sábado, 17 de outubro de 2009

De um banheiro do IEL

Alguém escreveu:

"A vida é uma gambiarra..."

Ao que eu completo aqui:

"...com um bico de luz aceso perdido em algum lugar".

domingo, 4 de outubro de 2009

Para Mercedes, com amor

Foi com bastante tristeza que li, sexta-feira passada, sobre o estado de saúde de Mercedes Sosa. Ela, apesar de sua condição de "la bruja", quis a extrema-unção. Digo "apesar", mas agora vejo que não, não foi "apesar", porque ela, como a grande voz da América do Sul, acumulou aquele sincretismo típico das terras que lhe pertenciam e às quais ela pertencia, e que não encontra dificuldade em misturar fé, revolução, batucada africana, poesia, guerrilha e panteísmo indígena. Quando li que ela recebeu o padre para designar sua alma a Deus naqueles últimos instantes, eu percebi que aquela mulher que tanto alimentou os desejos de luta dos comunistas latinoamericanos, de tantos ateus ferrenhos que a ouviram cantar contra os regimes militares, percebi que ela jamais separou as coisas: e que o Deus libertador e a América Latina estão mais afinados do que imaginamos.

Morreu Mercedes hoje. E quão fiquei triste! Mercedes não está, agora, vestida de mar, como a poetisa Alfonsina Storni. Mercedes esperou a morte vir até ela. E por ter esperado, teve que ver muitas coisas mudando. Teve que saber que antes, quando o estado de exceção vigorava e cada ato, cada gesto, por mais violência que tivesse, que isso expressava a necessidade de um momento. Anos atrás, tomar a mão, roubar um beijo, fazia parte de uma verdade. Mercedes cantou a história de dor e de luta das mães dos desaparecidos na Argentina, dos mineiros bolivianos, dos que viram a chuva de bombas desabando sobre Santiago do Chile, da ditadura militar no Brasil... e em todos esse momentos, da mesma forma como valia a violência do Estado repressor, valia a violência, se preciso fosse, pela liberdade. Foi dessa forma que a Plegaria a un labrador, a canção que deu a Víctor Jara a vitória no Primeiro Festival da Nova Canção, no Estádio Nacional (nesse mesmo lugar, ele foi assassinado pelos militares chilenos em 1973), que Mercedes Sosa a cantou. Um hino que convoca os agricultores a unirem sua fé à justiça de um Deus que não espera, que deu a oportunidade a Seus filhos de cantar o Pai-Nosso como um chamado à revolução. E o espírito de Mercedes, como de tantos outros, foi marcado dessa associação, a arte e a violência necessária, e assim ela se mostrou, em todos os lugares, cantando sempre acompanhada daquele bombo onde quer que houvesse injustiça.

Mas o tempo passa e ficamos velhos, diz a canção de Pablo Milanés. E agora, tendo ocorrido tanta coisa, todos tentam construir algo novo, à sombra daquele passado em que todos eram jovens e dispostos a dar a vida, fazer valer a máxima do Che: melhor morrer lutando que de joelhos. E foi na juventude que eu me apeguei à voz e à mensagem de Mercedes (digo na juventude, embora tenha 26 anos e não tive idade suficiente para ver a guerrilha sandinista na Nicarágua). Mas os tempos não parecem, mesmo assim, tão novos. Honduras que o diga. No entanto, não é que a injustiça mudou ou acabou, mas mudaram aqueles injustiçados. Perceberam que há outras formas de lutar que não apenas empunhar o fuzil ou o arado. E mesmo eu, que tive meu idealismo apaixonado até - acredito - meus 20 anos, e acalentei-o ao som da música de Mercedes, eu tive que mudar. Eu não sabia o que era, apenas acreditava na justiça, na revolução, na luta. Nunca militei no PSTU, PSOL, PCdoB. Meu negócio era o idealismo, o romantismo de ler Mario Benedetti dizendo que na rua, lado a lado, somos muito mais que dois; daquele lirismo tendencioso de Las venas abiertas de América Latina; de poder acreditar que a música estava a serviço, como as outras artes, do engajamento e da luta, como disse Maiakóvski uma vez a mim; de ouvir Te recuerdo, Amanda e chorar vendo Amanda pela rua molhada indo encontrar Manoel e ser amada e ser feliz ali, junto dele, aproveitando os únicos 5 minutos de intervalo da fábrica que tem Manoel. Em verdade, por esses tempos de idealismo, eu peço desculpas. Eu não conhecia, nem nunca vi uma fábrica soando a sirene. Tampouco soube na época o que era ser operário, salário-mínimo. Eu conhecia esse mundo pelas músicas, pelos poemas de Neruda, de Nicolás Guillén e de José Martí. E acho que me deixei enganar por todos eles.

