sexta-feira, 7 de junho de 2013

Nota de rodateto

Coisa de alguns anos atrás, quando estudava em Campinas, uma amiga de Goiás, que fazia Doutorado, e eu conversávamos sobre A Montanha Mágica, e ela me perguntava sobre a clássica passagem com que todo sujeito que algum dia leia esse romance precisa topar, qual seja, o encontro entre o jovem alemão Hans Castorp e a russa de “olhos quirguizes” Clawdia Chauchat. O inconveniente para a maioria dos leitores é que nossas edições brasileiras não trazem uma tradução, quer fosse pelo menos como nota de fim de livro, do diálogo entre ambos, quase todo falado em Francês – com pequenos intervalos em Alemão. E é um diálogo longo que não justifica os editores ignorarem a necessidade de uma tradução. Pois bem. Dizia a essa amiga, na ocasião, que tive que pular quase a totalidade da conversa, aproveitando apenas aquilo que para a trama seria relevante, a partida de Mme. Chauchat no dia seguinte ao encontro. Ela lamentou me dizendo que eu perdia muita coisa, já que o diálogo era belíssimo. Era fácil pra ela, afinal, ela falava Francês. Ano passado, quando relia A Montanha Mágica, foi a mesma coisa, pulei tudo. Pura preguiça de fazer uma tradução ao menos bizarra pelo Google Translate. Como esse é um romance que você jamais esquece, você sempre precisa voltar à montanha, aí essa semana deu um estalo de procurar na internet se alguma alma nobre, que houvera se apiedado de pessoas na mesma situação que eu, traduzira a passagem. E sim, uma historiadora, Mariana Silveira, foi generosa conosco. Só então eu percebi, como de fato me disse outrora minha amiga, o quão fantástico é o diálogo. O livro se tornou ainda mais belo do que sempre me pareceu. O trabalho da colega historiadora foi providencial. Mas como eu me dou a certos arroubos de pachorra, e parece que historiador é dado a ser pachorrento mesmo, eu decidi completar todo o fim do capítulo desde o momento em que Hans e Clawdia sentam-se um diante do outro, acrescentando os trechos que foram suprimidos por não estarem em Francês. E aí, por meio desta tradução, reli todas as falas originais, o que me permitiu enxergar alguns problemas. Pouquíssimos momentos ficaram confusos, outros simplesmente foram esquecidos – ou talvez não estivessem presentes na edição de que Mariana Silveira se valeu, a do Círculo do Livro; a minha é da Nova Fronteira, porém ambas com tradução de Herbert Caro. Eu não corrigi ninguém, eu apenas acrescentei e dei uma revisada segundo o contexto da história e do instante da conversa. Se alguém tiver também a paciência de pôr lado a lado nossos textos, verá algumas diferenças sim. A mais significativa, já posso adiantar, é com relação ao uso dos pronomes para tratamento, coisa que eu persegui obstinadamente na minha versão. Como se vê, Clawdia e Hans estão se falando pela primeira vez desde que Hans reconheceu Clawdia. Então seria regra se tratarem no Francês por vous, que denota respeito, afastamento. O uso do tu nessa língua, como está no original, significa intimidade entre os falantes. No Espanhol, por exemplo, o mesmo fenômeno ocorre, quando se usa usted respeitosamente e intimamente. Aí foi quando pensei sobre como resolver esse negócio no nosso Português brasileiro. A princípio, bastou que eu trocasse o vous pelos o senhor/a senhora. Mas e quanto ao tratamento de proximidade? Acho que qualquer pessoa responderia para que eu usasse o você, já que o senhor/a senhora é quase a nossa forma de distanciamento. Mas aí eu resolvi interferir. Usei o nosso tu. Sabemos que no Brasil é comum que esse pronome, na comunicação do dia-a-dia, denote um afastamento nem tanto respeitoso ou por desconhecimento que se teria de um interlocutor, como de fato causam o senhor/a senhora, mas sim de demarcação de posição frente ao acesso formal da instrução. Certo? Certo. Mas quem tiver a paciência de ler o texto da situação aqui encontrada, verá que o uso do tu acentua o caráter apaixonado e delirante de Hans Castorp. Quem nunca escreveu um bilhete, ou carta de amor – como as outras, ridículas – sem se dirigir ao objeto de amor por tu? Nunca se saberá ao certo, mas a sibilante sempre pareceu mais passional. Perguntar você me ama? jamais será tão intenso como tu me amas? Optei por seu uso tão somente por uma convicção própria, o que seria um erro. Mas acho que foi uma escolha da mesma natureza da de Hans, já que a ele lhe pareceu o Francês a língua mais adequada do que o Alemão para delirar como em sonho.
