segunda-feira, 28 de julho de 2008

Das suposições

Não sei para quem continuo a escrever essas pequenas peças. Mas as escrevo. Sei que para mim
não é, ou pelo menos não pode ser: começo, depois apago, acho feio, acho banal, acho simplório, depois acho rebuscado demais... apago, desisto... Parece que há outro em mim a quem preciso satisfazer, compondo coisas que considera bonitas. Uma outra pessoa, que não é só uma parte, mas outro inteiro, dentro desse inteiro que já digo ser... Esse outro me apela que eu fale menos, depois de ter me obrigado a muito falar; que eu seja menos agressivo e mais silencioso, depois de ter acentuado bem o que chamo de opinião... Depois me exige gestos mais amenos e mais firmes, mesmo que isso pareça contraditório – mas, por vezes, n’alma da gente, só o contraditório faz sentido! São tantas vozes que tenho. Um espírito povoado. Não sei se me consola o fato de saber que assim é com as gentes todas. Toda pessoa é uma legião de outras pessoas. Todos estamos sendo outros a toda hora. De uma maneira mais superficial, isso poderia ser explicado com uma metáfora teatral, como se fôssemos atores que desempenham seus papéis perante uma platéia que é composta de outros atores desempenhando seus papéis perante nós que, nesse instante, representamos o papel de platéia... Somos cebolas: a cebola se veste de si mesma, ela é toda roupa, e por isso, não tem roupa, ela é o que veste. Nós somos nossa pele? Nós somos a pele que dizemos ter: palavra é roupa enfeitada que jogamos sobre o corpo, roupa que não escolhemos vestir... E essas são só suposições. Suposições que trocamos nos olhares, suposições que sabemos que todos temos, mas que nunca chegaremos a saber se todos realmente a temos.

sexta-feira, 11 de julho de 2008

TUDO É GRANDE SERTÃO (Cem anos de Guimarães Rosa)
Maria Clara Lucchetti Bingemer*


