjinhos de meu povoado,
zamurinhos de Guaribe,
tordinhos de Barlovento?

Pintor que pintas tua terra,
se queres pintar teu céu,
quando pintas anjinhos
lembra-te de teu povo
e ao lado do anjo ruivo
e junto ao anjo trigueiro,
ainda que a Virgem seja branca,
pinta-me anjinhos negros.



Andrés Eloy Blanco (tradução livre, com ajuda de Cristina Poblete)

terça-feira, 12 de novembro de 2013

se não puder escrever eu vou morrer...

Hoje, 22 de dezembro, fomos levados à força à praça de armas do regimento Semeónovski. Ali foi lida para todos nós a sentença de morte, deram-nos a cruz para beijar... e prepararam nossos trajes para a morte (camisões brancos). Em seguida, prenderam três aos postes para a execução da sentença. Chamavam de três em três, portanto eu estava ma segunda fila e não me restava mais de um minuto de vida. Eu me lembrei de ti, meu irmão, de todos nós três; no último minuto tu, só tu estavas em minha mente, e só então fiquei sabendo como te amo, meu irmão querido! Tive tempo de abraçar também Pleschêiev, Dúrov, que estavam ao lado, e despedir-me deles. Por fim bateu o sinal, fizeram voltar os que estavam presos aos postes, e leram para nós que sua majestade imperial nos dava a vida. Depois as verdadeiras sentenças tiveram prosseguimento...

Irmão! Não me abati e nem caí em desânimo. A vida é vida em qualquer lugar, a vida em nós mesmos e não fora. Ao meu lado haverá pessoas, e ser homem entre elas e assim permanecer para sempre, quaisquer que sejam os infortúnios, sem perder a coragem nem cair em desânimo - eis em que consiste a vida, em que consiste o seu objetivo. Eu estava consciente disso. Essa idéia arraigou-se em mim. Sim! É verdade! Aquela cabeça que criava, que vivia a vida suprema da arte, que era consciente e habituara-se às demandas superiores do espírito, aquela cabeça já havia sido cortada do meu pescoço. Restaram a memória e as imagens criadas e ainda não concretizadas por mim. Elas haverão de me ulcerar, é verdade! Mas em mim restaram o coração e aqueles sangue e carne que podem amar, e sofrer, e compadecer-se, e lembrar-se, e isso é vida apesar de tudo. On voit le soleil [Há sol, em francês). Bem, irmão, adeus! Não te aflijas por mim!... Nunca na vida reservas tão abundantes e sadias de vida espiritual haviam fervido em miom como neste momento. Mas se o corpo vai agüentar eu não sei...

Meu Deus! Quantas imagens, sobreviventes, criadas por mim irão morrer, irão apagar-se em minha cabeça ou derramar-se em meu sangue como veneno! É, se não puder escrever eu vou morrer... Em minha alma não há fel nem raiva, gostaria de amar muito e abraçar ao menos alguma das pessoas de antes neste momento. Isso é um deleite, eu o experimentei hoje ao me despedir dos meus entes queridos perante a morte... Quando olho para o passado e compreendo quanto tempo perdi com equívocos, com erros, na ociosidade, na inabilidade para viver, como deixei de apreciá-lo, quantas vezes pequei contra meu coração e minha alma, meu coração se põe a sangrar. A vida é uma dádiva, a vida é uma felicidade, cada minuto poderia ser uma eternidade de felicidade.

Dostoiévski, Fiódor. O Idiota. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2002 (p. 12-14).

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Dostoiévski foi condenado à morte acusado de conspiração contra o tsar. Esta carta foi escrita ao irmão Mikhail ainda no mesmo dia da execução. Como se soube depois, era tudo uma armação para que se tivesse a impressão da bondade do imperador. Dostoiévski terminou cumprindo uma pena de quatro anos de trabalhos forçados na Sibéria (donde resultou no seu romance A casa dos mortos  - ou em traduções mais antigas, Recordações da casa dos mortos). Quando escreveu  O Idiota, já sabia do tal embuste. E este tom delirante da carta ao irmão está nas falas do próprio príncipe Míchkin quando palestra sobre a condenação, ele, que disse ter assistido a uma execução na França e conta à generala Lisavieta Prokófievna e suas filhas como um homem, que tendo vivido toda a agonia de uma sentença de morte, prometeu no momento final que se tivesse mais alguns instantes de vida, se tivesse outra vida, se a vida não acabasse depois daquilo, se a vida recomeçasse, viveria tudo de novo e com mais intensidade; e no entanto, teve a pena comutada, ficou livre e não cumpriu com sua promessa. Vários de seus personagens falam nesse minuto supremo que justificaria toda uma existência. A verdade é que depois daquele dia na praça, diante do pelotão de fuzilamento, Dostoiévski realmente nunca mais foi o mesmo.

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Romance e revolta



(…)

Afinal, escrever ou ler um romance são ações insólitas. Construir uma história através de um novo arranjo de fatos verdadeiros não tem nada de inevitável nem de necessário. Se até mesmo a explicação banal – pelo prazer do criador e do leitor – fosse verdadeira, deveríamos nos perguntar qual necessidade faz a maior parte dos homens sentir prazer e se interessar por histórias inventadas. A crítica revolucionária condena o romance puro como a evasão de uma mente ociosa. Por sua vez, a linguagem comum chama de “romanescas” o relato mentiroso do jornalista inábil. Há alguns lustros era comum dizer, inaceitavelmente, que as moças eram “romances”. Entendia-se com isso que essas criaturas ideais não levavam em conta a realidade da existência. De modo geral, sempre se considerou que o romanesco se separava da vida, e que a embelezava ao mesmo tempo que a traía. A maneira mais simples e banal de encarar a expressão romanesca consiste portanto em ver nisso um exercício de evasão. O senso-comum une-se à crítica revolucionária.