Pensei em contextualizar tudo para o leitor que não leu ainda o livro, para que se situasse melhor apenas com esse diálogo. Mas aí já seria tagarelice demais e eu não ouvi meu nome ser chamado pra compor a mesa-redonda. Vou só tentar instigar alguém a ler esse texto enorme aí abaixo (isto é, se alguém já chegou até aqui). Até porque eu espero causar um efeito justamente em quem não leu, o efeito do estranhamento das falas delirantes de Hans Castorp. Tudo o que Clawdia escuta de Hans os leitores já sabemos de onde vem, mas ela absolutamente não, por isso o que ele diz parece-lha loucura. Havia sete meses que Hans Castorp estava no Sanatório Internacional Berghof e, destes, mais ou menos há seis que estava completamente louco de amor por Clawdia Chauchat, uma russa de nome afrancesado, que a princípio se lhe apresentara bárbara e mal-educada. Eis o que se passa: era noite de terça-feira de Carnaval, embora o título da seção do capítulo seja Noite de Walpurgis (o que adquire simbologia plena em todo o contexto) e todos os doentes que não conheceram Alexander Fleming brincavam à beira do abismo. É quando, durante um joguinho, Hans Castorp precisa de um lápis. Esse bendito lápis, e todo um motivo de ordem psicanalítica, por assim dizer, conduzem Hans a Clawdia. O texto abaixo começa no instante em que se sentam para conversar. Seu êxtase se manifesta num desejo torrencial de dizer tudo de uma só vez àquela gata quente, tudo que acumulou esse tempo todo, desde que a reconheceu. Sobre esse lance de reconhecer, que resulta numa combinação muito bonita dentro do romance, e que quem o leu sabe do que se trata, sobre isso não direi nada além – e na verdade já disse tudo – de que a chave pra compreendê-lo na obra de Thomas Mann está no motif que aparece noutra novela sua, Tonio Kröger; ou mesmo outros motifs, como a insistente tentativa de figuração/romanceamento da própria biografia através dos elementos exóticos e mestiços de seu sangue, oriundos de sua mãe brasileira, Júlia da Silva Bruhns, enfim, que estão espalhados pelas suas obras. É… pagar uma disciplina na pós-graduação sobre Thomas Mann tinha que servir ao menos pra tagarelar. Gostaria de mandar um abraço fraterno ao Estado de São Paulo, na figura do IEL-Unicamp, e ao MEC, na figura da CAPES.
Eu sei que ficou muito texto, tudo muito longo. Mas A Montanha Mágica é um tratado filosoficamente vívido da experiência do tempo. Então, eu aviso logo aos leitores que desistam de tentar ler tudo em menos de 7 minutos. Não sei se em menos de 7 horas seja possível… o ideal é que esqueçam de contar o tempo. Mas pelo amor de Deus, que não levem 7 dias…
Bom, e ontem, 06 de junho, foi aniversário de Paul Thomas Mann.



Noite de Walpurgis (tecla SAP)

Se precisar, leia a postagem logo acima...

Todos os textos em itálico estão originalmente em Francês.




(…) Colocou, para Mme. Chauchat, uma poltrona forrada de pelúcia, no lugar que antes assinalara pantomimicamente. Para si mesmo apossou-se de uma cadeira de vima, de braços redondos, e que gemeu e rangeu, quando nela se sentou. Inclinou-se para Mme. Chauchat, apoiando os cotovelos nos braços da poltrona, com a lapiseira na mão e com os pés para trás, embaixo da cadeira. Ela, por sua vez, afundou-se no estofamento coberto de pelúcia; seus joelhos achavam-se muito elevados, mas apesar disso, cruzou as pernas e balançou um dos pés, cujo tornozelo, acima da margem do sapato de verniz preto, desenhava-se sob a seda igualmente preta da meia. À sua frente estavam sentadas outras pessoas, que se levantavam para dançar e cediam o lugar a outras, cansadas. Era um constante vaivém.