O centenário do grande escritor mineiro Guimarães Rosa não pode passar despercebido nesses “destaques” virtuais que são nossa coluna semanal aqui no Amaivos. E falar de Rosa é voltar a “Grande Sertão Veredas”, considerado por muitos críticos e escritores a obra maior em romance da literatura brasileira que tem sido, ao longo de sua história, ocasião de reflexões várias, provindas de diferentes campos e áreas do saber. De parte de escritores brasileiros de primeira grandeza, Grande Sertão tem sido louvado em todos os tons, comparado mesmo à Bíblia pela grande poeta mineira Adélia Prado: “Tudo é bíblias. Tudo é grande sertão”.
A saga do jagunço Riobaldo tem tido várias interpretações por parte de muitos e múltiplos estudiosos, que se debruçaram sobre a obra prima de Guimarães Rosa. Riobaldo aparece como o protótipo do ser humano,que se debate durante toda a sua vida, entre o bem e o mal, entre a graça e o pecado, entre Deus e o Diabo.
Ao longo deste embate que tem a forma exterior da violência e da brutalidade, da jagunçagem e seu cheiro de morte, entremeada e atravessada pelo amor e pela beleza e o desejo da santidade, Riobaldo faz na verdade a viagem – travessia – ao fundo de si mesmo. E no si mesmo encontra o outro e faz uma aproximação conclusiva do mistério de Deus e do ser humano. Defronta-se também com a pergunta pela existência do diabo, que vai, no imaginário rosiano, sintetizar a essência dos três males cuja tipologia procuramos descrever acima: mal físico, moral e metafísico. Na medida em que a presença do demônio , do diabo aparece latente no interior de Riobaldo, este vai sentindo que esta se incorpora no humano e o suspende sobre um abismo de onde se insinuam todos os matizes do mal. Daí acontece o confronto inevitável entre o ser humano e Satanás, onde o humano se verá a braços com a própria vacuidade de sentido.
A opção de Riobaldo pelo tornar-se jagunço, empunhar armas, ferir e matar, se desenrola ao mesmo tempo em que cresce, paralelamente, o amor por Diadorim, que confunde e quase exaspera o macho Riobaldo. O ser humano que é Riobaldo se confunde ao perceber no fundo de si mesmo , entrelaçadas, as pulsões da vida e da morte, da belicosidade que o faz participar do bando de jagunços que mata e ao mesmo tempo da compaixão que o faz interceder pela vida de Joca Ramiro quando este é levado a julgamento depois de derrotado por Hermógenes e Ricardão.
Confunde-se também e sobremaneira ao constatar que o que sente por Diadorim é mais do que companheirismo, amizade. É amor e isto não é sentimento que em sua visão de mundo um homem possa sentir por outro. O temor que esse sentimento provoca é magistralmente descrito por Rosa, na esteira de tantos outros pensadores na história da humanidade. Trata-se da atitude do ser humano cada vez que se defronta com aquilo que pertence a uma esfera maior e mais além do si mesmo: a esfera do Transcendente, do Sagrado, do Santo. O homem criado e limitado, diante da epifania do Absoluto que se reveste de mediação ao alcance dos sentidos, sente atração irresistível e temor irrefreável. O mistério fascinante é também mistério tremendo e é diante dele que balança e se faz frágil todo o universo rosiano.
O numinoso, o mistério atrai irresistivelmente Riobaldo ao mesmo tempo em que o amedronta. E esse mistério é Diadorim e os sentimentos que nele provoca, Diadorim que é um lindo moço de olhos verdes, de seu mesmo sexo. Diadorim que ele ama como um homem pode amar loucamente uma mulher.
Ao lado disso, Riobaldo volta-se para o que o atrai do outro lado, tentado a fazer a mesma travessia que Hermógenes: vender sua alma ao diabo, fazer com ele um pacto a fim de ganhar vitórias nas batalhas como o mesmo Hermógenes conseguia. Invoca o diabo, acreditando ser ouvido. E lança-se na luta encarniçada para vencer e matar o bando rival e os assassinos de Joca Ramiro.
Qual novo Fausto, Riobaldo parte para o combate com a convicção de que o diabo o levará à vitória. O sertão, o grande sertão é seu deserto, onde aluta decisiva é travada. Mas nesse deserto sem caminho ele encontrará não o sem sentido, mas veredas. Ao se encaminhar para a batalha final, mal sabe que o que ali o espera não é a vitória da jagunçagem, mas a revelação dramática do amor.
A revelação do amor na morte da mulher que Diadorim revela ser redime Riobaldo, que decide abandonar a jagunçagem e recebe outra revelação: o demônio não existe. O lugar onde fizera seu pacto com o diabo, Veredas Mortas, na verdade se chama Veredas Altas. Ou seja, o lugar do demônio não existe. Portanto, este também não existe. O começo da descrença no demônio vai ser o caminho pelo qual Riobaldo vai poder entrar em uma nova via de conhecimento e compreensão do mundo. Um mundo onde nada é fixo, tudo é “ de incerto jeito”, tudo muda e se transforma e as pessoas ainda não foram terminadas.
Essa travessia por dentro do misterioso amor que só mostra seu verdadeiro rosto na morte terá igualmente como conseqüência a percepção por parte de Riobaldo que o demônio como síntese do mal, em sua essência é nada. Sendo ou pretendendo ser anulação do ser, o demônio propriamente não existe. Riobaldo que logo no começo do livro afirma já haver perdido a crença no demônio, “mercês de Deus” acabará afirmando que o diabo não passa de um estado de espírito do próprio ser humano. O diabo será o avesso e o ruim do humano. Sem as maldades do próprio homem não há demônio!
Embora na obra rosiana o ambíguo e o nebuloso dominem; embora Riobaldo se mostre ambivalente e chegue a duvidar mesmo da existência ou não existência do Demônio, a narrativa do autor vai tornando claro que na verdade ele não efetivou o pacto, uma vez que é senhor da sua linguagem e vai construindo narrativa que relata ao doutor que o escuta. Riobaldo não foi dominado pelo demônio que emudece e que impede o falar coerente. Portanto, não está possuído pelo demônio, ao menos na perspectiva do presente da narração. Ao narrar sua tentativa de pacto com o demônio, Riobaldo reconhece que só obteve como resposta um grande silencio, um silencio particularmente eloqüente: “O senhor sabe o que o silencio é? E a gente mesmo, demais.”
Portanto, se pacto não houve, a responsabilidade pelos atos cruéis e violentos cometidos durante sua vida de jagunço não pode ser atribuída ao diabo e à possessão demoníaca. As forças obscuras e turvas nascem na verdade no interior do próprio indivíduo. E assim vai afirmar Riobaldo: “...o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem – ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos. Solto, por si, é que não tem diabo nenhum.”. O homem humano capaz do mal e da crueldade, da violência e da maldade é o mesmo capaz do dom de si e do amor até a morte, sem gozo e só com paixão padecida, como encarnado em Diadorim. Morada da eterna luta entre bem e mal, pecado e graça, o ser humano do qual Riobaldo é protótipo segue seu caminho, pelo grande sertão que é a vida, escolhendo que veredas tomar na sua viagem em busca do sentido, de resposta para suas indagações.
Parece ser que Guimarães Rosa disso sabe bem, ao escrever seu magnífico romance, que situa a origem do mal no interior obscuro do próprio ser humano ou nas forças sociais de domínio por ele criadas. No fundo, o pacto com o diabo é estratégia do romancista para afirmar sua não existência e responsabilizar o ser humano pelo que acontece no mundo que lhe foi dado pelo Criador e que ele é, por Este, chamado a transformar.
Por tudo isso e muito mais, é digno e justo celebrar Guimarães Rosa, esse gênio maior das letras, no ano de seu centenário! Amém!

