segunda-feira, 25 de maio de 2009

O Mundo é um Moinho

Minha gente

Retorno aqui para abrir um parênteses, desta vez relembrando um post visto há muito tempo no blogue do grande Wilson Tonioli, o Verticontes(recomendo a leitura).
Poucas coisas na vida são tão bonitas quanto isso:



Não se acanhem em rasgar-se por dentro.

sexta-feira, 15 de maio de 2009

[Carta a Allyrio]

Como não haveria de faltar, aqui está a carta que Graciliano Ramos mandou como resposta ao artigo de Allyrio, logo aí abaixo, na postagem anterior. Foi publicada no mesmo jornal. Já fizemos referência a ela uma vez, quando não a tínhamos na íntegra, mas apenas um trecho que corresponde ao começo da missiva, encontrado num saite da internet. Agora, leiamos inteira.


[Carta a Allyrio]
Graciliano Ramos


Prezado Allyrio¹:


Tenho procurado avistar-me com Monte Brito, mas esse seu amigo é vaporoso, é abstrato, abala-me as convicções, atira-me ao idealismo, insinua-me a suspeita de quem um ser livre de carne e osso é capaz de escrever extensos rodapés. Na livraria e no jornal percebemos a sombra de Monte Brito; em vão nos esforçamos por ver-lhe a figura, ponderável, com as suas fraquezas e as suas incongruências, imperceptíveis na folha onde se alarga e aprofunda o pensamento. Você, ótimo Allyrio, me afirma conhecer de perto o vivente singular. Não indago mistérios - e, como a asserção me é útil, peço-lhe que transmita à personagem fugitiva, pelos meios convenientes, este solilóquio derramado.

Quero referir-me ao longo ensaio de Monte Brito, exposto no O Jornal em seis domingos. Tenho fornecido assunto ao homem, deveria achar-me vaidoso, imaginar haver ganho nestes últimos tempos algumas polegadas. Não sucede, porém, isso, pois as minhas letras apenas serviram de pretexto ao admirável estudo; com elas, ou com qualquer outra matéria-prima, as largas colunas teriam sido lançadas no suplemente, graves e valiosas. Assim, recolho-me discreto, dou a Fabiano, Luís da Silva e Paulo Honório o mérito escasso que eles tiveram na vida.

Ao ler Monte Brito, muitas vezes me pareceu distinguir os meus insetos sociais através de uma lenta de microscópio. Nesse aumento excessivo com certeza surgiram pormenores invisíveis a olho nu, mas convém antes de tudo mencionar a honestidade rigorosa do observador: as criaturas, ampliadas e vistas sob luz forte, de nenhum modo se deturparam: as conclusões nasceram de fatos irrecusáveis.

É essa a principal virtude, suponho, do seu amigo, rara num país onde não precisamos justificar opiniões. A nossa crítica, decisiva e dogmática, pouco importância liga às cobaias que lhe chegam às garras; tem preguiça de investigar, arroja-se a dissertações inoportunas, falsifica um texto com citações inverídicas. Naturalmente não são todos os críticos; aludo aos que procedem assim.

Nem sempre, julgo, o comportamento leviano revela irresponsabilidade ou malícia: enxergaremos nele talvez deficiência de método. Em vez de se considerar um livro, medi-lo, pesá-lo, toma-se de ordinário uma parte dele, abandonando passagens nocivas a afirmações apriorísticas. Desse modo um católico provará que também sou católico; outros alinharão princípios morais, quererão obrigar-me a escorar-me neles. Pregam-nos rótulos, matriculam-nos à força numa ou noutra escola; exumam padroeiros exóticos, os figurinos que dizem adotarmos. Como se tivéssemos a pretensão de avizinharmo-nos dessa gente grande. Enfim nos atribuem as suas idéias, as suas preferências, os seus ódios.

Pergunto-me a mim mesmo se poderia ser de outra forma, se não estão certos. Devem estar. Não somos nunca, é possível, inteiramente objetivos: reproduzimo-nos tentando ocupar-nos de outra pessoa. Monte Brito, porém, identifica-se tanto com as minhas histórias que nos dá a impressão esquisita de sair de si mesmo, analisar, comparar, aceitando casos e indivíduos como estão no romance, bem ou mal, não como ele acaso desejasse vê-los. Nada trunca, nada enxerta.

Se não me engano, é razoável imputarmos isso a uma concordância de juízos. Como admitimos certo número de noções e apreciamos de igual jeito a sociedade, não lhe terá sido muito difícil explicar e comentar sem receber choques, sem ferir-se em nenhuma aresta.

Aliás, excluindo essa analogia de conceitos, alcançaremos uma interpretação verdadeira? As minhas narrativas, confessemos, são chinfrins, mas foram construídas na terra, as minhas mãos bisonhas pretenderam cavar alicerces. Não terá isso contribuído para que Monte Brito me olhasse com simpatia? Se eu conseguisse uma obra-prima isenta de realidade, feita com pedaços de sonho, não lhe torceria Monte Brito o nariz? Foi, presumo, a afinidade que lhe excitou a perspicácia e o levou a descobrir nos meus escritos o material necessário ao seu trabalho. Isto e o conhecimento perfeito da região estudada por mim, dos nossos hábitos, da nossa economia, das nossas tradições, da nossa língua.