- Estás com um vestido novo – disse Hans Castorp, para ter o direito de olhá-la, e ouviu como ela respondia:
- Novo? Então conheces meu vestuário?
- Tenho ou não tenho razão?
- Tens, sim. Mandei fazê-lo aqui, recentemente, no Lukacek, na aldeia. Ele trabalha muito para as senhoras daqui. O vestido te agrada?
- Muito – respondeu ele, envolvendo-a mais uma vez no seu olhar, antes de baixar os olhos. – Queres dançar? – acrescentou.
- E tu, gostarias? – perguntou ela, sorrindo, com as sobrancelhas alçadas, ao que ele replicou:
- Gostaria, sim, se tivesses vontade.
- És mais levadinho do que eu pensava – observou ela, e quando ele se riu desdenhosamente, acrescentou: ­– Teu primo já se foi?
- Pois é, é meu primo – confirmou Hans Castorp sem necessidade. – Eu também notei que ele não está mais aqui. Acho que já se recolheu.
- É um homem jovem muito fechado, muito honesto, muito alemão.
- Fechado? Honesto? – repetiu ele. – Entendo o francês muito melhor do que falo. Queres dizer que ele é um pedante. Achas que os alemães são pedantes, nós Alemães?
- Nós zombamos de seu primo. Mas é verdade, vocês são um pouco burgueses. Vocês amam a ordem melhor que a liberdade, toda a Europa o sabe.
- Amar... amar... o que é isso? Falta uma definição a essa palavra. Um ama, outro possui, como nós dizemos proverbialmente – afirmou Hans Castorp e prosseguiu: ­ Nos últimos tempos meditei às vezes sobre a liberdade. Isto é: ouvi esta palavra com tanta frequência, que me fez refletir. Eu te direi em Francês o que pensei a respeito. Isso que toda a Europa chama de liberdade pode ser uma coisa tão pedante e tão burguesa em comparação à nossa necessidade de ordem – é isso!
- É divertido. É a teu primo que tu pensas em dizer coisas estranhas como essa?
- Não, é realmente uma boa alma, uma natureza singela, cujo espírito não corre nenhum perigo, tu sabes. Mas ele não é burguês, ele é militar.
- Não corre perigo? Repetiu ela com alguma dificuldade… – Tu queres dizer: uma natureza firme, certa de si mesma? Mas ele está seriamente doente, teu pobre primo.
- Quem te disse isto?
- Aqui a gente anda bem informada sobre os outros.
- O dr. Behrens te disse isto?
- Pode ser, me fazendo ver esses quadros (chapas de radiografia).
- Quer dizer: fazendo teu retrato!
- Por que não? Achaste bom, meu retrato?
- Mas sim, extremamente. Behrens restituiu exatamente tua pele, oh realmente, muito fielmente. Eu adoraria ser retratista, também, para ter a oportunidade de estudar tua pele como ele.
- Fala em Alemão, por favor!
- Oh, eu falo Alemão também quando falo Francês. É uma forma de estudo artístico e médico – em uma palavra: trata-se de “literatura”, tu compreendes. E então, não queres dançar?
- Não. Acho isso pueril. Discrição de médicos. Assim que Behrens voltar, todos cairão sobre as cadeiras. Isso será fortemente ridículo.
- Tens tanto respeito a ele?
- A quem? – disse ela, pronunciando a interrogação com uma brevidade exótica.
- A Behrens.
- Mas vai então com teu Behrens! Além disso falta espaço para dançar. E depois sobre o tapete... Vamos ver como dançam os outros.