Mas foram eles que me ensinaram, depois, que eu não precisava me cegar para tudo isso. Porque se Violeta Parra - um dos meus símbolos de arte engajada - se apaixonou, já idosa, por um jovem e por não suportar a impossibilidade desse romance, se matou, eu vi que a paixão pode estar em tudo, não só na Revolução. E que a própria Beleza, em si, já é subversiva. É ela que, quando tudo estiver perdido, salvará o mundo, disse o príncipe Míchkin. A paixão, ela está no filho que nasce, na casa que se ergue, no esgotamento sanitário que você e os moradores da sua rua conseguiram depois de tanto esforço e cobrança e que fazendo todas essas coisas com paixão está-se, sim, fazendo a Revolução. E eu aprendi isso, também, com Mercedes Sosa que cantando Violeta Parra, agradece à vida por tudo que esta tem lhe presenteado. E são todas essas coisas que fazem com que tudo valha a pena: o ouvido que ouve os grilos; o abecedário nos dá a formar as palavras "mãe", "amigo", "irmão"; o coração que se alegra diante dos frutos do cérebro humano; a marcha dos pés cansados que nos levou a todos os lugares. Amar e defender tudo isso: eis a Revolução.

Se hoje ainda chorei, foi por me lembrar de como eu era menino com todas aquelas crenças. De como era tolo. E de como acreditei em tanta coisa sem saber por onde começar a fazer. E Mercedes Sosa era a voz desse meu espírito de menino que se via diante da figura de Deus, alumbrado. E deu vontade, ao ouvi-la de novo, de sentir as coisas que já senti, os idealismos nos quais acreditei. Mesmo sabendo dos riscos, mesmo sem ser sábio competente. Busquei me rever na infância ideológica (ainda sou adolescente nisso). Saber como era, por que motivos eu já fui tão infantil quanto a essas questões. E consegui ver só um pouquinho. E ri. E chorei por ver que tudo me era tão fácil de acreditar. Agora, vejo como mudei. Que muitas dessas crenças se abalaram, se transformaram, mas não se perderam: migraram para sonhos menores, porém não menos grandes. Mas eu me perdôo, eu já fui jovem.

Hoje, eu acho que voltei aos meus 17...

Adeus, Mercedes!

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Lula é pelo Rio

Eu bolei de rir, mas não deixei de achar uma coisa muito bonita todas as reações dos brasileiros, sobretudo do presidente Lula, na cerimônia de eleição da cidade-sede dos Jogos Olímpicos de 2016. "Populismo", dirão uns sobre as lágrimas de Lula, ou sobre toda a quebra de protocolo que ele propiciou diante do presidente do COI, Jacques Rogge, e de toda a imprensa internacional. Aliás, esse foi o destaque de todos os grandes jornais do mundo: o choro de Lula. Incrível como até esse momento nenhum dos portais de notícias da Folha online ou da Veja sequer mencionou toda a carga de emoção que a comissão brasileira investiu na sua apresentação ou das lágrimas de felicidade engasgadas do presidente quando este assinou o contrato junto com o governador do Estado do Rio de Janeiro e com o prefeito da cidade vencedora. No portal da Veja, mais absurdo ainda, nem o nome de Lula, nem imagem sua estão lá.

Não estou afirmando que foi Lula que venceu. Ele mesmo disse que não. E de fato, não foi. Houve um aparato gigantesco muito bem montato pela comissão brasileira e exibido para todos e que possibilitou a confiança no Rio pelos votantes. Mas dá pra dizer que houve uma particularidade nessa comissão. E se dá pra falar em algo tipicamente brasileiro, sem dúvida é esse jeito passional de lidar com uma disputa e da maneira como se manifesta a alegria na vitória. Correm as notícias de que o discurso de Lula foi decisivo para a escolha pelo fator emotivo, apelativo. Para ajudar na decisão, valeu até fazer o sinal-da-cruz. Mas o que esperar de um chefe de Estado que pulou feito moleque quando da divulgação do resultado? Ali eu me senti feliz junto com Lula. E acho que muitos outros também. No portal do Terra, o jornalista que assina essa matéria só deu destaque aos arroubos de emoção e de brincadeiras do presidente, capaz de dizer que no Japão você cumprimenta um primeiro-ministro pela manhã e outro pela tarde, tamanha a mudança que eles têm por lá.

Muitos são os que dizem que essa vitória era mais que esperada, que não há novidade na escolha. Mas esses que não se assustam, não se emocionam. Acham que essa espirituosidade brasileira é coisa de gente acanalhada. Preferem usar a emoção de forma mais contida, demonstrada com mais sinceridade só para saudar outro cidadão na rua com um vibrante vive la France, como faziam muitos no fim do século XIX no Rio de Machado de Assis, como fez Fernando Henrique Cardoso em 2001, na Assembléia Nacional Francesa. Mas depois de hoje, assistindo à comemoração dos cariocas na praia, eu acho que alguma coisa pode mudar.

Excurso: no blogue de Reinaldo Azevedo, acho que ele deixou passar um comentário meu. Talvez ele não tenha entendido a ironia quando detectei tanto na postagem quanto nos comentários da maioria dos leitores aquela chaga que tanto prostra os brasileiros: o Complexo de Vira-lata.