Vistas à distância, essas coisas se mostram às vezes desprovidas de interesse; buscamos selecionar minúcias, agrupá-las - e os leitores recebem delas um retrato pálido e frio. Certas observações perturbam a rotina, lesam modelos consagrados. Se exibirmos, por exemplo, desavenças familiares, pais a brigar com filhos, arrepiar-se-ão, como se resvalássemos em sacrilégio. Não investigam se as discórdias existem: preferem negá-las, reputar-nos inimigos por nos arriscarmos a desacatar os seus padrões velhos.

Monte Brito e eu percorremos o sertão do Nordeste - e não temos conveniência em cantar loas aos mandantes de lá.

Teve o bom gosto de não me oferecer amabilidades irritantes, comuns na literatura nacional. À míngua de substância, é freqüente rechearem-se artigos com adjetivos. E já alguém se lembrou de ornando um cavalheiro vastamente impresso e discutido elogiar-lhe as gravatas. Veja só, um homem trata de poesia e desce a usar recursos de natureza indumentária. Longe disso, Monte Brito desdenhou até a minha sintaxe, que afinal é superior à roupa. Muitos agradecimentos a ele, prezado Allyrio. E abraços para você.
*************

O Jornal, Rio de Janeiro, 2.11.1947. Recorte do Instituto de Estudos Brasileiros.

¹A crítica consistente corajosamente engajada de Monte Brito encontra repercussão no romancista, que lhe endereça esta carta publicada na semana seguinte, em O Jornal. Allyrio Meira Wanderley sofreu o "1º processo contra a propaganda bolchevista nas letras". A noite, 26.12.1940. Acusado pelo juiz e membro do TS nacional Raul Machado ["A insídia comunista nas letras"] - é absolvido por unanimidade. Cf. SANTOS, Idelette M. Fonseca dos (Org.). Dicionário literário da Paraíba. João Pessoa: Fundação Casa de José Américo - UFPB/SEC/A União, 1994.

Graciliano Ramos VI

Finalmente, meu povo! Pra os que esperavam e pra os que não, aí vai o artigo do escritor, em ordem de importância, sertanejo, patoense, paraibano Allyrio Meira Wanderley sobre outro sertanejo de Alagoas, Graciliano Ramos. O tal artigo, e a carta de Graciliano em resposta, foram reproduzidos no número 02 da "Teresa Revista de Literatura Brasileira", do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP, em 2001, publicada pela Editora 34, entre as páginas 162-173. Allyrio assina com seu pseudônimo, Monte Brito.

Não quero me alongar num comentário inicial, nem preciso. Como vocês perceberão pelas notas contidas na própria revista, que eu transcrevo de maneira igual, o artigo de Allyrio é o último de uma série de seis sobre a obra de Graciliano Ramos. Não tive ainda acesso aos anteriores, só os encontrarei quando puder consultar o arquivo do jornal. Mas para que fiquemos situados, não estranhemos a forma com que Allyrio escreve supondo que já lemos os textos precedentes. Particularmente, gostei muito da crítica. Gostei sobretudo das análises dele sobre "a" Angústia. Quando ele usa esse artigo definido, modifica por completo o significado do livro como um romance, como uma coisa. É a própria angústia, o estado de espírito. O livro torna-se o próprio sentimento. Isso eu achei fantástico. E Allyrio aqui me deu um exemplo fortíssimo de como esse pequeno artigo definido "a", tão tolo no uso pelos paulistas (e pelo pessoal de Fortaleza no Ceará, pra fazer justiça), pode alterar por inteiro o significado de algo. Mostrou-me o quanto ele nos é caro, a nós, daí. Ademais, não estranhem o tamanho do artigo para o padrão de um blogue.

Graciliano Ramos VI
Monte Brito


Supomos ter ficado claro o que se nos afigura fundamental e característico na ficção do sr. Graciliano Ramos. De início, ela apresenta um sentido geral e uno, isto é: tem para nós, como queria Balzac, uma palavra sobre os negócios humanos. E essa palavra, se é de condenação ao dia de hoje, em que resplandece a agonia e a apoteose do possessivo, é também de fé no dia de amanhã, em que entremostra à meia luz das auroras e das promessas qualquer coisa como uma redenção. Não bastará?

Sobrepondo o homem ao mundo exterior, desde que reserva tão pouco lugar à cena quanto lugar à ação e, na ação subjetiva, sobrepõe implicitamente a consciência à existência; mas, fiel à sua lucidez, não esquece jamais que a existência é que condiciona a consciência embora, secundariamente, se deixe de igual modo condicionar por ela. Donde, as duas notas capitais na vida psíquica dessa gente tão estranhamente representativa: a sua interação com o meio e a sua estruturação dialética, puramente materialista. É o que o aparta e o isenta da dissociação e da fuga em que se afunda, se engana e se consola a decadência fantasiosa e gris da arte conservadora.

