quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

O Outro


O fato ocorreu no mês de fevereiro de 1969, ao norte de Boston, em Cambridge. Não o escrevi imediatamente, porque meu primeiro propósito foi esquecê-lo para não perder a razão. Agora, em 1972, penso que, se o escrevo, os outros o lerão como um conto e, com os anos, o será talvez para mim.

Sei que foi quase atroz enquanto durou e mais ainda durante as noites desveladas que o seguiram. Isto não significa que seu relato possa comover a um terceiro.

Seriam dez da manhã. Eu estava recostado em um banco, defronte ao rio Charles. A uns quinhentos metros à minha direita havia um alto edifício cujo nome nunca soube. A água cinzenta carregava grandes pedaços de gelo. Inevitavelmente, o rio fez com que eu pensasse no tempo. A milenar imagem de Heráclito. Eu havia dormido bem; minha aula da tarde anterior havia conseguido, creio, interessar aos alunos. Não havia ninguém à vista.

Senti, de repente, a impressão (que, segundo os psicólogos, corresponde aos estados de fadiga) de já ter vivido aquele momento. Na outra ponta de meu banco, alguém se havia sentado.

Teria preferido estar só, mas não quis levantar em seguida, para não me mostrar descortês. O outro se havia posto a assobiar. Foi então que ocorreu a primeira das muitas inquietações dessa manhã. O que assobiava, o que tentava assobiar (nunca fui muito entoado), era o estilo crioulo de La Tapera de Elias Regules. O estilo me reconduziu a um pátio lá desaparecido e à memória de Álvaro Mellián Lafinur, morto há muitos anos. Logo vieram as palavras. Eram as da décima do princípio. A voz não era a de Álvaro, mas queria parecer-se com a de Álvaro. Reconheci-a com horror.

Aproximei-me e disse-lhe:

- O senhor é oriental ou argentino?

- Argentino, mas desde o ano de 1914 vivo em Genebra - foi a resposta.

Houve um silêncio longo. Perguntei-lhe:

- No número dezessete da Malagnou, em frente à igreja russa?

Respondeu-me que sim.

- Neste caso - disse-lhe resolutamente - o senhor se chama Jorge Luis Borges. Eu também sou Jorge Luis Borges. Estamos em 1969, na cidade de Cambridge.

- Não - respondeu-me com a minha própria voz um pouco distante.

Ao fim de um tempo insistiu:

- Eu estou aqui em Genebra, em um banco, a alguns passos do Ródano. O estranho é que nos parecemos, mas o senhor é muito mais velho, com a cabeça grisalha.

Respondi:

- Posso te provar que não minto. Vou te dizer coisas que um desconhecido não pode saber. Lá em casa há uma cuia de prata com um pé de serpentes, que nosso bisavô trouxe do Peru. Há também uma bacia de prata que pendia do arção. No armário do teu quarto, há duas filas de livros. Os três volumes das Mil e Uma Noites de Lane, com gravações em aço e notas em corpo menor entre os capítulos, o dicionário latino de Quicherat, a Germania de Tácito em latim e na versão de Gordon, um Dom Quixote da casa Garnier, as Tábuas de Sangue de Rivera Indarte, o Sartor Resartus de Carlyle, uma biografia de Amiel e, escondido atrás dos demais, um livro em brochura sobre os costumes sexuais dos povos balcânicos. Não esqueci tampouco um entardecer em um primeiro andar da praça Dubourg.

- Dufour - corrigiu.

- Está bem. Dufour. Te basta, tudo isto?

- Não - respondeu. - Essas provas não provam nada. Se eu estou sonhando, é natural que eu saiba o que sei. Seu catálogo prolixo é totalmente vão.

A objeção era justa. Respondi:

- Se esta manhã e este encontro são sonhos, cada um de nós dois tem que pensar que o sonhador é ele. Talvez deixemos de sonhar, talvez não. Nossa evidente obrigação, enquanto isto, é aceitar o sonho, como aceitamos o universo e termos sido engendrados e olharmos com os olhos e respirarmos. - E se o sonho durasse? - disse com ansiedade.

