quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Escuta, Rachel Sheherazade!


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Durante muito tempo sintonizei contigo porque conhecia a tua vida através da minha própria existência e porque queria ajudar-te. Mantive-me perto de ti porque via que te era útil e que aceitavas o meu auxílio com prazer e, não raro, com lágrimas nos olhos. Só aos poucos percebi que o aceitavas, mas que não eras capaz de defendê-lo. Defendi-o e lutei para ti, por ti. Foi então que os teus chefes destruíram o meu trabalho e que tu os seguiste em silêncio. Continuei então em comunhão contigo, tentando achar maneira de ajudar-te sem soçobrar quer como teu dirigente quer como tua vítima. E o Zé Ninguém que reside em mim tentava convencer-te, «salvar-te», merecer-te o respeito que consagras às «altas matemáticas» por não fazeres a mínima ideia do que sejam. Quanto menos entendes, mais prezas. Conheces Hitler melhor que a Nietzsche, Napoleão melhor que a Pestalozzi. Qualquer monarca significa mais para ti do que Sigmund Freud. E o Zé Ninguém que vive em mim gostaria de ter-te nas mãos pelo processo costumeiro, recorrendo ao rataplã dos chefes. Eu temo-te, porém, quando o meu Zé Ninguém deseja «conduzir-te à liberdade». É que poderias descobrir a mesma identidade medíocre em ti e em mim, e, assustado, matares-te na minha pessoa. Foi por isso que deixei de ser escravo da tua liberdade e desejar morrer por ela.

Sei que não me entendes ainda quando te falo na «liberdade de ser escravo de quem quer que seja», ideia que não é fácil. Para não ser escravo fiel de um único senhor, e ser escravo de todos, ter-se-á em primeiro lugar que matar o opressor, digamos, por exemplo, o Czar. Este crime político nunca poderia ser perpetrado sem um grande ideal de liberdade e motivos revolucionários. É, portanto, necessário fundar um partido revolucionário de liberdade sob a égide de um homem verdadeiramente grande, seja ele Jesus Cristo, Marx, Lincoln ou Lenine. Claro está que este grande homem tomará a tua liberdade muito a sério. Para a impor, terá de rodear-se de uma multidão de homens menores, ajudantes e moços de recados, dada a imensidade de tarefa para um só homem. Tu não irias entendê-lo, e deixá-lo-ias de lado, se ele se rodeasse de gente um pouco superior. Assim escudado, ele conquista para ti o poder, ou uma parcela da verdade, ou uma nova e melhor crença. Escreve evangelhos, promulga leis liberais, e conta com o teu apoio, seriedade e prontidão. Arranca-te do lameiro social onde te encontras imerso. Para manter solidários os muitos acólitos de menor talhe, para conservar a tua confiança, o homem verdadeiramente grande sacrifica pouco a pouco a sua grandeza que ele só pôde cultivar na sua profunda solidão espiritual, longe de ti e do teu bulício quotidiano mas em estreito contacto com a tua vida. Para te poder guiar, terá de conseguir que o transformes num Deus inacessível, pois que jamais obteria a tua confiança se permanecesse o simples homem que é, um homem a quem fosse, por exemplo, possível amar uma mulher sem estar casado com ela. E assim engendras um novo amo. Promovido ao seu novo papel senhorial, eis que o grande homem míngua, pois que a grandeza lhe estava na inteireza, simplicidade, coragem e proximidade da vida. Os seus medíocres acólitos, grande mercê da aura dele, assumem os altos cargos das finanças, da diplomacia, do governo, das ciências e das artes – e tu ficas onde estavas: no lameiro, pronto a esfarrapares-te novamente em nome do «futuro socialista» ou do «Terceiro Reich». Continuarás a viver em barracas com telhados de palha e paredes rebocadas de estrume, mas muito ufano dos teus palácios da cultura. Basta-te a ilusão de que governas – até que sobrevenha a próxima guerra e a queda dos novos tiranos.