Não é, porém, tudo. Desse conhecimento intuitivo e minucioso, expresso numa capacidade descomunal para a introjeção - numa vocação para o Einfühlung - é que deriva, serpeia e relumbra o seu caráter de corrente - de stream of consciousness, para dizermos uma vez ainda com James. Na verdade, é contínua e cambiante. Nada, aí, se insula ou estaca, estável ou espontâneo; nada. Há um tumulto de estados e de processos: fundem-se, na mesma onda multicor e nômade, a sensação e a lembrança, a percepção e o desejo, a idéia e a volição. Sobre esse fundo inquieto e permanente desenham-se e soerguem-se os incidentes de que, no campo da própria consciência, tomam conhecimento os sombrios narradores: são os sons do tímbale, na sinfonia da imagem de Bergson - que depois revertem e se apagam na surda onipresença donde emergiram.

Mas, o tumulto tem suas leis: é vida; não é caos. Não mostra passagens gratuitas nem aparências arbitrárias; nele toda mudança pressupõe o influxo de uma contigüidade como toda situação a existência de um antecedente com que se encontra em relação funcional. No final da Angústia, é fácil vermos como o pensamento de Luís da Silva guarda sempre o mesmo norte. Na longa marcha sobre a pista de Julião Tavares, ele não atenta para o estado do céu: eis um exemplo. Por que não atenta? Porque o estado do céu não tem no momento - como tinha para João Valério, no curso dos Caetés, junto à garça de bronze do jardim - nenhum interesse prático para a corrente da sua consciência. Os seus feelings não dependem aí, na motivação que os suscita ou na finalidade que os dirige, do estado do céu. Em compensação, dependem estreitamente da circunstância de que apareça ou não apareça gente; então, verificamos quanto, quanto o preocupa o fantasma possível do trânsito!

Destarte, chegamos à conclusão de que, na ficção do sr. Graciliano Ramos, essa vida interior caminha invariavelmente para um alvo; caminha. Obscuro, às vezes; porém, real. Ora, é essa precisamente, com a mobilidade e a continuidade, uma das propriedades fundamentais que James atribui à stream of consciousness. Essa uniforme, essa inconsútil veridicidade psicológica, cremos de bom grado, é o que lhe confere o caráter de universalidade tão raro entre nós - que, no eterno começar que tem sido a nossa história, amamos perdidamente a superfície. O pitoresco e o anedótico. Rompe assim, como Pompéia e Barreto, com a tradição brasileira do ouropel.

Isto nos conduz ao exame da forma na obra do sr. Graciliano Ramos. Não aludimos, certamente, à sua correção ou à sua clareza; não. A clareza ou a correção não são qualidades artísticas; são qualidades gramaticais. Não se referem ao gosto; referem-se à língua. E isto que é tão sabido como mal lembrado desde Longino até Albalat, não nos toca. O que nos toca, aqui, é apenas a relação entre o conteúdo e o modo da expressão, tal como se nos apresenta e age sobre nós nessa ficção tão densa.

Devemos a Kant, na estética, a ilusão do formalismo que dissociava, tacitamente, a matéria da forma: bem cedo, Herder iria reagir contra ele, opondo-lhe o conceito de Einfühlung, que o romantismo reduziria a mera evasão pela dissolução do indivíduo na contemplação da natureza. Todavia, estava dado o primeiro passo para o reconhecimento da interdependência entre a forma e a matéria. Já não era concebível a modificação de uma sem a modificação da outra; sem a modificação da "plenitude da adequação das partes ao fim comum da existência do todo".

Está claro, então, o que é que nos atrai, assim, na obra do sr. Graciliano Ramos: é a reciprocidade da conveniência entre o que tem a dizer e o modo o diz. Aí, a forma distingue a matéria na mesma medida, ideal, em que a matéria determina a forma. Quando, pelas páginas da Angústia, vão e vêm os ratos, os ratos, sempre os ratos, numa abundância cinérea de obsessão - é óbvio que ele não tinha, nem poderia ter, outro meio para dar-nos a entender o que se oculta aí. E entra em cheio na simbólica de Vischer.