Para tranqüilizá-lo e me tranqüilizar, fingi uma serenidade que certamente eu não sentia. Disse-lhe:

- Meu sonho já durou setenta anos. Afinal de contas, ao rememorar, não há pessoa que não se encontre consigo mesma. É o que nos está acontecendo agora, só que somos dois. Não queres saber alguma coisa de meu passado, que é o futuro que te espera?

Assentiu sem uma palavra. Prossegui, um pouco perdido:

  - A mãe está saudável e bem, em sua casa de Charcas y Maipú, em Buenos Aires, mas o pai morreu há uns trinta anos. Morreu do coração. Uma hemiplegia o liquidou; a mão esquerda posta sobre a mão direita era como a mão de uma criança posta sobre a mão de um gigante. Morreu com impaciência de morrer, mas sem uma queixa. Nossa avó havia morrido na mesma casa. Alguns dias antes do fim chamou-nos a todos e disse-nos: '"Sou uma mulher muito velha que está morrendo muito devagar. Que ninguém se perturbe por uma coisa tão comum e corrente". Norah, tua irmã, se casou e tem dois filhos. A propósito, em casa como estão?

- Bem. O pai sempre com seus gracejos contra a fé. Ontem à noite disse que Jesus era como os gaúchos que não querem se comprometer e que, por isto, pregava através de parábolas.
Vacilou e disse:

- E o senhor?

- Não sei o número de livros que escreverás, mas sei que são demasiados. Escreverás poesias que te darão uma satisfação não partilhada e contos de índole fantástica. Darás aulas como teu pai e como tantos outros de nosso sangue.

Agradou-me que nada perguntasse sobre o fracasso ou êxito dos livros. Mudei de tom e prossegui:

- No que se refere à História... Houve outra guerra, quase entre os mesmos antagonistas. A França não tardou a capitular; a Inglaterra e a América travaram contra um ditador alemão, que se chamava Hitler, a cíclica batalha de Waterloo. Buenos Aires, ao redor de mil novecentos e quarenta e seis, engendrou outro Rosas, bastante parecido com nosso parente. Em cinqüenta e cinco, a província de Córdoba nos salvou, como antes Entre Rios. Agora, as coisas andam mal. A Rússia está se apoderando do planeta; a América, travada pela superstição da democracia, não se resolve a ser um império. Cada dia que passa nosso país está mais provinciano, Mais provinciano e mais presunçoso, como se fechasse os olhos. Não me surpreenderia se o ensino do latim fosse substituído pelo do guarani.

Notei que mal me prestava atenção. O medo elementar do impossível, e no entanto certo, o aterrorizava. Eu, que não fui pai, senti por esse pobre moço, mais íntimo que um filho da minha carne, uma onda de amor. Vi que apertava entre as mãos um livro. Perguntei-lhe o que era.

- Os possessos ou, segundo creio, Os Demônios, de Fiódor Dostoiévski - me replicou não sem vaidade.

- Já o esqueci. Que tal é?

Nem bem o disse, senti que a pergunta era uma blasfêmia.

- O mestre russo - sentenciou - penetrou mais que ninguém nos labirintos da alma eslava.

Essa tentativa retórica me pareceu uma prova de que se havia acalmado.

Perguntei-lhe que outros volumes do mestre havia percorrido. Enumerou dois ou três, entre eles O Duplo.

Perguntei-lhe se, ao lê-los, distinguia bem as personagens, como no caso de Joseph Conrad, e se pensava prosseguir o exame da obra completa.

- A verdade é que não - respondeu-me com uma certa surpresa.

Perguntei-lhe o que estava escrevendo e disse que preparava um livro de versos que se chamaria Os hinos vermelhos. Também havia pensado em Os ritmos vermelhos.

- Por que não? - disse-lhe. - Podes alegar bons antecedentes. O verso azul de Rubén Darío e a canção gris de Verlaine.