* Maria Clara Lucchetti Bingemer, teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio, e Diretora Geral de Conteúdo do Amai-vos. É também autora de "A Argila e o espírito - ensaios sobre ética, mística e poética" (Ed. Garamond), entre outros livros.

quarta-feira, 2 de julho de 2008

Folhas do Álamo: cuidados com a saúde do texto

Definitivamente, quando se inicia a leitura de um livro, a última coisa com a qual o leitor precisaria se preocupar seria com erros de ortografia, coisa que deveria ser posta para fora do trabalho desde o momento em que está pronto para publicação. Encontrar algo assim é algo que macula, causa má impressão à obra. Ao tomar um livro é como se o leitor falasse ao autor: bem, meu camarada, vejamos o que você tem a me dizer. Nada deve atrapalhar essa conversa, de forma que o autor não pode se expressar mal sob pena de ser subestimado pelo seu leitor. Já imaginaram? Para entender o que alguém escreve primeiro ter que corrigi-lo? Mas infelizmente, de certo modo, é por onde começarei a minha crítica.

Se a proposta do escritor incluísse e contasse com esses erros como recurso de estilo, o que demonstra controle sobre o texto, isso não seria um problema. Mas não é o que ocorre em Folhas do Álamo (Editora Idéia, 2007, 103p.), de Misael Nóbrega, quando nos parece que a intenção da escrita é ser formal e culta. O livro poderia até ser salvo dessa crítica se os erros fossem poucos, o que seria tomado como falha tipográfica, de digitação, ou aquele tipo de erro que ninguém viu que cometeu, nem mesmo o autor, mas não é o que se observa. Equívocos estão aqui e ali no trabalho, desde o primeiro texto, “o que não posso prevê (sic) é a verdade dos outros (somos inventivos demais)” (p. 19), até os últimos, “O meu desgosto é breve. É um tumor na alma. Ele, simplesmente, dar (sic) o ar da graça.” (p. 87). Esse tipo de erro é a velha confusão de uso entre infinitivo do verbo e sua terceira pessoa do singular no presente do indicativo. Há ainda diversos empregos mal sucedidos da crase e estes se encontram por todo o livro ao ponto de ser impossível citar todos em função do tamanho desse artigo e a maioria dos erros está ligada a um uso estranho da transitividade de alguns verbos e a necessidade ou não do artigo feminino. Na p. 30, entendemos contextualmente que o verbo “assistir” está presente na intenção de ver, observar: “assisto, passivamente, os estorvos da razão”; mas a maneira escrita não corresponde a essa idéia. Nessa mesma página encontramos “Um processo de degradação se desencadeia à partir da inveja e se torna débil, o homem” (até meu Microsoft Word sublinhou de verde esse “à” e quando clico com botão direito do mouse, ele diz “Neste caso, não se usa crase”. O Word sugere muita correção estúpida, é verdade, mas aqui ele está certo).