Com efeito, os ratos, esses pardos e macios ratos, que atacam a casa velha e destroem o fruto do trabalho humano, não são no romance simples detalhe casual, descritivo: são a imagem de uma época; são o prenúncio de um desfecho. Há seja lá o que for, grande talvez mas podre, que trinca, que [rui], que tomba em derredor de nós; qualquer coisa como um edifício em vésperas de desmoronamento. Das profundezas dos alicerces abalados, e corrompidos, irrompe a população subterrânea e fotófoba das sevandijas. Já não há ordem nem limites: tudo, ao entardecer da derrocada, começa a ser permitido como sempre acontece quando baixa entre os homens a sombra da revolta dos cataclismas. As senadijas, as sevandijas regozijadas no universal relaxamento das calamidades, podem agora vir à tona e passear ao seu bel-prazer sobre os escombros indefesos e os códigos esquecidos. Os homens não morreram; não fugiram. Mas, na agonia, na agonia caudalosa do seu mundo, não se animaram a dar caça a essa alimária minúscula dos desvãos. Os homens têm mais o que não fazer. Os homens não cuidarão sequer de atentar nela - nessa ratazanada confiada, que veio conviver com eles e conviver de igual para igual. Na mesma sala, à mesma luz e à mesma hora. Os homens, enfim, não são mais homens de outrora, capazes de brandir um pau ou de açular um gato; não. São apenas pobres luíses-da-silva, foragidos da vida, vencidos por uma vizinha ou por uma víscera, mergulhados parece que para sempre no espanto da ruína de uma civilização. E com esses ratos, com esses ratos em cena, tão freqüentes como cinzentos, o romancista exprime exatamente aquilo que, no íntimo, nós temos em comum com ele: o sentimento de que a hora que passa, que é a hora extrema da tormenta, é a hora dos ratos: não é a hora dos homens. Porque os próprios homens, hoje, serão mais que ratos, meros ratos violáceos a errarem em cima das [mesmas] migalhas do proveito, pela catacumba leiga de uma casa velha?

É a essa inter-relação, entre a matéria e a forma, que devemos a maneira do sr. Graciliano Ramos: ele não lhe importa o modelo nem o efeito; importa-lhe unicamente aquilo que tem a transmitir-nos. A busca de uma expressão que, alheia a qualquer outro objetivo, deixe intacta a extensão e a intensidade da coisa a exprimir, é provavelmente o seu martírio porque é, sem dúvida, o seu triunfo. O desprezo da forma é mais que o véu com que se encobre e disfarça a incapacidade de realização; é a prova da ignorância da sua natureza. Só não busca a forma aquele que tem as mãos vazias. É a forma que, distinguindo a matéria, nos dá a imagem correspondente à imagem que guardamos no fundo do nosso ser e que procuramos na arte. Dessa coincidência é que deverá brotar em nós o prazer específico - a emoção estética. Pois, seguindo uma intuição de Descartes, já Lange mostrava que a emoção é secundária à modificação orgânica.

O sr. Graciliano Ramos não perde nunca de vista aquela interdependência. É assim que, ao apresentar-nos um estado de espírito muito definido e, pois, muito duradouro, suas personagens repetem não raro uma frase com fixidez de um estribilho. Caída a mulher sobre o leito, morta ou como morta, no campo da consciência de Paulo Honório não cabe senão uma pequena, lívida esperança: uma luzerna irracional, mais desejo, mais tímido e retrospectivo desejo, do que mesmo esperança. E é o que vai transparecer no seu rude refrão: "- A Deus nada é impossível". Dona Adélia, diante da leviandade de Marina, não sabe o que dizer ao futuro genro: a repetição revelando-lhe a continuidade, revela-lhe de igual modo a penúria mental: "- É a mocidade", explicará, lacônica e docemente, a Luís da Silva.

A técnica é idêntica sempre que é idêntica a situação. Quando ele nos quer transmitir, por exemplo, a impressão de pauperismo ou de monotonia dessa existência a que se abebera a sua arte, a matéria, que é essa monotonia ou esse pauperismo, determina uma forma em que transluz, precisamente esse pauperismo ou essa monotonia: assim, a forma não distingue senão a única matéria que poderia distinguir, e que é a matéria, única a poder determiná-la. Não se explica de maneira diversa, na Angústia, a volta intermitente à cena daquela mulher que lava garrafas ou daquele homem que enche dornas. Às vezes a insignificância dos detalhes acumulando-se desvenda a insignificância das próprias coisas: "Que diabo fazia eu aí, debruçado à janela?" indaga Luís da Silva, perplexo em face da chateza do seu destino. "Entrava, ia para a sala de jantar, abria um livro, punha-me a ler marcando os períodos com o dedo. Quando terminava um período, baixava o dedo a um lugar onde era provável haver um ponto final. Parecia-me que este exercício me fixava a atenção na leitura: às vezes conseguia compreender a página inteira. Mas o dedo fatigava-se, entorpecia e os olhos desviavam-se das letras, pregavam-se na toalha, acompanhavam o movimento das moscas sobre as nódoas. Um relógio batia, Julião e Marina ausentes. Vitória falava alto na cozinha. Antonia embalava o filho mais novo de dona Rosália e a criança manhosa berrava com desespero". Não parece escrito de propósito para a exemplificação?