Sem me fazer caso, esclareceu que seu livro contaria a fraternidade entre todos os homens. O poeta de nosso tempo não pode voltar as costas à sua época.

Fiquei pensando e perguntei-lhe se verdadeiramente se sentia irmão de todos. Por exemplo, de todos os empresários de pompas fúnebres, de todos os carteiros, de todos os escafandristas, de todos os que vivem nas casas de números pares, de todos os afônicos, etc. Disse-me que seu livro se referia à grande massa dos oprimidos e dos párias.

- Tua massa de oprimidos e párias - respondi - não é mais que uma abstração. Só os indivíduos existem, se é que existe alguém. O homem de ontem não é o homem de hoje, sentenciou algum grego. Nós dois, neste banco de Genebra ou Cambridge, somos talvez a prova.

Salvo nas severas páginas da História, os fatos memoráveis prescindem de frases memoráveis. Um homem a ponto de morrer quer se lembrar de uma gravura entrevista na infância; os soldados que estão por entrar na batalha falam do barro ou do sargento. Nossa situação era única e, francamente, não estávamos preparados. Falamos, fatalmente, de literatura; temo não haver dito outras coisas que as que costumo dizer aos jornalistas. Meu alter ego acreditava na invenção ou descobrimento de metáforas novas; eu, nas que correspondem a afinidades íntimas e notórias e que nossa imaginação já aceitou. A velhice dos homens e o acaso, os sonhos e a vida, o correr do tempo e da água. Expus-lhe esta opinião que haveria de expor em um livro anos depois.

Quase não me escutava. De repente, disse:

- Se o senhor foi eu, como explicar que tenha esquecido seu encontro com um senhor de idade que, em 1918, lhe disse que ele também era Borges?

Não havia pensado nessa dificuldade. Respondi, sem convicção:

- Talvez o fato tenha sido tão estranho que eu tenha tratado de esquecê-lo.

Aventurou uma tímida pergunta:

- Como anda sua memória?

Compreendi que, para um moço que não havia feito vinte anos, um homem de mais de setenta era quase um morto. Respondi:

- Costuma parecer-se com o esquecimento, mas ainda encontra o que lhe pedem. Estou estudando anglo-saxão e não sou o último da classe.

Nossa conversação já havia durado demais para ser a de um sonho. Uma súbita idéia me ocorreu.

- Eu posso te provar imediatamente - disse-lhe - que não estás sonhando comigo. Ouve bem este verso, que nunca leste, que eu me lembre.

Lentamente entoei o famoso verso:
  
L'hydre - univers tordant son corps ecaillé d'astres.

Senti seu quase temeroso estupor. Repetiu-o em voz baixa saboreando cada resplandescente palavra.

- É verdade - balbuciou - Eu não poderei nunca escrever um verso como este.

Antes, ele havia repetido com fervor, agora recordo, aquela breve peça em que Walt Whitman rememora uma noite compartilhada diante do mar em que foi realmente feliz.

- Se Whitman a cantou - observei - é porque a desejava e não aconteceu. O poema ganha se não adivinhamos que é a manifestação de um anelo. Não a história de um fato.

Ficou a me olhar.

- O senhor não o conhece - exclamou.- Whitman é incapaz de mentir.

Meio século não passa em vão. Sob nossa conversação de pessoas de leitura miscelânea e de gostos diversos, compreendi que não podíamos nos entender. Éramos demasiado diferentes e demasiado parecidos. Não podíamos nos enganar, o que torna o diálogo difícil. Cada um de nós dois era o arremedo caricaturesco do outro. A situação era anormal demais para durar muito mais tempo. Aconselhar ou discutir era inútil, porque seu inevitável destino era ser o que sou.

De repente, lembrei uma fantasia de Coleridge. Alguém sonha que atravessa o paraíso e lhe dão como prova uma flor. Ao despertar, ali está a flor.

Ocorreu-me artifício semelhante

- Ouve - disse-lhe -, tens algum dinheiro?