- Pois sim, vamos – concordou ele, e pôs-se a olhar, sentado junto dela, com o rosto pálido; os olhos azuis que tinham a expressão pensativa do avô observavam os saracoteios dos enfermos disfarçados, no salão e na biblioteca. A Irmã Muda saltitava com o Joãozinho Azul; a sra. Salomon, fantasiada de cavalheiro engalanado, de casaca e colete branco, com uma camisa engomada de peito saliente, com um bigode pintado e com um monóculo, girava nos saltinhos altos dos seus sapatos de verniz, que, inauturalmente, saíam por baixo das calças de homem; seu par era o pierrô, cujos lábios luziam num vermelho de sangue no rosto caiado, e cujos olhos se pareciam com os de um coelho albino. O grego de mantilha requebrava suas pernas harmoniosas, revistas de ceroulas violeta, em torno de Rasmussen, decotado e resplandecente de lantejoulas escuras. O promotor público, no seu quimono, a sra. Wurmbrand e o jovem Gänser dançavam juntos, a três, mantendo-se abraçados, ao passo que a sra. Stör bailava com a sua vassoura que apertava contra o coração, e cujas crinas acariciava como se fossem a cabeleira hirsuta de um homem.
- Vamos, sim – repetiu Hans Castorp mecanicamente. Falavam baixinho, no meio dos sons do piano. – Vamos sentar-nos aqui e olhar como num sonho. Para mim, isto é um sonho, sabes? estarmos sentados assim – como um sonho singularmente profundo, pois é necessário dormir muito profundamente para sonhar dessa forma... Eu quero dizer: é um sonho bem conhecido, sonho de todo tempo, longo, eterno, sim, estar sentado perto de ti como agora, olha, é a eternidade.
- Poeta! – disse ela. – Burguês, humanista e poeta – eis um alemão ao completo, como deve ser.
- Eu não acredito que nós sejamos de tudo e nada como devemos ser – replicou ele. – Sob nenhum aspecto. Talvez não passemos de filhos enfermiços da vida, simplesmente.
- Bonita palavra. Diz-me então... Não teria sido difícil sonhar esse sonho mais cedo. É um pouco tarde que o Senhor resolve endereçar a palavra a seu pobre servo.
- Por que essas palavras? – disse ele. – Por que falar? Falar, discorrer, é uma coisa bem republicana, eu o concedo. Mas eu duvido que isso seja poético ao mesmo grau. Um de nossos hóspedes, que se tornou um pouco meu amigo, Senhor Settembrini...
- Ele lança sobre ti algumas palavras.
- Bem, é um grande falador, sem dúvida, ele gosta muito mesmo é de recitar belos versos – mas esse homem é um poeta?
- Eu não me lembro sinceramente de ter tido o prazer de conhecer esse cavalheiro.
- Eu o conheço bem.
- Ah! Tu o conheces?
- Como? Era uma frase indiferente, a que eu disse aqui. Eu, tu o percebes bem, eu não falo habitualmente o Francês. No entanto, para contigo eu prefiro essa língua à minha, pois para mim falar Francês é falar sem falar, de alguma forma – sem responsabilidade, ou como nós falamos no sonho. Tu compreendes?
- Um pouco.
- É suficiente... falar – continuou Hans Castorp – pobre paixão! Na eternidade, a gente não fala nada. Na eternidade, tu sabes, a gente faz como se imitando um pequeno porco: a gente pende a cabeça para trás e fecha os olhos.
- Nada mal, isso! Tu estás na tua casa na eternidade, sem nenhuma dúvida, tu a conheces a fundo. É necessário admitir que tu és um pequeno sonhador um tanto curioso.
- E ainda – disse Hans Castorp –, se eu tivesse falado mais cedo, teria sido necessário que eu te tratasse por “a senhora”!
- Bem, tens a intenção de me tratar por “tu” para sempre?
- Mas claro. Eu sempre te tratei por “tu” e assim te tratarei eternamente.
- É um pouco forte, por exemplo. Em todo caso, tu não terás por muito tempo a oportunidade de me tratar por “tu”. Eu vou partir.
A palavra custou a lhe penetrar a consciência. Em seguida, ele sobressaltou-se, lançando em redor de si olhares confusos, como faz quem é despertado de repente. Sua conversa desenvolvera-se com certa lentidão, porque Hans Castorp falava o francês de modo lerdo, como que numa meditação vacilante. O piano, que se calara durante algum tempo, voltou a ressoar, agora sob as mãos do rapaz de Mannheim, que substituíra o jovem eslavo e colocara na estante um álbum de músicas. A srta. Engelhart estava sentada a seu lado e virava as folhas. A assistência do baila já se tornara menos numerosa. Grande parte dos pensionistas parecia ter adotado a posição horizontal [no contexto da história, significa que se recolheram ao repouso]. Ninguém mais se achava nas poltronas à sua frente. Na biblioteca, alguns jogavam cartas.