Estudando a obra de Proust, afirma Curtius: "De chofre, esbarramos com uma frase que emerge do conjunto como se contivesse um não sabemos quê de extraordinário: como se fosse translúcida, permite-nos lobrigar, ainda que seja confusamente, a índole do autor. À medida que prosseguimos na leitura, esbarramos com uma segunda, com uma terceira da mesma natureza e afigura-se-nos, então, haver nesse retorno uma oculta causalidade", presas como estão elas, a seu ver, a um fundo comum de origem. "São manifestações de uma mesma realidade espiritual que, completando-se e esclarecendo-se mutuamente, nos fazer ver um matiz da alma, uma particularidade do espírito do autor", continua Curtius. "Compreendemos então que tocamos num ponto, embora ainda periférico, do segredo da originalidade criadora. O modo por que o traço isolado se liga do ao conjunto permanece por inteiro indeterminável; mas, possuímos um ponto de partida. Reunindo cuidadosamente esses traços singulares, comparando-os numa meditação freqüentemente renovada, e distendida, chegaremos a aclarar a intuição. A verdadeira crítica segue esse caminho". Era a lição do próprio Proust ao analisar a obra de Ruskin.

Na ficção do sr. Graciliano Ramos, em que a forma está sempre tão conseqüentemente vinculada à matéria, também encontramos esses "traits similaires qui permettent de les tenir pour les traits essentiels du génie d'un écrivain". Bastaria vermos como mostra um homem ao mesmo tempo zangado e tranqüilo ou uma mulher com a cabeça cheia de moedas e de navios. Ao crermos nesses achados, que parecem impossíveis e contudo nos entram pelos olhos adentro, não fazemos mais do que descobrir, mesmo de longe, o segredo do escritor: o seu estilo; o seu modo de ser. E quando, remexendo os destroços das suas lembranças, um dos seus memorialistas encarniçados confessa que "saíram desse entorpecimento recordações que a imaginação completou", em verdade dá toda a sua medida; aí, tanto ressalta o conhecimento do nosso ser, em que o esquecimento tem a mesma parte da fantasia, como a música articulada em que consiste a arte de escrever. Na sua análise da beleza, Hogarth procura demonstrar a inferioridade da reta, negação da variedade, em face da curva, que chama a linha serpentina. A prosa do sr. Graciliano Ramos é, se nos é permitida a expressão, uma prosa assim: cheia de uma graça lenta, é musical como uma curva elipsoidal.

Mas, tão grande é a sua disciplina; tão viva a dependência da forma em relação à matéria - que um instrumento tão doce, submetido à interação entre o fim e os meios, se transformou, se pôde transformar, literalmente, num instrumento de combate. Porque ela cai, rígida e certeira, carregada de veneno e maciez, sobre a sociedade que condena e retrata, com a força do tacape de um caeté envolto na seda do punho de um florentino. "Infelizmente, não sou selvagem", lastima João Valério, que já não crê na civilização que conhece e que é a civilização da propriedade. "E ali estava, mudando a roupa com desânimo, civilizado, triste, de cuecas". Essa civilização tem um nome para a sua superestrutura política: é democracia. Mas, o súdito não leva mais a sério aquilo que criou e que era bom, quando se harmonizava com o estado de forças produtivas: o que lhe importa, agora, se alguma coisa lhe importa ainda, não tem maior alcance que o seu apetite ou o seu amado sossego. Por isso, não cora de confessar: "Procurei pela segunda vez os olhos de Luísa e, não os encontrando, declarei com aversão que a democracia era blague". Não crê em mais nada: é preciso que venha o dilúvio, para que tudo possa recomeçar. Nem mesmo as velhas imagens, meio retórica e meio religião, com que se enfeita a algaravia tradicional e psitacídea dos salões, encontram mais o respeito de outrora. "- Necessitamos luz, muita luz", afirma o doutor Castro, referindo-se ao ensino. "- Com miolo de pão?", pergunta a seguir Clementina. A junção, inesperada e oportuna, deixa em ridículo a nossa pobre palavra simbólica, que é luz. Que resta, portanto, a esse mundo caeté da desigualdade, na ficção do sr. Graciliano Ramos, senão pedir uma vela e morrer em paz com o seu deus, que está morrendo também?

É isto o que tem para dizer-nos, e numa forma perfeita, porque acorda em nós o eco de uma realidade que conhecemos do mesmo modo, o grande romancista brasileiro chamado Graciliano Ramos. Poderíamos resumi-lo, dizendo que ele nos traz uma anunciação.
**************

O Jornal, Rio de Janeiro, 5.10.1947. Este é o último da série de seis artigos sobre Graciliano Ramos, publicado na seção A Ronda dos Livros, escrita por Monte Brito [pseudônimo do escritor de esquerda paraibano Allyrio Meira Wanderley, autor do romance Bolsos Vazios (1940) e do ensaio político As Bases do Separatismo
(1935) entre outros]. O primeiro dos artigos é de 31 de agosto.

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Sob um denso...

Sob um enxoval de fogo o solo ardente

Demonstra que engoliu a trágica semente

Que faz nascer a planta atroz da combustão!

E essa planta se alastra em proporções tamanhas

Cujo fruto vermelho envenena as entranhas

Da terra estorricada ao sol da maldição!


Já não se escuta a voz dos vaqueiros na estrada!

A tétrica aridez da terra calcicada

Confessa a inquietação da prole que padece...