- Sim me replicou. - Tenho uns vinte francos. Esta noite convidei Simón Jichlinski ao Crocodile.

- Diz a Simón que exercerá a medicina em Carouge e que fará muito bem... agora, me dá uma de tua moedas.

Tirou três escudos de poeta e umas peças menores. Sem compreender, me ofereceu um dos primeiros.

Eu lhe estendi uma dessas imprudentes notas americanas que têm valor muito diferente e o mesmo tamanho. Examinou-a com avidez.

- Não pode ser - gritou. - Leva a data de mil novecentos e sessenta e quatro.

(Meses depois, alguém me disse que as notas de banco não levam data.)

- Tudo isto é um milagre - conseguiu dizer - e o milagroso dá medo. Os que foram testemunhas da ressurreição de Lázaro terão ficado horrorizados.

Não mudamos nada, pensei.

Sempre as referências livrescas.

Fez a nota em pedaços e guardou a moeda. Eu resolvi lançá-la ao rio. O arco do escudo de praia perdendo-se no rio de prata teria conferido à minha história uma imagem vívida, mas a sorte não quis assim.

Respondi que o sobrenatural, se ocorre duas vezes, deixa de ser aterrador. Propus a ele que nos víssemos no dia seguinte, nesse mesmo banco que está em dois tempos e dois lugares.

Assentiu logo e me disse, sem olhar o relógio, que já era tarde. Os dois mentíamos e cada qual sabia que seu interlocutor estava mentindo. Disse-lhe que viriam me buscar.

- Buscá-lo? - interrogou.

- Sim. Quando alcançares a minha idade, terás perdido a visão quase por completo. Verás a cor amarela, sombras e luzes. Não te preocupes. A cegueira gradual não é uma coisa trágica. É como um lento entardecer de verão.

Despedimo-nos sem nos termos tocado. No dia seguinte, não fui. O outro tampouco terá ido. Meditei muito sobe esse encontro, que não contei a ninguém. Creio ter descoberto a chave. O encontro foi real, mas o outro conversou comigo em um sonho e foi assim que pude me esquecer. Eu conversei com ele na vigília e a lembrança ainda me atormenta.

O outro me sonhou, mas não me sonhou rigorosamente. Sonhou, agora o entendo, a impossível data no dólar.


Jorge Luis Borges (tradução Lígia Morrone Averbuck)


sábado, 16 de fevereiro de 2013

O sonho de Gustav

(...)
Nesta noite teve um sonho terrível - se podem ser chamadas de sonhos experiências físico-espirituais, apesar de lhe terem acontecido no mais profundo sono e em completa independência e presença física, sem que se visse andando e presente no lugar dos acontecimentos, porque a cena era sua própria alma; estes romperam de fora para dentro sua resistência - uma resistência profunda e espiritual -, derrubando-a violentamente, transpassando-a, deixando sua existência, deixando a cultura de sua vida devastada, exterminada.