Mas do que se procura fugir pelo romance? De uma realidade julgada por demais esmagadora? As pessoas felizes também lêem romances, e é um fato constatado que o extremo sofrimento tira o gosto pela leitura. Por outro lado, o universo romanesco tem certamente menos peso e presença do que este outro universo, onde seres de carne e osso nos assediam sem parar. Por que mistério, entretanto, Adolphe nos parece um personagem bem mais familiar que Benjamin Constant, e o conde Mosca que nossos moralistas profissionais? Balzac concluiu um dia uma longa conversa sobre a política e o destino do mundo, dizendo: “E, agora, falemos de coisas sérias”, referindo-se a seus romances. O gosto pela evasão não basta para explicar a gravidade indiscutível do mundo romanesco, nossa obstinação em levar realmente a sério os incontáveis mitos que o gênio romanesco nos propõe há dois séculos. A atividade romanesca supõe certamente uma espécie de recusa do real, mas esta recusa não é uma simples fuga. Deve-se ver nisso o movimento de retirada da bela alma que, segundo Hegel, cria para si própria, em sua ilusão, um mundo fictício em que só a moral reina? O romance edificante, contudo, acha-se bastante longe da grande literatura; e o melhor dos romances água-com-açúcar, Paulo e Virgínia, obra na verdade angustiante, nada oferece a título de consolo.

A contradição é a seguinte: o homem recusa o mundo como ele é, sem desejar fugir dele. Na verdade, os homens agarram-se ao mundo e, em sua imensa maioria, não querem deixá-lo. Longe de desejar realmente esquecê-lo, eles sofrem, ao contrário, por não possuí-lo suficientemente, estranhos cidadãos do mundo, exilados em sua própria pátria. A não ser nos instantes fulgurantes da plenitude, toda realidade é para eles incompleta. Seus atos lhes escapam sob a forma de outros atos, voltam para julgá-los sob aspectos inesperados e correm, como a água de Tântalo, para uma embocadura ainda desconhecida. Conhecer a embocadura, dominar o curso do rio, entender enfim a vida como destino, eis sua verdadeira nostalgia, no mais profundo de sua pátria. Mas essa visão que, pelo menos no conhecimento, os reconciliaria enfim consigo mesmos, só pode aparecer, se é que aparece, no momento fugaz da morte, em que tudo se consuma. Para existir no mundo, por uma vez, é preciso nunca mais existir.

Nasce aqui essa desgraçada inveja que tantos homens sentem da vida dos outros. Olhadas de fora, emprestam-se a essas existências uma coerência e uma unidade que elas estão longe de ter, mas que parecem evidentes ao observador. Ele só vê o contorno dessas vidas, sem tomar consciência dos detalhes que as corroem. Então, dotamos de arte tais existências. De maneira elementar, nós as romanceamos. Neste sentido, cada qual procura fazer de sua vida uma obra de arte. Desejamos que o amor dure e sabemos que ele não dura; se até mesmo, por milagre, ele tivesse que durar toda uma vida, estaria ainda incompleto. Talvez, nesta insaciável necessidade de durar, compreenderíamos melhor o sofrimento terrestre, se o soubéssemos eterno. Parece que as grandes almas, às vezes, ficam menos apavoradas com o sofrimento do que com o fato de ele não durar. Na falta de uma felicidade inesgotável, um longo sofrimento constituiria ao menos um destino. Mas não é assim, e nossas piores torturas um dia chegarão ao fim. Certa manhã, após tanto desespero, uma irreprimível vontade de viver vai nos anunciar que tudo acabou e que o sofrimento não tem mais sentido que a felicidade.

O desejo de posse não é mais que uma outra forma do desejo de durar; é ele que constitui o delírio impotente do amor. Nenhum ser, nem mesmo o mais amado, e que nos ama com maior paixão, jamais fica em nosso poder. Na terra cruel em que os amantes às vezes morrem separados e nascem sempre divididos, a posse total de um ser, a comunhão absoluta por toda uma vida é uma exigência impossível. O desejo de posse é a tal ponto insaciável que ele pode sobreviver ao próprio amor. Amar, então, é esterilizar a pessoa amada. O vergonhoso sofrimento do amante, a partir de agora solitário, não é tanto de não ser mais amado, mas de saber que o outro pode e deve amar ainda. Em última instância, todo homem devorado pelo desejo alucinado de durar e de possuir deseja aos seres que amou a esterilidade ou a morte. Esta é a verdadeira revolta. Aqueles que não exigiram, pelo menos uma vez, a virgindade absoluta dos seres e do mundo, que não tremeram de nostalgia e de impotência diante de sua impossibilidade, aqueles que, então, perpetuamente remetidos a sua nostalgia pelo absoluto, não se destruíram ao tentar amar pela metade, não podem compreender a realidade da revolta e seu furor de destruição. Mas os seres escapam sempre e nós lhes escapamos também; eles não têm contornos bem-delineados. A vida, deste ponto de vista, é sem estilo. Ela não é senão um movimento em busca de sua forma sem nunca encontrá-la. O homem, assim dilacerado, persegue em vão essa forma que lhe daria os limites entre os quais ele seria soberano. Que uma única coisa viva tenha sua forma neste mundo, ele estará reconciliado!