E há sempre pela estrada inóspita e comprida,

Uma criança com fome, um coração sem vida,

Uma cova, uma cruz, um adeus, uma prece!...


O triste fazendeiro imerso na descrença,

Debruçado a pensar sobre a janela imensa

Da casa da fazenda – outrora o sonho seu! –

Contemplando o vulcão a avassalar seu mundo,

Dirige o seu olhar cavernoso e profundo,

Ao rio que secou, ao gado que morreu!...


A pobre preta velha, exausta de fadiga,

Recostada ao varão da bolandeira antiga,

Assiste àquela cena inundada de ambrolhos...

Num gesto de temor que só bondade encerra,

Pede a deus que minore o suplício da terra,

Com tristeza no peito e lágrimas nos olhos!...


A palmeira senil que o vento quente embala,

Alevanta para o alto a cabeleira rala,

Que a chama devastou nas horas infelizes!...

E parece implorar aos céus, na sua mágoa,

Um minuto de paz ou mesmo um pingo d’água,

Que lhe caia na fronde e lhe molhe as raízes...


O solo é um forno aberto, escaldando o suplício

Da gente que carrega a cruz do sacrifício

Na treda rebelião de prantos e escarcéu!

E enquanto sofre um povo atirado ao relento,

Ninguém busca sanar aquele sofrimento

Que começa na terra e termina no céu!


O enorme espelho azul dos tristes céus escampos,

Reflete a solidão intérmina dos campos

Que dorme no sendal da paz desoladora!

Tudo sofre e padece ao fremir da fornalha,

E de encontro ao terror da miséria trabalha

Aquela gente heróica, humilde e sofredora!


A grande procissão dos mártires do Norte,

Como quem deixa a vida à procura da morte,

Anseia por matar os desenganados seus,

Confiantes na extinção da fome que soterra,

Porque no tribunal dos homens sobre a terra,

Não mais existe juiz – pois até deus já morreu.

terça-feira, 12 de maio de 2009

Introdução

Saudações amigos.

Não sou novo aqui nesse blogue, já que o acompanho desde a sua criação e sempre faço comentários. Porém sou novo como membro ativo do Soda Cáustica. O post anterior (do nosso amigo Lau Cariri) me deu uma deixa para fazer meu primeiro post.

Sei que o assunto "São João de Patos" é motivo de grandes discussões entre os participantes, não vale nem comentar. E com a aproximação do evento, existe uma mobilização social muito grande em torno disso, hoje a noite mesmo em um pequeno encontro que tive com umas amigas de Patos aqui na capital paraibana, a conversa era só essa, não só delas mas dos amigos delas também, eles que serão os futuros Turistas de quem tanto falamos (é engraçado, estou vendo a situação por outro prisma agora).
Mas essa festa é feita para aqueles que gozam realmente o momento "São João de Patos", que é a velha 'playboyzada' (desculpem o termo, mas não tenho outro) que até onde vi, já estão tomando conta do mundo todo. Essa festa com todas essas atrações é tudo que o povo quer, e quando digo povo não é só o 'povão' mais carente e necessitado não, é todo mundo, seja o rico ou o pobre, a festa consegue incrivelmente atingir a todos. Todos mesmo, que o digam eu e meu amigo Turuna, que nos divertimos bastante na festa, não estando nem aí pro resto do mundo.
O bom da festa é a galera com quem estamos mesmo (e a bebida, é claro).
O que eu quero dizer com tudo isso é que para esse povo que gosta desses artistas, é que coisas como Victor & Leo e Aviões do Forró no mesmo dia, está para eles assim como está para mim se fossem Iron Maiden e Black Sabbath tocando no mesmo dia, ou Elomar e Xangai tocando juntos, e tantos outros artistas que gosto.
Não tiro o mérito deles, pois eles realmente gostam desses artistas, morrem de amor por eles (por favor, não façam aqui nenhum trocadilho com o fato comentado no post anterior), e se tem, eles vão. Tiro o mérito apenas dos organizadores do evento, que se dizem os grandes divulgadores da cultura Nordestina. Victor & Leo tem tanto a ver com o São João quanto o Iron Maiden, ou seja, nada! Mas e daí? O que o povo quer é festa. E festa grande, com direito a seus artistas favoritos e todo tipo de extravagâncias.
A Cultura, nossa Cultura, parece que ficou só nas lembranças, como se não pertencesse mais a nós. Lembrei do São João da minha casa antigamente, quando meu pai fazia uma fogueira e colocava o velho Luiz Gonzaga no som de casa. Isso ainda me pertence, e muito!

Fica aqui uma pergunta: a Cultura de um povo é aquilo que estão constantemente cultivando, ou é o que se transformou no folclore e que ficou apenas nas nossas mentes, como se não fossem mais mas ainda sendo?

Para os mais curiosos e atentos, vai aqui o link com a programação do evento para este ano de 2009, aproveitem como quiserem meus amigos.