O medo foi o princípio, medo, desejo e uma curiosidade horrorizada pelo que devia vir. Imperava a noite e os seus sentidos escutavam; pois de longe se aproximavam tumulto e bulha, uma mistura de barulhos: um punhado de júbilos estridentes e de um certo uivar com o som prolongado de "u" - tudo isso impregnado por um toque de flauta soando mais alto e medonhamente doce, profundamente arrulhante, perversamente pertinaz que, de maneira importunamente vergonhosa, lhe enfeitiçava as entranhas. Ele sabia uma palava obscura, mas dando um nome ao que vinha: o deus estranho. Acendeu-se uma chama cheia de fumaça: então reconheceu terra montanhosa, parecida àquela em redor de sua residência de verão. E numa luz rompida, vindo de alturas revestidas de florestas, entre troncos de árvores e rochas cobertas de musgo, rolavam-se e precipitavam-se, girando para baixo: homens, animais, um enxame, um bando furioso - e inundaram a colina de corpos, chamas, tumulto e dança vertiginosa. Mulheres, gemendo, sacudiam tamborins sobre suas cabeças jogadas para trás, tropeçando sobre longos hábitos de pele que lhes pendiam da cintura; vibravam punhais nus e archotes cujas chamas se dispersavam; seguravam serpentes sibilantes pelo meio dos corpos ou erguiam, gritando, seus seios com ambas as mãos. Homens de chifre sobre a testa, abrigados em peles, hirsutos, curvavam o pescoço e erguiam braços e coxas, e faziam vibrar pratos de bronze e batiam raivosos sobre timbales, enquanto, com bastões envolvidos em folhas, rapazes nus espicaçavam bodes cujos chifres agarravam, deixando-se arrastar, jubilantes, pelos seus saltos. E os extasiados urravam o grito de consoantes suaves de prolongado "u" no fim, doce e selvagem ao mesmo tempo, como jamais fora ouvido um outro: aqui ressoava bramando para os ares como por veados e ali era reproduzido, multíssono, em louco triunfo; atiçavam-se com este grito para a dança e, arremessando os membros, nunca o deixaram silenciar. Mas tudo era penetrado e dominado pelo profundo e atraente da flauta. Não seduzia também a ele, o presenciador resistente, com persistência impudica, para a festa e a imoderação do sacrifício extremo? Grande era a sua repugnância, grande seu medo, honesto seu desejo de salvaguardar o seu eu até o fim contra o estranho, o inimigo do sereno e digno espírito. Mas o barulho e a gritaria, multiplicados pela rocha ecoante, cresciam, sobrepujavam, aumentavam, até a loucura arrebatante. Vapores comprimiam o cérebro, o cheiro penetrante dos bodes, a atmosfera de corpos arquejantes e um corpo de águas pútridas, e além destes ainda um outro, familiar: de feridas e de doença propagada. Com as batidas dos timbales seu coração retumbava, seu cérebro girava, acometido de raiva, de desvario, de atordoante voluptuosidade, e sua alma desejou unir-se à dança de roda do deus. O enorme símbolo obsceno, de madeira, foi descoberto e elevado: aí gritaram mais desenfreados a senha. Com espumas nos lábios, vociferavam, excitavam-se com gestos lascivos e mãos buliçosas, rindo e gemendo, empurravam os bastões espinhosos um na carne do outro e lambiam o sangue dos membros. Mas com eles, entre eles, estava agora o sonhador, submisso ao deus estranho. Eles eram ele mesmo, quando se atiravam sobre os animais, dilacerando e assassinando, e devoravam pedaços fumegantes; então, sobre o terreno de musgo revolvido, começou um ilimitado cruzamento, em sacrifício ao deus. E sua alma experimentou a luxúria e a loucura da decadência.
(...)

MANN, Thomas. A morte em Veneza. Trad. Maria Deling. São Paulo: Abril Cultural, 1979. (pp. 160-162)


sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

O delírio de Hans

Um parque estendia-se a seus pés, sob a sacada onde ele se encontrava; um vasto parque de luxuriante verdor, formado de árvores frondosas – olmos, plátanos, faias, bordos, bétulas – levemente matizadas quanto ao colorido da folhagem abundante, fresca, lustrosa, com as copas agitando-se num suave sussurro. Um ar delicioso, úmido, embalsamado pelas árvores, envolvia a região. Um aguaceiro quente vinha se abatendo, mas a chuva parecia iluminada. Até as alturas do céu via-se a atmosfera resplandecer de gotinhas cintilantes. Que beleza! Ah, esse sopro do torrão natal, o aroma e a plenitude da planície, depois de tão prolongada privação! O ar ressoava com vozes de aves, pios, silvos, gorjeios, chilidos e soluços, cheios de fervor, de graça e de doçura, sem que se enxergasse um único passarinho. Hans Castorp sorriu, respirando gratamente. E o quadro tornava-se ainda mais belo. Um arco-íris curvava-se sobre um lado da paisagem, um arco-íris completo e nítido, puro na sua magnificência, com o brilho úmido de todas as suas cores, que, untuosas como óleo, inundavam o verde espesso e reluzente. Mas isso parecia música, era como o som intenso de harpas, mesclado de flautas e violinos! O azul e o violeta, sobretudo, espalhavam-se maravilhosamente. Tudo se confundia com eles, como por um feitiço, transformando-se, evoluindo de modo sempre novo e cada vez mais belo. Lembrava aquele dia, anos atrás, quando Hans Castorp tivera ensejo de ouvir um cantor de fama mundial, um tenor italiano, de cuja garganta partiam sons de uma arte benéfica e de uma força abençoada, inundando os corações dos homens. Sustentara esse homem uma nota aguda, linda desde o começo; aos poucos, porém, de momento a momento, a harmonia apaixonada descortinara-se, ampliara-se, tomando volume, iluminara-se com um esplendor mais e mais deslumbrante. Um a um, os véus que antes ninguém percebera se haviam desfeito; caíra mais um, o último, revelando, segundo o pensamento de todos, a luz suprema, a luz mais pura, mas seguira outro e ainda outro – incrível! –, o derradeiro, desencadeando tamanha exuberância e de perfeição banhada em lágrimas, que um rumor surdo de arrebatamento, soando quase como um protesto ou uma objeção, elevava-se do seio da multidão. Ele próprio, o jovem Hans Castorp, fora tomado de soluços. E o mesmo lhe acontecia agora, em face dessa paisagem que se metamorfoseava, se desdobrava em progressiva transfiguração. O azul a pairar em toda parte... Os véus luzentes da chuva iam caindo. Eis que surgiu o mar, um mar, o mar do Sul, de um azul profundo e saturado, refulgindo de luzes argentinas, com uma belíssima enseada a abrir-se vaporosa, para um lado, enquanto o outro estava engastado em montanhas de azul cada vez mais pálido. No meio da baía emergiam ilhas, onde cresciam palmeiras e resplandeciam casinhas brancas por entre bosques de ciprestes. Oh, oh! Era demais. Ele não merecia tudo isso. Que bem-aventurança de luz, de absoluta pureza do céu, de frescor de águas ensolaradas! Hans Castorp jamais vira aquilo, nem coisa semelhante. Nas suas viagens de férias mal passara pelas regiões do Sul. Conhecia o mar áspero, o mar cinzento, ao qual se apegava com sentimentos vagos e pueris. Mas nunca chegara a ver o Mediterrâneo, Nápoles, a Sicília ou a Grécia. E todavia recordava-se. Sim, por estranho que pareça, o que Hans Castorp fazia nesse momento era reconhecer. “Ah, sim! É isso!”, exclamou nele uma voz, como se tivesse levado no seu coração, desde tempos imemoriais, às escondidas e sem confessá-lo a si próprio, toda essa alegria azul, irradiada pelo sol. E esses “tempos imemoriais” eram vastos, infinitamente vastos, tal e qual o mar que se abria à sua esquerda, ali onde o céu, num tom delicado de violeta, descia até às águas.

O horizonte era alto; o espaço dava a idéia de elevar-se, o qual se devia ao fato de Hans Castorp ver o golfo de cima, de certa altura. Em forma de promontórios abraçavam-no as montanhas coroadas de selvas; entravam no mar, retrocediam em semicírculo, do centro do quadro, até o ponto onde se encontrava o jovem e mais longe ainda. Era uma costa rochosa, em cujos degraus de pedra aquecidos pelo sol se achava acocorado. À sua frente inclinava-se a ribeira pedregosa, escadeada, coberta de musgos e brenhas, até uma praia plena, onde o cascalho, por entre os juncos, formava angras azuladas, pequenos portos e lagoas avançadas. E essa região banhada pelo sol, essas ribas de fácil acesso, essas bacias risonhas no meio de rochedos, bem como o mar até as ilhas distantes entre as quais iam e vinham embarcações – tudo estava povoado. Homens, filhos do Sol e do mar, mexiam-se ou repousavam em toda parte, uma humanidade bela e jovem, sensata e jovial, tão agradável de se ver que o coração de Hans Castorp se dilatava todo num sentimento amplo, quase doloroso, de amor.