Não há, enfim, quem quer que, a partir de um nível elementar de consciência, não se esgote buscando as fórmulas ou as atitudes que dariam à sua existência a unidade que lhes falta. Parecer ou fazer, o dândi ou o revolucionário exigem a unidade, para existir, e para existir neste mundo. Como nesses patéticos e miseráveis relacionamentos que sobrevivem às vezes por muito tempo, porque um dos parceiros espera encontrar a palavra, o gesto ou a situação que farão de sua aventura uma história terminada, e formulada, no tom certo, cada um cria para si e se propõe a última palavra. Não basta viver; é preciso um destino, e sem esperar pela morte. É justo portanto dizer que o homem tem a idéia de um mundo melhor do que este. Mas melhor não quer dizer diferente, melhor quer dizer unificado. Esta paixão que ergue o coração acima do mundo disperso, do qual no entanto não pode se desprender, é a paixão pela unidade. Ela não desemboca numa evasão medíocre, mas na reivindicação mais obstinada. Religião ou crime, todo esforço humano obedece, finalmente, a esse desejo irracional e pretende dar à vida a forma que ela não tem. O mesmo movimento, que pode levar à adoração do céu ou à destruição do homem, conduz da mesma forma à criação romanesca, que dele recebe, então, sua seriedade.

Que é o romance, com efeito, senão esse universo em que a ação encontra sua forma, em que as palavras finais são pronunciadas, os seres entregues aos seres, em que a vida passa a ter a cara do destino?[1] O mundo romanesco não é mais que a correção deste nosso mundo, segundo o destino profundo do homem. Pois trata-se efetivamente do mesmo mundo. O sofrimento é o mesmo, a mentira e o amor, os mesmos. Os heróis falam a nossa linguagem, têm as nossas fraquezas e as nossas forças. Seu universo não é mais belo nem mais edificante que o nosso. Mas eles, pelo menos, perseguem até o fim o seu destino, e nunca houve heróis tão perturbadores quanto os que chegaram aos extremos de sua paixão, Kirilov e Stavroguin, Mme Graslin, Julien Sorel ou o príncipe de Clèves. É aqui que perdemos sua medida, pois eles terminam aquilo que nós nunca consumamos.

(…)

Camus, Albert. O homem revoltado. Trad. Valerie Rumjanek. 6ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2005. P. 298-302.



[1] Ainda quando o romance só exprima a nostalgia, o desespero, o inacabado, não deixa de criar, a forma e a salvação. Dar nome ao desespero é superá-lo. A literatura desesperada é uma contradição em termos.

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

As Sonatas a Kreutzer

- Eles tocaram a Sonata a Kreutzer, de Beethoven. O senhor conhece o primeiro presto? Conhece?! – exclamou ele. – Uh! Como é terrível esta sonata! Precisamente essa parte. E a música em geral é uma coisa terrível. O que é ela? Não compreendo. O que é a música? O que ela faz? E por que ela faz aquilo que faz? Dizem que a música atua de maneira a elevar a alma: é absurdo, é mentira! Ela atua, e terrivelmente, digo-o por experiência própria, mas não de maneira a elevar a alma. Ela não eleva nem rebaixa a alma, ela a excita. Como dizer-lhe? A música obriga-me a esquecer de mim mesmo, da minha verdadeira condição, ela me transporta a uma outra, que não é a minha: sob o influxo da música, tenho a impressão de sentir o que, na realidade não sinto, de compreender o que, a bem dizer, não compreendo, de poder, o que de fato, não posso. Explico-o pelo fato de que a música atua como o bocejo, como o riso: não tenho sono, mas bocejo vendo alguém bocejar, não há motivo para que eu ria, mas rio, depois de ouvir um outro rir.

A música transporta-me diretamente àquele estado de alma em que se encontrava quem a escreveu. O meu espírito funde-se com o dele, e com ele me transporto de um estado a outro, mas não sei porque o faço. Quem escreveu a música, por exemplo, Beethoven com a sua Sonata a Kreutzer, sabia porque se encontrava em semelhante estado; este levou-o a praticar determinados atos, e por isso tal condição tinha para ele um sentido, mas para mim ela não tem nenhum. E por isso a música apenas excita, ela não conclui. Bem, quando se toca marcha belicosa, os soldados marcham aos seus sons, a música atingiu-os; tocaram uma dança, eu dancei – a música também me atingiu; bem, cantaram missa, eu comunguei, esta música também me atingiu, mas de outro modo, tem-se apenas excitação, e não existe aquilo que se deve fazer nesse estado de excitação. E é por isso que, às vezes, a música atua de modo tão terrível, tão assustador. Na China, a música é um assunto de Estado. E assim deve ser. Pode-se acaso permitir que todo aquele que o queira hipnotize outra pessoa, ou muitas outras, e depois faça com elas o que quiser? E sobretudo, que esse hipnotizador seja o primeiro homem que apareça, um imoral?