Confesso que é muito chato ser o tipo de carrasco que se atém a esses detalhes porque afinal isso é dever do escritor e também da editora que deve submeter tudo a uma avaliação minuciosa (e esse conselho vale para todos os nomes de escritores atuais de Patos, sobretudo os mais conhecidos juntamente com Misael Nóbrega, pois apresentam em suas obras erros da mesma natureza: Wandecy Medeiros e José Mota Victor). Muitos podem dizer que sou muito mesquinho e ruim ao apontar esses erros, já que eu não discuto aqui o conteúdo da coisa. Mas meu altruísmo é pequeno. A questão é que há muitos casos em que certos empregos da crase, uso das vírgulas, parênteses, reticências, travessões, ponto-e-vírgula, dificultam e muito a compreensão do que está escrito! Já deixa de ser erro de ortografia para ser falha semântica. E aí, como o leitor poderá interpretar se sequer consegue entender? Algumas construções com a crase podem ser admissíveis poeticamente falando (e meu altruísmo é pequeno, ora vejam só!), mas no texto não há um terreno propício que segure essas construções. P. 38: “É não admitindo a fraqueza que se imagina à tolerância.” P. 55: “De comprida, a marcha passou à impiedosa.” P. 69: “Somos indignos, por não sustentarmos às nossas próprias epístolas.” P. 93: “Não permito que transplantem às minhas partes.” Nestes casos há sim problemas na expressão do que o texto quis dizer.

Folhas do Álamo banaliza os sinais gráficos de ritmação da leitura com uso excessivo e indiscriminado, empobrecendo a cadência das palavras. Outra coisa que gera dificuldade para o leitor é a maneira como o autor trabalha a construção de parágrafos. Passei alguns minutos me esforçando para entender certas construções não pela complexidade da idéia, mas tentando saber qual era a própria idéia. Misael se vale das palavras ignorando por vezes o fato do que elas significam não isoladamente, porque de fato nada significam, mas em conjunto com as outras. Acontece, no entanto, de montar seu discurso seqüenciando vocábulos, apenas, não atento ao fato de que simplesmente juntos podem também não dizer coisa alguma, ou ainda de terem dito algo onde o emprego daquelas palavras foi gratuito. Concordem ou não, mas talvez seja esse o termo que define melhor o uso das palavras nas construções dos textos do autor: gratuidade. O encadeamento do que é dito é feito com palavras que, somadas ao fim de uma linha, de um parágrafo, enfim, da leitura, o resultado é zero. Cada palavra escrita abre a possibilidade de se dizer algo, porém imediatamente o autor insere outra que já abre outra possibilidade e assim continua, ad infinitum – ou até que o texto termine e você fique com a sensação de que nada leu de conclusivo. Além disso, alguns usos de palavras também são feitos sem critério inclusive do que significam de forma isolada, como no caso do verbo “convalescer” que aparece na frase “Filósofos, físicos, médicos, poetas… convalesceram por causa de suas ‘heresias’” (p. 82). No contexto da coisa não há como negar que o verbo é usado com o mesmo sentido de “definhar”, “acabar”, “fenecer”. Mas o que significa “convalescer” é muito distinto.

Noutros momentos, o texto é legível, a idéia é completa na crônica/aforismo inteira. Ou seja, que Folhas do Álamo, apesar desses desvios, teve e tem alguma intenção no que se prestou a dizer. No entanto, e isso é uma fala subjetiva, de meu gosto, não foi um livro que me tocou. Não apresenta uma força que imprima a necessidade de reflexão do que existe ali para além do momento da leitura (e isso é uma constante em autores como os outros dois citados acima). Mas também não exigiremos muito. Por hora, seria indispensável a Misael Nóbrega estar atento a estas sugestões, buscar principalmente um cuidado no uso das palavras, cercá-las bem para que elas signifiquem melhor no seu texto. Alcançar em todos seus textos aquilo que em alguns de Folhas do Álamo ele consegue: segurar a idéia até o final, sem atropelos ou construções confusas. Somos bem-intencionados nesta crítica e, depois dela, temos esperanças de que a escrita de Misael Nóbrega convalesça bem.

terça-feira, 1 de julho de 2008

CONVITE AO VÔO

Moro no longe! E o que publico nesse blog são as boas novas - os evangelhos - da terra onde descansa-se da loucura diária. O texto abaixo foi escrito pelo Eduardo Galeano, amigo que me visita diariamente.