- Que vais fazer? – perguntou Hans Castorp, consternado…
- Eu vou partir – repetiu ela, aparentemente surpreendida pelo seu aspecto estarrecido.
- Não é possível – disse ele. – Estás apenas brincando.
- Nem um pouquinho. Estou falando com a mais absoluta seriedade. Partirei.
- Quando?
- Ora, amanhã. Depois do jantar.
Um cataclismo de vastas dimensões produziu-se nele. Depois, disse:
- Aonde vais?
- Muito longe daqui.
- A Daghestan?
- Tu não estás mal instruído. Pode ser, por enquanto…
- Estás, então, curada?
- Quanto a isso... não. Mas Behrens acha que no momento não se pode fazer grande coisa aqui. É porque eu vou arriscar uma pequena mudança de ar.
- De maneira que voltarás?
- Isto não se sabe. Sobretudo não sei quando. – Quanto a mim, tu sabes, eu amo a liberdade antes de tudo e notadamente a de escolher meu domicílio. Tu não compreendes apenas o que é isso: ser obcecada pela independência. É de minha raça, talvez.
- E teu marido em “Daghestan” está de acordo? Tua liberdade?
- É doença que me a restitui. Já é a terceira vez que venho a esse lugar. Eu passei um ano aqui, dessa vez. É possível que eu volte. Mas aí então tu estarás bem longe há muito tempo.
- Achas, Clawdia?
- Meu primeiro nome também! Realmente tu levas bem a sério os costumes do Carnaval.
- Será que sabes até que grau estou doente?
- Sim... não... como a gente sabe estas coisas aqui. Tu tens uma pequena mancha úmida por dentro e um pouco de febre, não é?
- Trinta e sete e oito ou 9 à tarde – explicou Hans Castorp. – E tu?
- No meu caso, tu sabes, é um pouco mais complicado... não tão simples.
- Há alguma coisa nesse ramo das ciências humanas chamado medicina – Disse Hans Castorp – que a gente chama obstrução tuberculosa dos vasos linfáticos.
- Ah! Tu apontaste, meu bem, a gente logo vê.
- E tu?… Perdão. Deixa que agora te pergunte uma coisa, com insistência e em alemão: naquele dia, quando me levantei da mesa, para ir ao exame médico, faz seis meses… Tu te voltaste para me olhar… Ainda te lembras?
- Que pergunta! Já faz 6 meses.
- Tu sabias aonde eu ia?
- Certamente.
- Soubeste do Behrens?
- Sempre este Behrens!
- Oh, ele representou tua pele de maneira totalmente exata. É também um viúvo que possui um serviço de café bastante notável... Eu acredito que ele conhece teu corpo não somente como médico, mas também como adepto de uma outra disciplina das ciências humanas.
- Tu decididamente tens razão de dizer que falas como em sonho, meu amigo.
- Que seja... Deixa-me sonhar de novo após ter me despertado tão cruelmente por esse alarme da tua partida. Sete meses sob teus olhos...e ao presente, ou em realidade eu te conheci, tu me falas em partida.
- Repito que poderíamos ter conversado mais cedo.
- Terias gostado?
- Eu? Tu não me escaparás, meu pequeno. Trata-se de teus interesses. Tu estavas muito tímido para se aproximar de uma mulher a quem tu falas em sonho agora, ou será que havia alguém que te impediu?
- Eu te disse. Eu não te tratarei mais por “senhora”.
- Falsário! Responde então – este senhor, bom orador, este italiano que deixou a noite – o que ele te lançou?
- Eu não entendi absolutamente nada do que tu quiseste dizer. Incomodo-me muito pouco deste senhor, quando meus olhos te vêem. Mas tu esqueces... não teria sido tão fácil te conhecer nesse mundo. Havia ainda meu primo com quem estava ligado e que se inclina muito pouco a se divertir aqui: ele não pensa em nada a não ser voltar às planícies para tornar-se soldado.