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Aos que estão em Patos

Caros amigos daí,


Verdade seja dita: não há idealismo do sertão que suporte dar de cara com uma incoerência como a festa do São João de Patos (se ainda quiser, confronte com essa outra versão). Do jeito que eles fazem por aí ninguém vai acreditar na minha ficção que tenho contado pros daqui. E eu, que falo, tematizo, faço piada com os paulistanóides, mas do jeito como o prefeito Nabor Wanderley tá fazendo é demais, né não? Assim eu fico até sem jeito de cantar as coisas bonitas desta terra bronzeada.

Ora, eu não gosto de falar no nosso blogue, e os meus amigos me têm por testemunha, não gosto mesmo de ter que dizer explicitamente sobre política em Patos. E não se trata da isenção de um ignorante que diz odiar e evita falar no assunto. É porque aí, sabemos bem, se você se pronuncia sobre o assunto todo mundo tende a querer saber logo a qual partido, cacique ou mandatário você se alinha. Não adianta falar seriamente no assunto.

Mas verdade seja dita: VÍCTOR E LÉO?! Que porcaria é aquilo, Deus meu? E o danado é que a matéria no saite do patosonline, provavelmente escrita, e mal, pela assessoria de imprensa do munícpio, diz que a Associação Comercial tremeu quando o prefeito anunciou a presença da dupla sertaneja para a programação desse ano. Já não bastou, em tempos idos, Bruno e Marrone, cujo status de dupla é questionável?

Ah, e eu quero fazer uma ressalva. Já que estou reclamando disso, os partidários do grupo político de Dinaldo Wanderley já estão pensando em me tornar seu mais novo aliado. Se fosse Dinaldo na prefeitura não ia fazer diferente. E tampouco me posiciono a favor de Jozivan e os revoltados do PCR e da União da Juventude e Rebelião.

Eu sei que Patos enfrentou problemas com chuva e isso tem no máximo um mês. Problema de mau planejamento urbano culpa da prefeitura (e não dessa gestão apenas). É um erro que se repete porque o povo pensa que seca é seca pra sempre e que o velho Espinharas não enche de novo. Vão nessa, viu? A prefeitura já era pra ter tomado providências há tempos pra retirar as famílias das regiões ao nível do rio, sobretudo na região da Rua da Baixa (que não por acaso se chama assim, meu povo!).

Afora isso, tem o problema com os buracos por toda a cidade! É só no que ouço falar. Daqui a pouco vão dizer que a cidade está em cima de uma falha geológica, o que explicaria o fenômeno de todos os calçamentos se desfazerem e o asfalto se esburacar. Já não basta dizer que o Inferno fica bem debaixo de Patos, o que explicaria o calor.

Mas voltando a Víctor e Léo, os caras da música das borboletas. O que tem a ver com festa de São João? Já que tanto se arvora falar de uma tradição da festa, em se tematizar o sertão nordestino com a coisa das quadrilhas juninas e tudo mais, acho que os ritmos do xaxado, xote, baião estão mais em acordo. Claro, e não sou eu quem o diz. Falo a propósito do que muitos reivindicam como a tradição. Tanto é que hoje o povo opõe como antagonista dos forrós eletrônico e universitário a coisa genérica e amorfa do "forró-pé-de-serra" e dizem que isso representa o autêntico forró. Acho complicado, mas vá lá; tomemos que sim: e aí, onde cabem Víctor e Léo nisso? Canto nenhum! Acho Derréis muito melhor.

Aliás, a complementação das demais bandas de forró para a festa merece um comentário à parte. Os nomes delas, só de você ler, já sugerem um orgasmo. "Garota Safada", "Calcinha Rasgada", sem falar que as músicas que "Gaviões do Forró", "Solteirões do Forró", "Aviões do Forró" e os demais "ÕES do Forró" só cantam a coisa do chupa que é de uva, senta que é de menta e por aí vão. E uma menção especial a uma banda que deve receber, mesmo em tempos de crise mundial financeira, um patrocínio especial da Toyota, a tal da banda "Forró Hillux". Para os que não conhecem, o mito do playboy forrozeiro construído a partir de uma música de forró é bastante difundido. Ele anda numa Hillux, toma uísque com Red Bull, "solta o som" quando chega num lugar, enfim. Pra quem já esteve em Patos no São João, deve ter visto um rebanho de Hillux que anda, pra cima e pra baixo e impressiona como isso chama a atenção do povo. Principalmente das mulheres. Esse e outros assuntos relacionados ao comportamento (quase em sentido behaviorista) das pessoas nos dias de festa dão margem pra outro texto. Sobretudo se falarmos sobre o fenônemo conhecido e batizado pelo meu amigo Magister Ludi como o Delirium Sancto Johannes.

Bom. Sei que é dinheiro público demais sendo desperdiçado frente aos problemas que a cidade precisa sanar. Não quero aqui dizer que turismo de evento não é massa, que não gera renda e que não é um alternativa dentro do semi-árido nordestino, mas o modelo como está criado na cidade é predatório.