Embora não possamos adivinhar o tempo que será, temos, sim, o direito de imaginar o que queremos que seja. Em 1948 e em 1976, as Nações Unidas proclamaram extensas listas de direitos humanos, mas a imensa maioria da humanidade só tem o direito de ver, ouvir e calar. Que tal começarmos a exercer o jamais proclamado direito de sonhar? Que tal delirarmos um pouquinho? Vamos fixar o olhar num ponto além da infâmia para adivinhar outro mundo possível:
o ar estará livre de todo o veneno que não vier dos medos humanos e das paixões humanas; nas ruas os automóveis serão esmagados pelos cães; as pessoas não serão dirigidas pelos automóveis, nem programadas pelo computador; nem compradas pelo supermercado, nem olhadas pelo televisor; o televisor deixará de ser o membro mais importante da família e será tratado como o ferro de passar e a máquina de lavar roupa;
as pessoas trabalharão para viver, em vez de viver para trabalhar; será incorporado aos códigos penais o delito da estupidez, cometido por aqueles que vivem para ter e para ganhar, em vez de viver apenas por viver, como canta o pássaro sem saber que canta e como brinca a criança sem saber que brinca;
em nenhum país serão presos os jovens que se negarem a prestar serviço militar, mas irão para a cadeia os que desejarem prestá-lo; os economistas não chamarão nível de vida de nível de consumo, nem chamarão qualidade de vida a quantidade de coisas;
os cozinheiros não acreditarão que as lagostas gostam de serem fervidas vivas; os historiadores não acreditarão que os países gostam de ser invadidos; os políticos não acreditarão que os pobres gostam de comer promessas;
ninguém acreditará que a solenidade é uma virtude e ninguém levará a sério aquele que não for capaz de deixar de ser sério; a morte e o dinheiro perderão seus mágicos poderes e nem por falecimento ou fortuna o canalha será transformado em virtuoso cavaleiro; ninguém será considerado herói ou pascácio por fazer o que acha justo em lugar de fazer o que mais lhe convém;
o mundo já não estará em guerra contra os pobres, mas contra a pobreza, e a indústria militar não terá outro remédio senão declarar-se em falência; a comida não será uma mercadoria e nem a informação um negócio, por que a comida e a informação são direitos humanos; ninguém morrerá de fome, porque ninguém morrerá de indigestão;
os meninos de rua não serão tratados como lixo, porque não haverá meninos de rua; os meninos ricos não serão tratados como se fossem dinheiro, porque não haverá meninos ricos; a educação não será privilégio de quem possa pagá-la; a polícia não será o terror de quem não possa pagá-la; a justiça e a liberdade, irmãs siamesas condenadas a viverem separadas, tornarão a unir-se, bem juntinhas, ombro contra ombro;
uma mulher, negra, será presidente do Brasil, e outra mulher, negra, será presidente dos Estados Unidos da América; e uma mulher índia governará a Guatemala e outra o Peru; na Argentina, as loucas da Praça de Mayo serão um exemplo de saúde mental, porque se negaram a esquecer dos tempos da amnésia obrigatória;
a Santa Madre Igreja corrigirá os erros das tábuas de Moisés e o sexto mandamento ordenará que se festeje o corpo; a Igreja também ditará outro mandamento, do qual Deus se esqueceu: "Amarás a natureza, da qual fazes parte"; serão reflorestados os desertos do mundo e os desertos da alma; os desesperados serão esperados e os perdidos serão encontrados, porque eles são os que se desesperam de tanto esperar e os que se perdem de tanto procurar;
seremos compatriotas e contemporâneos de todos que tenham aspiração de justiça e aspiração de beleza, tenham nascido onde tenham nascido e tenham vivido quando tenham vivido, sem que importem nem um pouco as fronteiras do mapa ou do tempo;
a perfeição continuará sendo um aborrecido privilégio dos deuses; mas, neste mundo confuso e fastidioso, cada noite será vivida como se fosse a última e cada dia como se fosse o primeiro.