- Pobre diabo. Ele está, de fato, mais doente do que ele pensa. Teu amigo italiano de resto não vai muito bem não.
- Ele mesmo o disse. Mas meu primo... Isso é verdade? Tu me apavoras.
- É bem possível que ele morra, se tentar ser soldado nas planícies.
- Que ele vá morrer. A morte. Palavra terrível, não é? Mas é estranho, esta palavra não me impressiona tanto hoje em dia. Era uma forma de falar bem convencional, quando dizia: “tu me apavoras”. A ideia da morte não me apavora. Ela me deixa tranquilo. Eu não tenho piedade – nem de meu bom Joachim nem de mim mesmo, entendendo que ele talvez vá morrer. Se for verdade, seu estado parece muito com o meu e eu não o acho particularmente imponente. Ele está moribundo, e eu estou apaixonado, bem...Tu falaste com meu primo no atelier de fotografia íntima [no caso, radiografia], antessala, lembras-te?
- Lembro-me um pouco.
- Então, nesse dia Behrens fez teu retrato transparente.
- Mas sim.
- Meu Deus! E tu o tens contigo?
- Não, eu o tenho no meu quarto.
- Ah, no teu quarto. Quanto ao meu, o tenho sempre dentro da carteira. Queres que eu mostre-o a ti?
- Muito obrigada. Minha curiosidade não é invencível. Este seria um aspecto muito inocente.
- Eu vi teu retrato exterior. Eu adoraria mais ainda ver teu retrato interior que está fechado dentro do teu quarto... Deixa-me pedir outra coisa! Talvez um senhor russo que mora na cidade venha te ver. Quem é? Com que objetivo este homem vem vê-la?
- Tu és belamente forte em espionagem, eu o confesso. E bem, eu respondo. Sim, é um compatriota sofrente, um amigo. Eu o conheci em uma outra estação balneária, já faz alguns anos. Nossa relação? Vamos lá: nós tomamos chá juntos, nós fumamos dois ou três “papiros”, e nós conversamos, nós filosofamos, nós falamos do homem, de Deus, da vida, da moral, de milhares de coisas. Aí está. Estás satisfeito?
- Da moral também! E o que é que pensaste, de fato, sobre a moral, por exemplo?
- A moral? Isso te interessa? Bem, parece que será necessário procurar a moral não na virtude, quer dizer, não na razão, na disciplina, nos bons modos, na honestidade – mas sobretudo no contrário, eu quero dizer: no pecado; se lançando ao perigo, ao que é nocivo, àquilo que nos consome. Parece-nos que é mais moral se perder e mesmo se deixar debilitar do que se conservar. Os grandes moralistas não são virtuosos, mas aventureiros no mal, nos vícios, nos grandes pecados que tentam nos inclinar cristianamente diante da miséria. Tudo isso deve te desagradar muito, não é?



Ele permanecia calado. Estava ainda sentado da mesma forma de antes, com os pés cruzados muito para trás, sob o assento. Inclinava-se para frente em direção à mulher reclinada com o tricórnio de papel. Tinha entre os dedos a lapiseira que pertencia a ela. Com os olhos tão azuis como os de Hans Lorenz Castorp, o jovem fitava a sala que se esvaziara. Os pensionistas haviam-se dispersado. O piano, no canto diagonalmente oposto, não deixava ouvir senão alguns nos suaves e espaçados, produzidos com uma mão só pelo enfermo de Mannheim, a cujo lado se achava a professora, folheando um tomo de músicas que tinha sobre os joelhos. Quando se interrompeu a conversa entre Hans Castorp e Clawdia Chauchat, o pianista cessou de tocar, deitando no colo também a mão que até então acariciava o teclado. A srta. Englehart prosseguiu estudando as notas. Os quatro únicos remanescentes da festa carnavalesca conservaram-se imóveis. Os silêncio prolongou-se por alguns minutos. Sob o seu peso baixaram-se lenta e cada vez mais profundamente as cabeças do par sentado junto do piano, a do jovem de Mannheim em direção ao piano, e a da srta. Engelhart para o álbum de músicas. Por fim, como se se tivessem posto secretamente de acordo, levantaram-se suavemente, nas pontas dos pés, e evitando lançar um olhar para o outro canto da sala, com a cabeça baixa e os braços rigidamente pendurados, sumiram-se o rapaz de Mannheim e a professora, pela sala de correspondência.