E esse poder terrível está nas mãos de qualquer um. Por exemplo, esta Sonata a Kreutzer, o primeiro presto. Pode-se porventura tocá-lo numa sala de visitas, em meio a senhoras decotadas? Tocá-lo, depois bater palmas, em seguida tomar sorvete e falar do último mexerico? Essas peças só podem ser tocadas em determinadas circunstâncias importantes, significativas, nas ocasiões em que se requer a execução de certas ações importantes, correspondentes a essa música. Tocá-la e executar aquilo para o que essa música dispôs. Pois um despertar de energia, de um sentimento que não se manifesta em nada, e que não corresponde ao lugar nem ao tempo, não pode deixar de ter uma ação demolidora. Sobre mim, pelo menos, essa peça atuou terrivelmente; abriram-se para mim como que sentimentos novos, parecia-me, novas possibilidades, que eu até então não conhecera. Algo no íntimo parecia dizer-me: tudo tem que ser absolutamente diverso da maneira pela qual eu antes pensava e vivia, tem que ser como isto aqui. Não podia dar conta a mim mesmo do que era o novo que eu conhecera, mas a consciência dessa nova condição dava-me grande alegria. As mesmas pessoas, inclusive minha mulher e ele, já apareciam sob uma luz completamente diversa.

Depois deste presto, eles acabaram de tocar o andante, belo, mas comum e nada novo, com variações vulgares e um final completamente fraco. E tocaram ainda, a pedido dos convidados, a Elegia de Ernst e diferentes pecinhas. Tudo isto era bom, mas não causou sequer 1% da impressão provocada pelo presto. E tudo isso tinha como fundo a impressão por ele causada. No decorrer de todo o serão, eu sentia leveza, alegria. Nunca vira minha mulher do jeito como ela parecia essa noite. Esses olhos brilhantes, essa severidade, o olhar significativo enquanto tocava, e essa completa diluição, e certo sorriso débil, de lástima, feliz, depois que eles acabaram de tocar. Eu via tudo isso, mas não lhe atribuía nenhum outro sentido, além de que ela experimentava o mesmo que eu, que também a ela pareciam ter-se revelado sentimentos novos, ainda desconhecidos. O serão terminou com êxito, e todos se foram.

Tolstói, Lev. A Sonata a Kreutzer. Trad. Boris Schnaiderman. São Paulo: Editora 34, 2007. P. 82-84.

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Ou seja, segundo o personagem Pózdnichev, sua esposa e o amante, ele ao violino e ela ao piano, fizeram sexo diante de todos os presentes. Assim como esses dois abaixo farão diante dos seus olhos...

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Yer Blues, John... Yer Blues...

Essa postagem tem e não tem algo relacionado diretamente à anterior. Foi por não perder a viagem, digamos.

A interpretação de Sympathy for the Devil que eu liguei no texto, ao me referir ao romance de Bulgákov, é, na minha opinião, a melhor que os Stones já fizeram. E consta realmente que quando Mick Jagger leu O Mestre e Margarida veio a ideia da música.

A tal versão está dentro de uma apresentação organizada pela banda em 1968 que recebeu o nome de The Rock and Roll Circus e era isso mesmo, uma misturada das duas coisas. Entre os convidados estavam Jethro Tull - tendo como integrante ninguém menos que Tony Iommi - e The Who - Keith Moon, como sempre, terminando uma música com metade da bateria... aliás, há quem diga que a participação deles ofuscou os próprios Rolling Stones.

Mas além disso, houve uma reunião histórica, dessas que só acontecem uma vez na vida. Nesse mesmo ano de 1968 era lançado o The Beatles, mais conhecido como White Album. No volume dois, a segunda faixa se chama Yer Blues. Pois bem. Ela foi tocada nesse show e, para tanto, houve a reunião de Mitch Michell, baterista que tocava com Jimi Hendrix, Keith Richards, Eric Clapton e John Lennon. Eles eram The Dirty Mac.


John Lennon, Eric Clapton.. Yer Blues por tigwenn

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Entre amigos (suicidas)

A história é que o poeta russo Siérguei Iessiênin, depois de tanto perseguir o Homem Negro, finalmente o encontrou no Hotel Inglaterra e lá, nas paredes de um quarto, escreveu com o próprio sangue dos pulsos cortados, os últimos versos. Foram dedicados ao seu companheiro Anatoli Marienhof, com quem já vivia há quatro anos. Mas antes de morrer de sangrar, conseguiu ainda pôr a corda no pescoço. Suas palavras...


Até logo, até logo, meu companheiro,
Guardo-te no meu peito e te asseguro:
O nosso afastamento passageiro
É sinal de um encontro no futuro.

Adeus, amigo, sem mãos nem palavras.
Não faças um sobrolho pensativo.
Se morrer, nesta vida, não é novo,
Tampouco há novidade em estar vivo.


Tradução Augusto de Campos

Seu amigo, Maiakovski, que também não era afeito à crítica literária do realismo socialista, atribuiu parte da angústia sofrida por Iessiênin aos caras da Massolit, aquela mesma da qual fazia parte o poeta Bezdômny. Sim, o mesmo que foi parar no hospício depois que encontrou Satanás num parque em Moscou. Não eram incomuns coisas desse tipo (digo, não encontros com Satanás), mas nos anos 1930, qualquer deslize fora das linhas do Partido, os artistas pagavam o preço. Por causa de Pôncio Pilatos, na verdade, de um romance que escreveu sobre o Procurador da Judéia, é que o Mestre também foi parar no hospício, onde lá conheceu o já aludido Bezdômny. Aliás, ambos foram pra lá por causa de Pilatos. A crítica não entendeu como um romance desses edificaria o socialismo e aí o pessoal da Massolit caiu matando.