Em países distantes, homens medíocres estudaram afincadamente a tua ânsia de ser escravo e descobriram como tornar-se grandes homens medíocres com um mínimo de esforço intelectual. Esses homens vêm das tuas fileiras, nunca habitaram palácios. Passaram fome e sofreram como tu – mas aprenderam a encurtar o processo de mudança dos chefes. Aprenderam que cem anos de árduo trabalho intelectual em prol da tua liberdade, de grandes sacrifícios pessoais pelo teu bem-estar, de holocausto até da vida nos interesses da tua libertação, eram preço demasiado alto pela tua próxima nova escravatura. Tudo o que pudesse haver sido elaborado ou sofrido em 100 anos de vida de grandes pensadores podia ser destruído em menos de cinco anos. Os homúnculos da tua estirpe aprenderam, assim, a abreviar o processo: fazem-no mais aberta e brutalmente. E dizem-te sem rebuços que tu, a tua vida, os teus filhos e a tua família não contam, que és estúpido e subserviente e que podem fazer de ti o que lhes aprouver. E em vez de liberdade pessoal prometem-te liberdade nacional. Não te prometem dignidade pessoal mas respeito pelo Estado; grandeza nacional em vez de grandeza pessoal. E como «liberdade pessoal» e «grandeza» são para ti apenas conceitos estranhos e obscuros, enquanto «liberdade nacional» e «interesses do Estado» são palavras que te enchem a boca, como ossos que fazem nascer a água na boca de um cão, não há ámen que não lhes dê. Nenhum desses homens medíocres paga pela liberdade autêntica o preço que pagaram Giordano Bruno, Cristo, Karl Marx ou Lincoln. Nem tu lhes interessas a ponta de um chavelho. Desprezam-te como tu te desprezas, Zé Ninguém. E conhecem-te bem, muito melhor do que um Rockefeller ou os Conservadores. Conhecem os teus podres como só tu próprio os devias conhecer. Sacrificam-te a um símbolo e és tu próprio quem lhes confere o poder que exercem sobre ti. Ergueste tu próprio os teus tiranos, e és tu quem os alimenta, apesar de terem arrancado as máscaras, ou talvez por isso mesmo. Eles mesmo te dizem clara e abertamente que és uma criatura inferior, incapaz de assumir responsabilidades, e que assim deverás permanecer. E tu nomeia-los novos «salvadores» e dás-lhes «vivas».

É por isso que eu tenho medo de ti, Zé Ninguém, um medo sem limites. Porque é de ti que depende o futuro da humanidade. E tenho medo de ti porque não existe nada a que mais fujas do que a encarar-te a ti próprio. Estás doente, Zé Ninguém, muito doente, embora a culpa não seja tua. Mas é a ti que cabe libertares-te da tua doença. Já há muito que terias derrubado os teus verdadeiros opressores se não tolerasses a opressão e não a apoiasses tu próprio. Nenhuma força policial do mundo poderia prevalecer contra ti se tivesses ao menos uma sombra de respeito por ti próprio na tua vida quotidiana, se tivesses a profunda convicção de que, sem o teu esforço, a vida sobre a terra não seria possível por nem uma hora mais. Será que o teu «libertador» to disse? Qual quê! Chama-te «Proletário do Mundo», mas não te dizem que tu, e só tu, és responsável pela tua vida (em vez de seres responsável pela «honra da pátria»).

Terás de entender que és tu quem transforma homens medíocres em opressores e torna mártires os verdadeiramente grandes; que os crucificas, os assassinas e os deixas morrer de fome; que não te ralas absolutamente nada com os seus esforços e as lutas que travam em teu nome; que não fazes a menor ideia de quanto lhes deves do pouco de satisfação e plenitude de que gozas na vida.

(...)