- Todo mundo se retira – disse Madame Chauchat. – Eram os últimos; já é tarde. Bem, a festa de Carnaval acabou. – E ergueu os braços a fim de tirar com as duas mãos o gorro de papel do cabelo arruivado, cuja trança cercava a cabeça qual uma coroa. – Sabe as consequências, senhor.
Mas Hans Castorp fez que não, com os olhos fechados, sem modificar, de resto, a sua posição.
- Jamais, Clawdia – respondeu. – Jamais eu te trataria por “senhora”, jamais na vida nem na morte, se é que se pode dizer assim; deveria ser possível. Essa forma de se dirigir a uma pessoa, que é aquela do Ocidente culto e da civilização humanitária, me parece fortemente burguêsa e pedante. Para quê, no fundo, a formalidade? A formalidade, é a pedantice ela mesma! Tudo o que tu disseste a respeito da moral, tu e teu compatriota sofrente – tu queres seriamente que isso me surpreenda? Por qual tipo de idiota tu me tomas? O que tu pensas de mim?
- É um sujeito que não dá muito a pensar. Tu és um bom homem conveniente, de boa família, de desejos tênues, discípulo dócil de seus preceptores e que voltará logo às planícies, para esquecer completamente que falou em sonho aqui e para ajudar seu grande país com seu trabalho honesto sobre os canteiros. Eis tua fotografia íntima, feita sem aparelho. Achas que estou certa, sim?
- Faltam-lhe alguns detalhes que Behrens teria encontrado.
- Ah, os médicos de hoje em dia, se eles soubessem….
- Tu falas como o Senhor Settembrini. E minha febre? De onde ela vem?
- Bem, é um incidente sem consequências graves e que passará rápido.
- Não, Clawdia, tu bem sabes que o que dizes aqui não é verdade, e tu o dizes sem convicção, eu estou certo disso. A febre do meu corpo e os batimentos do meu coração arrasam e fazem tremer os meus membros, é o contrário de um incidente, pois não é outra coisa – e seu rosto pálido, com os lábios trêmulos, inclinou-se ainda mais para o rosto da mulher – senão o meu amor por ti, sim, esse amor que me possuiu no instante em que meus olhos te viram, ou, sobretudo, em que eu reconheci, quando eu te reconheci – e foi ele, evidentemente, que me guiou a esse lugar...
- Que delírio!
- Oh! O amor não é nada se não for um delírio, uma coisa insensata, uma defesa e uma aventura pelo mal. Por outro lado, é uma banalidade agradável, perfeita para que façamos dos nossos planos pequenas canções possíveis. Mas quanto a isso de eu ter te reconhecido e reconhecido em ti meu amor – sim, é verdade, eu já te conhecia, antigamente, tu e teus olhos maravilhosamente oblíquos e tua boca e tua voz, com aquela tua fala – já uma vez, quando eu era estudante, eu te pedi teu lápis, para enfim te conhecer mundanamente, porque eu te amava irracionalmente, e é isso, sem dúvida são meu antigo amor por ti essas manchas que Behrens achou no meu corpo, e que indicam também que estava mal…
Seus dentes batiam. Enquanto ia divagando, retirou um pé de sob o assento rangente. Ao avançar esse pé, tocou o chão com o outro joelho, de maneira que se ajoelhava diante dela, com a cabeça baixa e o corpo todo trêmulo. – Eu te amo – balbuciou – eu te amei todo o tempo, pois tu és o sentido da minha vida, meu sonho, meu destino, meu eterno desejo...
- Vamos, vamos! – disse ela. – Se teus preceptores te vêem...
Mas Hans Castorp sacudiu a cabeça, desolado, com o rosto junto ao tapete, e respondeu:
- Eu não me importaria, eu não me importo com Carducci e a República eloquente e o progresso humano no tempo, pois eu te amo!
Ela acariciou-lhe suavemente com a mão os cabelos aparados da nuca.
- Pequeno burguês! – disse. – Belo burguês de pequena mancha úmida. É verdade que tu me amas tanto?