Mas Maiakovski... ele também foi queimado pelo brilho do sol enganador. (Curioso é que no começo desse filme, as notícias que são lidas no jornal dão conta de fenômenos estranhos em Moscou e que batem claramente com os episódios ocorridos na visita do Demônio à cidade). Maiakovski (que também se suicidou) escreveu o seguinte, em resposta ao último poema do amigo:

A SIERGUÉI IESSIÊNIN

Você partiu,
                 como se diz,
                                    para o outro mundo.
Vácuo. . .
             Você sobe,
                             entremeado às estrelas.
Nem álcool,
                 nem moedas.
Sóbrio.
           Vôo sem fundo.
Não, lessiênin,
                      não posso
                                     fazer troça, -
Na boca
             uma lasca amarga
                                        não a mofa.
Olho -
          sangue nas mãos frouxas,
você sacode
                  o invólucro
                                 dos ossos.
Sim,
       se você tivesse
                             um patrono no "Posto"(1) -

ganharia
            um conteúdo
                               bem diverso:
todo dia
            uma quota
                           de cem versos,
longos
          e lerdos,
                       como Dorônin(2).
Remédio?
               Para mim,
                               despautério:
mais cedo ainda
                        você estaria nessa corda.
Melhor
           morrer de vodca
que de tédio !
Não revelam
                   as razões
                                 desse impulso
nem o nó,
               nem a navalha aberta.
Pare,
        basta !
                   Você perdeu o senso? -
Deixar
          que a cal
                        mortal
                                  Ihe cubra o rosto?
Você,
         com todo esse talento
para o impossível;
                          hábil
                                  como poucos.
Por quê?
             Para quê?
                            Perplexidade.
- É o vinho!
                 - a crítica esbraveja.
Tese:
         refratário à sociedade.
Corolário:
                muito vinho e cerveja.

Sim,
       se você trocasse
                                a boêmia
                                             pela classe;
A classe agiria em você,
                                    e lhe daria um norte.
E a classe
                por acaso
                               mata a sede com xarope?
Ela sabe beber -
                        nada tem de abstêmia.
Talvez,
          se houvesse tinta
                                    no "Inglaterra"(3);
você
        não cortaria
                          os pulsos.
Os plagiários felizes
                              pedem: bis!
Já todo
           um pelotão
                           em auto-execução.
Para que
              aumentar
                            o rol de suicidas?
Antes
         aumentar
                       a produção de tinta!
Agora
         para sempre
                           tua boca
                                        está cerrada.
Difícil
        e inútil
                  excogitar enigmas.
O povo,
            o inventa-línguas,
perdeu
          o canoro
                       contramestre de noitadas.

E levam
             versos velhos
                                 ao velório,
sucata
          de extintas exéquias.
Rimas gastas
                    empalam
                                  os despojos, -
é assim
            que se honra
                                um poeta?
-Não
        te ergueram ainda um monumento -
onde
        o som do bronze
                                 ou o grave granito? -
E já vão
            empilhando
                             no jazigo
dedicatórias e ex-votos:
                                   excremento.
Teu nome
               escorrido no muco,
teus versos,
                  Sóbinov(4) os babuja,
voz quérula
                 sob bétulas murchas -
"Nem palavra, amigo,
                               nem so-o-luço".
Ah,
      que eu saberia dar um fim
a esse
          Leonid Loengrim!(5)
Saltaria
            - escândalo estridente:
- Chega
            de tremores de voz!
Assobios
             nos ouvidos
                              dessa gente,
ao diabo
             com suas mães e avós!
Para que toda
                    essa corja explodisse
inflando
            os escuros
                            redingotes,
e Kógan(6)
               atropelado
                               fugisse,
espetando
                os transeuntes
                                      nos bigodes.
Por enquanto
                    há escória
                                    de sobra.
0 tempo é escasso -
                              mãos à obra.
Primeiro
             é preciso
                           transformar a vida,
para cantá-la -
                      em seguida.
Os tempos estão duros
                                   para o artista:
Mas,
        dizei-me,
                     anêmicos e anões,
os grandes,
                 onde,
                          em que ocasião,
escolheram
                  uma estrada
                                     batida?
General
            da força humana
                                     - Verbo -
marche!
            Que o tempo
                               cuspa balas
                                                 para trás,
e o vento
             no passado
                              só desfaça
um maço de cabelos.
Para o júbilo
                   o planeta
                                 está imaturo.
É preciso
              arrancar alegria
                                     ao futuro.
Nesta vida
                morrer não é difícil.
O difícil
           é a vida e seu ofício.


Tradução de Haroldo de Campos
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1. Alusão à revista Na Postu (De Sentinela), órgão da RAPP (Associação Russa dos Escritores Proletários), cujos colaboradores se mostravam muito zelosos em atacar os escritores que lhes pareciam transgredir a moral proletária.
2. Referências ao poeta soviético I.I. Dorônin (n. em 1900).
3. Hotel em que Iessiênin se suicidou.
4. O famoso cantor L.V. Sóbinov (1872-1934) foi um dos participantes
da homenagem à memória de Iessiênin, que teve lugar no Teatro de Arte de Moscou, em 18 de janeiro de 1926, quando interpretou uma canção de Tchaikóvski.
5. O papel de Loengrim, da ópera deste nome, de Wagner, constituiu um dos grandes êxitos da carreira artística de Leonid Sóbinov.
6. O crítico P.S. Kógan (1872-1932), representante da crítica mais dogmática, com quem Maiakóvski manteve freqüentes polêmicas.

sábado, 12 de outubro de 2013

Quando eu for grande...