Ainda escrevia este texto quando atualizei o patosonline e me deparo com esta notícia. Sei mais nem como terminar depois dessa. Eu espero que esse rapaz não tenha morrido mesmo pelo motivo que o saite anunciou. Seria louco demais se não fosse, antes de tudo, tão triste...

quinta-feira, 7 de maio de 2009

domingo, 3 de maio de 2009

Um problema para os linguistas

Caros amigos daí,


Gostaria de escrever mais uma nota sobre minha passagem por estas terras falando de algo que, sinceramente, me incomoda deveras. Incomoda por um motivo simples: me deixa muitas vezes sem ter o que dizer quando ocorre.

Amigos, o que nos torna comunicáveis? Tempos atrás, numa conversa com Magister Ludi, percebi que a facilitação de uma conversa é dada pela intimidade de coisas que significam em comum entre os falantes. Até aí, nenhum segredo, não teria sido nenhuma revelação. Só que intimidade deve ser entendido como algo mais, é a compreensão mútua do significado das coisas que não significam propriamente. Explico: não é pela palavra em si, que porta um significado somente decifrado por um grupo de amigos que a inventaram, por exemplo, nem tampouco como ela está descrita num dicionário.

Nós daí falamos coisas que sequer passam pelas nossas cabeças o que realmente significam dicionaristicamente. Só que a nossa intimidade, nossa confraria de significados, vela esse suposto desvio semântico. Não só, como ainda cria o significado e desse jeito usamos os termos sem nenhum acidente.

Aonde está o incômodo, apois? Claro! Está no fato de que aqui não encontro o eco do que eu digo e que eu escuto seu ressoar quando sei que o outro me compreendeu a expressão, a palavra. Engraçado isso: o eco de mim no outro está na continuidade da fala/resposta dele porque me entendeu. E mais! O incômodo está em eu não saber, de maneira etimológica talvez, o que aquilo quer dizer e explicar para o outro outro, os daqui. Isso é muito bizarro.

(Só um adendo rápido: essa coisa do eco, no que diz respeito ao lado fonético, do sotaque, dá mais pano pra manga porque é na ausência dele que as pessoas mudam o jeito de falar. Quando eu falo, ao ouvir um falante daí do sertão que me responde, eu ouço o eco da minha voz porque ele fala semelhante a mim, e reciprocamente. O sotaque são os ecos que falam entre si, diria eu num devaneio.)

Bem, mas já várias vezes que me vi nessa chateação. Definitivamente, o incômodo é esse: é que eu não sei o que certas palavras, por elas mesmas, que pronuncio entre meus amigos das terras de casa, significam. E eles do mesmo jeito. De onde vem a palavra "carrada"? De onde vem a palavra "reca"? Outro dia, contava uma história e falei algo como "uma reca de gente entrou na sala..." Aí me perguntaram o que era "reca". E eu disse: é uma "ruma". Perguntaram de novo e eu disse: é um "mói". Aí tudo certo, acredito que "mói" vem de "molho", um molho de gente, várias pessoas. Para este caso eu tive uma solução, mas e pros demais? Vocês entendem, meus amigos daí, como isso é chato? Ter essa percepção de que não sei o que digo?

Teve um dia aí que colocaram duas carradas, uma de barro e uma de areia lado a lado perto da biblioteca central da Unicamp. Pensei: vão construir alguma coisa aqui. E para mim, continuariam sendo uma carrada de barro e outra de areia se não tivessem pregado uma plaquinha no chão explicando que aquilo era uma intervenção artística no campus batizada de alguma coisa como "a origem da vida". Aliás, mesmo assim, continuou sendo o que eu pensei no começo, só que agora risível.

Viram aí, como eu não conseguiria dizer o que quis pra que vocês entendessem se não tivesse usado tão normalmente a palavra "carrada"? Já pensou se eu usasse "uma porção de areia e outra de barro", como dizem os de cá? Não! (E eu quis dizer "Nan!"). Seria muito leso, uma porção... Em compensação, quando me perguntaram, vi que não sei de onde vem o termo "carrada".
Ou melhor, nunca precisei me preocupar com isso.

É porque me falha a memória nesse instante, mas já me vi fazendo esse tipo de pergunta pra muitas palavras. O intuito, eu acho, é tentar falar na língua dos outros. E como aqui as palavras usadas pelo povo parecem significar somente o que o dicionário significa, eu penso que o caminho é esse. Pergunta-se muito aqui sobre "o que isso quer dizer?" como alguém que olha pra você e fala: me explique esse conceito.

Outra coisa! (Que inclusive já conversei com Turuna sobre). Não são apenas esses termos esquisitos, que entrariam no léxico com a alcunha de gíria. Acontece de eu falar palavras simples, que todos usam, que são faladas no Jornal Nacional, e elas não serem entendidas dentro de um contexto que radicaliza seus significados. Isso talvez porque dê conflito com a programação linguísitca daqui.

Não sei nada desse assunto como o sabem Turuna Tântalo e Magister Ludi. Peço a vocês dois, entendidos, que digam alguma coisa. Como naquela peleja conhecida de nós, "desate o nó que Romano deu".