Tenho muito medo de ti, Zé Ninguém, um enorme e profundo medo, e nem sempre foi assim. Eu já fui um Zé Ninguém entre milhões de outros. Hoje, como cientista e psiquiatra, sei ver que és doente e perigoso na tua doença. Aprendi a reconhecer o facto de que é a tua doença emocional que te destrói minuto a minuto, e não qualquer poder exterior. Há muito já que terias suprimido os tiranos se estivesses vivo e são no teu íntimo. Hoje em dia os teus opressores vêm das tuas próprias fileiras, tal como outrora vinham dos estratos mais altos da hierarquia social. Ainda são mais medíocres do que tu, Zé Ninguém. Porque, tendo conhecido por experiência a tua miséria, é necessária muita mediocridade para utilizar esse conhecimento com vista à tua supressão ainda mais perfeita e eficaz.

Tu não tens sequer a capacidade de reconhecer um homem verdadeiramente grande. O seu modo de ser, o seu sofrimento, as suas aspirações, raivas e lutas em teu nome são-te completamente alheios. Nem sequer entendes que existem homens e mulheres incapazes de suprimir-te ou explorar-te e que genuinamente desejam que sejas livre, real e verdadeiramente livre. Nem te agradam, porque são de outra natureza. São simples e directos; para eles, a verdade corresponde às tuas tácticas. Vêem-te à transparência, não em derisão, mas em mágoa pelo destino dos homens. Mas tu sentes apenas que olham através de ti, e tens medo. Só os aclamas, Zé Ninguém, quando muitos outros Zés Ninguéns te dizem que esses grandes homens são grandes. Tens medo deles, do tão perto que estão da vida e do amor que lhe têm. O grande homem ama-te simplesmente como criatura humana, ser vivo.

Deseja apenas que cesse o teu sofrimento milenar. Que cales o teu milenar cacarejo. Que não mais sejas besta de carga como o tens sido, porque ama a vida e desejaria vê-la liberta do sofrimento e da ignomínia. És tu que levas os homens verdadeiramente grandes a desprezarem-te, a retirarem-se com tristeza do teu convívio medíocre, a evitarem-te e, pior de tudo, a terem compaixão de ti. Se fosses psiquiatra, Zé Ninguém, um Lombroso, por exemplo, tentarias esmagá-los como a criminosos irrecuperáveis ou psicóticos. Porque os objectivos da vida de um grande homem são diversos dos teus – não consistem na acumulação de bens, nem no casamento socialmente adequado das filhas, nem na sua carreira política, nem na obtenção de honras académicas ou do Prémio Nobel. E porque não é como tu, chamas-lhe «génio» ou «excêntrico». Mas o grande homem apenas se reserva o direito de ser um ser humano. Chamas-lhe «a-social», porque prefere o seu gabinete de trabalho ou o seu laboratório, a sua linha de pensamento e o seu trabalho às tuas festinhas ridículas e destituídas de sentido. Chamas-lhe louco porque prefere gastar o seu dinheiro na investigação científica em vez de comprar acções ou outros bens. Na tua degenerescência, Zé Ninguém, ousas considerá-lo como «anormal» o homem simplesmente recto, pois que o comparas contigo, o protótipo da «normalidade», o homo normalis. Ao medi-lo com a tua medida estreita não lhe encontras as dimensões da tua normalidade. Nem entendes, Zé Ninguém, que és tu que o afastas das tuas reuniõezinhas sociais, que apenas lhe são insuportáveis, quer nas tabernas quer nos salões de baile, porque te ama e deseja genuinamente auxiliar-te. O que o torna aquilo que é após várias décadas de sofrimento? Tu, na tua irresponsabilidade, na tua tacanhez, na tua incapacidade de reflectir, e os teus «axiomas eternos» que não sobrevivem a dez anos de progresso social. Lembra-te apenas de todas as coisas que tomaste por certas durante os escassos anos que decorreram entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundiais. Quantas reconheceste como erradas, de quantas foste capaz de te retractar? De nenhumas, Zé Ninguém. Porque o homem realmente maior pensa cautelosamente, mas quando se apropria de uma ideia, pensa a longo prazo. E és tu, Zé Ninguém, que fazes do grande homem um pária quando o seu pensamento correcto e duradoiro enfrenta a mesquinhez e a precariedade das tuas convicções. És tu que o condenas à solidão, não à solidão que gera grandes obras, mas à solidão do temor da incompreensão e do ódio. Porque tu és «o povo», a «opinião pública» e a «consciência social». Já alguma vez pensaste na responsabilidade gigantesca que estes atributos te conferem, Zé Ninguém? Já alguma vez perguntaste a ti próprio se pensas correctamente, quer do ponto de vista da trajectória social onde estás inserido, quer da natureza, quer até de acordo com os actos humanos de uma figura como, por exemplo, a do Cristo? Não, Zé Ninguém, nunca te inquietaste com a possibilidade de que pensas estar errado, mas sim com o que iria pensar o teu vizinho ou com o preço possível da tua honestidade. Foram estas as únicas questões que puseste a ti próprio.