E arrebatado por esse contato, já sobre ambos os joelhos, com a cabeça deitada para trás e com os olhos fechados, continuou ele a falar:
- Oh, o amor, tu sabes... O corpo, o amor, a morte, esses três não se separam. Pois o corpo é a doença e a volúpia, e é ele que faz a morte, sim, eles são sensuais os dois, o amor e a morte, e seus terrores e sua grande magia! Mas a morte, tu compreendes, é, de um lado, uma coisa difamada, insolente, que nos faz corar e nos envergonha; e por outro lado é uma pulsação muito solene e muito majestosa – maior que a vida risonha de ganhar dinheiro e de encher a barriga – muito mais venerável que o progresso que tagarela pelo tempo – porque ela é a história e a nobreza e a piedade e o eterno e o sagrado que nos faz tirar o chapéu e andar com as pontas dos pés... Mesmo o corpo, ele também, e o amor do corpo, são uma relação indecente e prejudicial, e o corpo de superfície avermelhada e pálida por medo e humilhação de si mesmo. Mas também ele é uma grande glória adorável, imagem miraculosa da vida orgânica, santa maravilha da forma e da beleza, e o amor para ele, para o corpo humano, é mesmo um interesse extremamente humanitário e um poder mais educativo que toda a pedagogia do mundo!... Oh, encantadora beleza orgânica que não se compõe nem de tintura a óleo nem de pedra, mas de matéria viva e corruptível, cheia de segredo febril da vida e da podridão! Vê a simetria maravilhosa do edifício humano, os ombros e as ancas e os seios floridos de uma parte à outra sobre o peito, e as costelas arrumadas por pares, e o umbigo ao meio na moleza do ventre, e o sexo obscuro entre as coxas! Olha as omoplatas se movimentarem sobre a pele brilhante do dorso, e a coluna que desce na direção das nádegas frescas e luxuriantes, e os grandes galhos de vasos e nervos que passam do tronco aos ramos dos pulmões, e como a estrutura dos braços correspondem àquela das pernas. Oh, as doces regiões da junção interior do cotovelo e do joelho com sua abundância de delicadeza orgânica sobre suas almofadas de carne! Que festa imensa acariciar esses lugares deliciosos do corpo humano! Festa para morrer sem se queixar depois! Sim, meu deus, deixa-me sentir o cheiro da pele da articulação, sobre a qual a engenhosa cápsula articula secretamente seu óleo deslizante! Deixa-me tocar devotamente de minha boca a Artéria do fêmur que bate em frente à coxa e que divide mais abaixo as duas artérias da tíbia! Deixa-me sentir a exalação de teus poros e apalpar teus pelos, imagem humana de água e de albumina, destinada à anatomia do túmulo, e deixa-me perecer, os meus lábios nos teus!
Não abriu os olhos, depois de ter terminado de falar. Permaneceu sem se mover, com a cabeça deitada para trás, estendendo as mãos com a lapiseira de prata, estremecendo e vacilando sobre os joelhos. Ela disse:
- Tu és realmente um galã que sabe implorar de uma maneira profunda, no Alemão!
E lhe pôs na cabeça o gorro de papel.
- Adeus, meu príncipe de Carnaval! Tu terás uma crise de febre essa noite, eu ta predigo.
Com essas palavras, resvalou da cadeira, deslizou pelo tapete, rumo à porta, sob cujo umbral hesitou um instante, meio voltada, levantando um dos braços nus, com a mão a repousar no gonzo. Por cima do ombro disse baixinho:
- Não te esqueças de me devolver meu lápis.
E saiu.

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Excurso: no dia seguinte, antes de partir, Clawdia deu a Hans sua radiografia.



Mann, Thomas. A Montanha Mágica. Trad. Herbert Caro. – 2ª ed. – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000 (p. 457-469).
Com suporte da tradução dos trechos em Francês de Mariana Silveira em: http://agarrandooconceito.blogspot.com.br/2009/03/montanha-magica-thomas-mann-trechos-em.html
Com imagens do filme Der Zauberberg (1982), ao qual assiste quem quiser (Charles Aznavour pra interpretar Leo Naphta é inconcebível! Justamente Naphta!)