Não quero me queixar de orelha em orelha
Ficar parado se quem me agrada se afasta
Negar o reflexo que deixo em meu espelho
Nem guardar rancor entre as sobrancelhas

Não quero guardar tantos segredos
Nem estar representado num quadro grotesco
Como os Montéquio e os Capuleto
Não quero em tua idade ficar obsoleto

Nem perder o vigor, nem dizer sem rigor
Que todo tempo passado sempre foi melhor
Nem chegar em minha casa transtornado e abatido
Não quero estar cansado de carregar a mim mesmo

E mesmo que esta verdade possa doer
Tenho que dizê-la, sem compaixão
Mas se ofendo, peço perdão
Quando eu for grande, não quero ser como o senhor

Não quero cometer teus mesmos erros
Nem acreditar que todos são enganadores
Não quero manejar teus mesmos valores
Nem que cada dia seja igual aos anteriores

Não quero não poder controlar meus humores
Nem carregar essa tristeza nos olhos
Molhados e vermelhos, murchos e frouxos
Não quero resignar-me a ser os meus despojos

Nem lançar com veemência a culpa aos outros
Daquilo que é minha incumbência e responsabilidade
Nem que me permita fazer em alguma idiotice
O que não pude fazer quando tive 23

E mesmo que esta verdade possa doer
Tenho que dizê-la, sem compaixão
Mas se ofendo, peço perdão
Quando eu for grande, não quero ser como o senhor

Não quero que nada mais me provoque prazer
Nem quando a dor me toque me evoque o passado
Nem olhar fotos velhas e me pôr a chorar
Ou que digam o nome de alguém e eu comece a tremer

Não quero levar essa vida maltratada
Com suspeitas de culpa e ilusão desfeita
Nem lançar pestes como se fosse Apolo
Nem que me machuque em algumas datas estar só

E mesmo que isto seja mal interpretado
Não quero que creiam que é apenas por criticar
E espero que seja somente uma declaração
Porque nem eu sei se quero que queiras ser como eu

E mesmo que esta verdade possa doer
tengo que dizê-la, sem compaixão
Mas se ofendo, peço perdão
Quando eu for grande, não quero ser como o senhor

Roberto Musso

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Y hay que quemar el cielo si es preciso por vivir...

Quando ele morreu, em 09 de outubro de 1967, nas florestas da Bolívia, Jean-Paul Sartre declarou: "Morreu o homem mais completo do século XX".

Seu nome e seu sobrenome são fuzil contra fuzil.

Hasta siempre...

















Norma Bengell

Esse blog vai terminar virando um necrológio. Mas enfim...

Hoje morreu aos 78 anos a atriz, diretora e teatróloga brasileira Norma Bengell. Abaixo, assistam a uma bela entrevista, dividida em duas partes, que ela concedeu a Antônio Abujamra no programa Provocações, da TV Cultura, e percebam alguns dos motivos de saudá-la nesse dia e sempre.

Entre tantos, ela atuou no filme O pagador de promessas (1962), com direção de Anselmo Duarte, baseado numa peça homônima de Dias Gomes. Entendam bem: poucos filmes brasileiros foram tão premiados como esse. A todos digo que é um dos melhores que já vi na vida. Todo brasileiro deveria ver, assim como digo o mesmo de Casa-Grande & Senzala na leitura. Aliás, um grupo de estudo que tentei montar tempos atrás sobre o livro de Gilberto Freyre começava por assistir a O pagador de promessas. Só rolou o filme, com a participação de um amigo. Normal. A esse tipo de coisa já estou acostumado. Pois bem. Filme e livro se aproximam e se afastam. Desde o sincretismo religioso popular aceito tacitamente pela Igreja "de porta para fora", mas que decide radicalizar ao impedir Zé do Burro (Leonardo Villar) de entrar no templo católico só porque ele fez a promessa pra Santa Bárbara, Iansã, de salvar seu burro, num terreiro de candomblé; até às disputas político-ideológicas travadas pelos outros em torno do simples desejo de cumprir a promessa do personagem naïf Zé, passando por um Brasil cuja tradição é carnavalizar tudo, para o bem ou para o mal (tomem isso no mais amplo espectro de bem e mal).

Norma Bengell fez parte, na vida e na arte, dessas realizações.

Sem mais por acrescentar.



terça-feira, 24 de setembro de 2013

12 depois do 11

Em postagem anterior, já dissemos que exatamente doze dias após a morte de Allende e da queda do Chile para o fascismo, morria o poeta senador. Morreu de tristeza. Ontem, 23 de setembro, portanto há quarenta anos, morria Pablo Neruda.