E depois de condenares o grande homem à solidão é ainda teu hábito esquecê-lo. Segues o teu caminho, perorando outras asneiras, cometendo outras baixezas, ferindo de novo. Esqueces. Mas é da natureza do grande homem não esquecer nem vingar-se mas tentar entender A INCONSISTÊNCIA DO TEU COMPORTAMENTO. Sei que também te é estranho que assim seja. Podes crer, porém, que o sofrimento que infliges tantas vezes inconscientemente – e que quantas vezes logo esqueces – é para o grande homem, mesmo se incurável, motivo de reflexão em teu nome, não pela grandeza dos teus actos vis, mas exactamente pela sua pequenez. E é ele quem se interroga sobre o que te leva a maltratar o marido ou a mulher que te desapontou, a torturar os teus filhos porque desagradam a vizinhos odiosos, a desprezar e explorar alguém só porque é bondoso; a receber quando te dão e a dar quando te exigem, mas nunca a dar quando o que te é dado o é por amor: a bater em quem já está de rastos; a mentir quando te é pedida a verdade e a persegui-la bem mais do que à mentira. Zé Ninguém, tu estás sempre do lado dos opressores. Para que o estimasses e te caísse em graça, o grande homem teria de se adaptar ao teu modo de ser, Zé Ninguém, falar como tu e gabar-se das mesmas virtudes. A verdade é que se ostentasse as tuas virtudes, falasse a tua linguagem e gozasse da tua amizade não mais seria grande, autêntico ou simples. Prova é que os teus amigos que dizem exactamente o que esperas que eles digam nunca foram grandes homens. Tu não acreditas que qualquer amigo teu possa conseguir o que quer que seja de grande. No mais íntimo de ti próprio, desprezas-te, mesmo quando – ou particularmente quando – gabas mais da tua dignidade; e se te desprezas, como poderias respeitar os teus amigos? Nunca poderias acreditar que quem quer que fosse que se sentasse à tua mesa ou vivesse na mesma casa contigo pudesse realizar o que quer que fosse de grandioso.

Perto de ti é difícil pensar, Zé Ninguém. É apenas possível pensar acerca de ti, nunca contigo. Porque tu sufocas qualquer pensamento original. Tal como uma mãe, tu dizes às crianças que exploram o seu mundo: «Isso não é próprio para crianças.» Como um professor de biologia, dizes: «Isso não é coisa para bons alunos. O quê, duvidar da teoria dos germes do ar?» Como um professor primário, dizes: «As crianças são para ser vistas, e não para se ouvirem.» Como uma mulher casada, dizes: «Hã! A investigação! Eu e a tua investigação! Porque é que não vais para um escritório, como toda a gente, ganhar decentemente a tua vida?» Mas sobre o que se escreve nos jornais tu acreditas, quer percebas quer não.

Garanto-te, Zé Ninguém, que perdeste o sentido do que mais vale em ti mesmo. Morre de sufocação às tuas mãos, em ti e onde quer que o encontres nos outros, nos teus filhos, na tua mulher, no teu marido, no teu pai e na tua mãe. Tu és medíocre e queres continuar a sê-lo.

(...)

Wilhelm Reich. Escuta, Zé Ninguém!. Trad. Maria de Fátima Bivar. Alfragide (Portugal): Leya, 2008. pp (15-24)