Aqui leremos o seu Testamento, inscrito em seu Canto general muitos anos antes de sua morte. Aquele deixado para os mineiros do salitre, do carvão e do cobre chilenos, mas que se estende aos mineiros bolivianos de Potosí, aos milhares de nativos e negros escravos que morreram nos socavones, que cavaram a terra e deixaram em carne viva as veias de toda a América Latina. O poeta senador jamais poderia esquecer do apelo, daquele encontro com os homens do nitrato, quando um deles emergiu com um rosto inumano de uma dessas feridas e lhe rogou


Passemos então à leitura da antevista última vontade do poeta...

Testamento 

I

Deixo aos sindicatos
do cobre, do carvão e do salitre
minha casa junto ao mar de Isla Negra.
Quero que ali repousem os maltratados
filhos de minha pátria, saqueada por machados e traidores,
desbaratada em seu sagrado sangue,
consumida em vulcânicos farrapos.

Quero ao límpido amor que recorra
ao meu domínio, descansem os cansados,
se sentem à minha mesa os escuros,
durmam sobre minha cama os feridos.

Irmão, esta é minha casa, entra no mundo
da flor marinha e pedra constelada
que levantei lutando em minha pobreza.
Aqui nasceu o som em minha janela
como em um crescente caracol
e logo estabeleceu suas latitudes
em minha desordenada geologia.

Tu vens de abrasados corredores,
de túneis mordidos pelo ódio,
pelo salto sulfúrico do vento:
aqui tens a paz que te destino,
água e espaço em meu oceano.

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Para que nunca mais no Chile!

Para mi amiga Cristina Poblete


Não foi num 11 de setembro de 1973, aquele em que Santiago do Chile acordou assustado com o terror dos tanques e soldados na rua, dos caças da força aérea dando rasantes e fazendo chover bombas sobre o palácio de La Moneda?

Não foi essa uma tática de Estado Bandido (rough state), os EUA, que desde o primeiro momento das eleições livres e democráticas do presidente socialista Salvador Allende, ordenou que a CIA sabotasse a qualquer custo seu governo?

Aquele foi o primeiro 11 de setembro. E é para ele que agora escrevo...

Para o 11 de setembro que durou 17 anos e arrastou consigo mais de 30 mil mortos e desaparecidos. Que fez um país amargar a experiência neoliberal dos chicago boys e de Lady Tatcher como se fosse um laboratório onde o povo eram os ratos.

Que torturou e assassinou covardemente.

Que usou o Estadio Nacional como campo de concentração. Que neste mesmo estádio foi mantido preso Víctor Jara, músico, poeta e diretor de teatro e sem sombra de dúvida um dos maiores ícones da cultura chilena. Víctor foi assassinado cinco dias depois do golpe.

Escrevo para aquele que disse que la guitarra tiene sentido y razón. Para o Víctor que aprendeu com Maiakóvski que a poesia pode ser um arsenal de guerra. Para o herdeiro direto, junto com Ángel e Isabel Parra, do legado de Violeta Parra. Um cantor que foi de importância decisiva na campanha que elegeu Allende, fazendo inúmeras apresentações musicais e teatrais. Que foi empossado embaixador cultural pelo presidente.

Pongo en tus manos abiertas, gravado junto com Quilapayún, 1969


Para os longínquos povoados que portavam a estrela da esperança

Para os camponeses que entoaram uma oração clamando a um Deus bélico e justiceiro para que lhes abençoe os fuzis ao combaterem quem os oprime.


Para Miguel Enríquez, para que ele possa caminhar novamente pelas ruas de Santiago.

Para a niñita com o peito florescido de cores de amor.

Também para os padres que foram jogados em valas-comuns.

Para o poeta senador que morreu de tristeza, ou envenenado, doze dias depois do 11 de setembro. Escrevo para os livros do poeta que foram saqueados de sua casa em Valparaíso e queimados.

Escrevo para o presidente que tinha em suas mãos tão somente um AK-47 e um mandato quando se trancou no Palácio de La Moneda naquela manhã, há exatos 40 anos. Ali se entrincheirou com sua guarda pessoal decidido a resistir e enquanto os aviões e os tanques atiravam contra o prédio decidiu falar ao povo chileno pela última vez através de uma estação de rádio que funcionava ali mesmo. Não tinha ele mais, naquele instante, a mesma liberdade de dizer o que disse numa conferência na Universidade de Guadalajara, como se estivesse falando a uma classe de profissionais brasileiros de hoje:

"...há muitos médicos que não compreendem que a saúde se compra e que há milhares e milhares e milhares de homens e mulheres na América Latina que não podem comprar a saúde. (...) Para que termine esta realidade brutal, requer-se um profissional comprometido com a mudança social. Profissionais que não procurem engordar nos cargos públicos nas capitais de nossas pátrias. Que a obrigação de quem estudou aqui é não esquecer que esta é uma universidade do Estado paga pelos contribuintes! Que a imensa maioria deles são os trabalhadores e que por desgraça, nesta universidade e como nas universidades de minha pátria, a presença de filhos camponeses e de operários atinge um baixo nível mesmo assim. (...) E respeitamos o pensamento cristão quando esse pensamento cristão interpreta o verbo do Cristo que expulsou os mercadores do Templo..."

Foi preciso tanques e aviões e exércitos para abater o homem que era uma fortaleza. Suas últimas palavras, antes de cometer suicídio, foram apertadas pela pressão daqueles que ele sabia que mergulhariam o povo do Chile num labirinto de mortes e violações dos direitos humanos. Assim foi seu pronunciamento:


"Me dirijo, sobretudo, à modesta mulher de nossa terra, à camponesa que acreditou em nós; à operária que trabalhou mais, à mãe que soube de nossa preocupação pelas crianças. Me dirijo aos profissionais da pátria, aos profissionais patriotas, aos que há dias estiveram trabalhando contra a sedição auspiciada pelos Sindicatos profissionais, sindicatos de classe para defender também as vantagens que uma sociedade capitalista dá a uns poucos. Me dirijo à juventude, àqueles que cantaram, entregaram sua alegria e seu espírito de luta. Me dirijo ao homem do Chile, ao operário, ao camponês, ao intelectual, àqueles que serão perseguidos... porque em nosso país o fascismo já esteve há muitas horas presente nos atentados terroristas, explodindo as pontes, cortando a linha férrea, destruindo os oleodutos e os gasodutos, frente ao silêncio dos que tinham a obrigação de cuidá-los: estavam comprometidos. A história os julgará."

Mas, acima de tudo, escrevo para os que eu não citei os nomes, para aqueles que não tiveram nome nem rosto, nem sepultura. Para os aglomerados, os concentrados, para aqueles cinco mil, para os mais de 30 mil, para todos em qualquer parte do mundo, de ontem, de hoje e, enquanto estes não possam ser redimidos, enquanto os opressores vençam e escrevam a história, escrevo também para os do futuro.

¡PARA QUE NUNCA MÁS EN CHILE!





Estádio do Chile


Somos cinco mil aqui
nesta pequena parte da cidade.
Somos cinco mil.
Quantos somos no total
nas cidades e em todo o país?
Só aqui,
dez mil mãos que semeiam
e fazem andar as fábricas.
Quanta humanidade
com fome, frio, pânico, dor,
pressão moral, terror e loucura.

Seis dos nossos se perderam
no espaço das estrelas.
Um morto, um golpeado como jamais pensei
se poderia golpear a um ser humano.
Os outros quatro quiseram livrar-se
de todos os temores,
um saltando ao vazio,
outro golpeando a cabeça contra um muro
mas todos com o olhar fixo na morte.
Que espanto produz o rosto do fascismo!
Levam até o fim seus planos com precisão sagaz
sem nada lhes importar.
O sangue para eles são medalhas.
A matança é um ato de heroísmo.
É este o mundo que criaste, Deus meu?
Para isto teus sete dias de surpresa e de trabalho?
Nestas quatro muralhas só existe um número
que não progride.
Que lentamente desejará mais a morte.

Mas tão rápido me golpeia a consciência
e vejo esta maré sem pulso
e vejo o pulso das máquinas
e os militares mostrando seu rosto de matrona
cheia de doçura.
E México, Cuba e o mundo?
Que gritem esta ignomínia!
Somos dez mil mãos
a menos que não produzem.
Quantos somos em toda a pátria?
O sangue do companheiro Presidente
golpeia mais forte que bombas e metralhadoras.
Assim golpeará nosso punho novamente.


Canto, que mal me sais
quando tenho que cantar, espanto.
Espanto como o que vivo
como o que morro, espanto.
De ver-me entre tantos e tantos
momentos de infinito
em que o silêncio e o grito
são as metas deste canto.
O que vejo nunca vi.
O que senti e o que sinto
farão brotar o momento...

Víctor Jara (último poema escrito antes de ser assassinado)

sábado, 7 de setembro de 2013

Gilberto Freyre, o... psicanalista!


"Os juristas brasileiros precisam ser psicanalisados."


Pra não perder a viagem do dia e aproveitando o clima em que me meti para a próxima segunda e terça-feira, mando um achado de Gilberto Freyre, aos seus 85 anos, no 2º Congresso Brasileiro de Psicanálise d'A Causa Freudiana do Brasil. Não vou dizer mais nada, apenas que tirem suas conclusões.



Mas deixo uma pergunta: alguém consegue enxergar a Aura do velho?

domingo, 11 de agosto de 2013

Presente de dia dos pais - um livro



(...)

O oficial de justiça pegou o maço todo e o entregou ao presidente.

- De que maneira esse dinheiro foi parar em suas mãos... se de fato é o mesmo dinheiro? - proferiu surpreso o presidente.

- Eu o recebi de Fulano*, o assassino, ontem. Eu o visitei antes que ele se enforcasse. Foi ele quem matou meu pai, e não meu irmão. Ele matou, e eu o ensinei a matar... Quem não deseja a morte do pai?...

- O senhor estará em seu perfeito juízo? - deixou escapar involuntariamente o presidente.

- O problema é que estou em meu perfeito juízo... e em meu torpe juízo, assim como o senhor, assim como todas essas... carrancas! - voltou-se de chofre para o público. - Mataram meu pai, mas ficam aí fingindo que estão assustados - rangeu os dentes com um desdém furioso. Cheios de nove-horas. Loroteiros! Todos desejam a morte do pai. Um réptil devora outro réptil... Não houvesse o parricídio, e todos ficariam zangados e sairiam por aí furiosos... Um circo! "Pão e circo!" Aliás, eu também sou uma boa bisca! Será que existe água aqui? dêem-me um copo, por Cristo! - subitamente pôs as mãos na cabeça.

(...)

* Suprimi o nome em respeito a quem ainda não leu o romance.

Dostoiévski, Fiódor. Os irmãos Karamázov. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2008. (Vol. 2), p. 888.