Mancebos adestravam cavalos; corriam, com a mão no cabresto, ao lado dos animais que trotavam relinchando e sacudindo a cabeça; montavam-nos sem sela e forçavam-nos a entrar na água, batendo com os calcanhares desnudos os flancos da cavalgadura, enquanto os músculos das espáduas, sob a pele trigueira, jogavam ao sol. Os gritos que trocavam entre si ou dirigiam às montanhas tinham qualquer coisa de mágico. À margem de uma enseada que penetrava profundamente na terra firme, e cujas ribanceiras se espelhavam como num lago alpino, havia raparigas dançando. Uma delas, cujos cabelos atados na nuca tinham um encanto singular, estava sentada, com os pés enterrados numa concavidade do solo, e tocava uma flauta pastoril. Por cima dos dedos ágeis, seus olhos vagavam em direção às companheiras, que, nos seus largos e flutuantes vestidos, executavam os passos da dança, ora isoladas, sorridentes, com os braços abertos, ora aos pares, com as frontes graciosamente coladas uma na outra. Atrás das costas da flautista, costas alvas, longas, delgadas, que a posição dos braços tornava redondas, viam-se outras irmãs, sentadas ou em pé, de mãos dadas, conversando calmamente e contemplando a cena. À maior distância, alguns jovens exercitavam-se no tiro de arco. Que aprazível e ameno quadro! Os mais velhos ensinavam a uns adolescentes de cabelos encaracolados como retesar o arco e apontá-lo ao alvo; rindo, amparavam os novatos cambaleantes sob o rechaço da corda, quando a seta se desprendia dela como um sussurro. Outros pescavam com anzol. Achavam-se de bruços nas lajes dos penedos da costa, com uma das pernas balouçando no ar, enquanto mergulhavam a linha na água. Palestrando calmamente voltavam a cabeça para o vizinho, que reclinava o corpo para lançar muito longe a isca. Ainda outros estavam ocupados em transportar ao mar, arrastando, empurrando, levantando, um barco de alto bordo, provido de mastro e vergas. Crianças brincavam e exultavam no meio da rebentação. Uma jovem mulher, estendida no solo, de costas, olhava para trás, enquanto com uma das mãos apertava contra os seios o vestido floreado, e com a outra, avidamente, procurava alcançar um fruto ornado de folhas, que um moço de ancas estreitas, de pé atrás dela, brincando lhe oferecia e retirava. Havia vultos recostados nos nichos dos rochedos. Outros hesitavam à beira d'água, experimentando-lhe o frescor com a ponta do pé e segurando os ombros com os braços cruzados. Alguns casais passeavam ao longo da praia, e perto da orelha da rapariga encontrava-se a boca de quem a guiava carinhosamente. Cabras felpudas saltavam de rocha em rocha, guardadas por um jovem pastor que se quedava sobre uma elevação, com uma mão na cintura, apoiando a outra num comprido cajado; um chapeuzinho de abas dobradas para trás cobria-lhe os crespos cabelos castanhos.

“Mas isso é um encanto!”, pensou Hans Castorp com toda a sinceridade. “É realmente delicioso e cativante! Como eles são formosos, sadios, sensatos e felizes! Sim, não somente têm beleza, mas também seriedade e graça íntima. É isso o que tanto me comove e faz com que me apaixone por eles: o espírito e a mentalidade que formam a base do seu ser e lhes determinam a união e a convivência!” Referia-se àquela grande amabilidade e as considerações iguais para todos, que os filhos do Sol usavam nas suas relações recíprocas. Estava ali um respeito natural, escondido sob o sorriso que uns demonstravam aos outros, a cada passo, um respeito manifestado quase imperceptivelmente, e que todavia tinha a sua raiz numa formação comum a todos, numa idéia arraigada neles. Havia até um quê de dignidade e de rigor, mas todo diluído na alegria, e que se tornava sensível nos seus atos somente em forma de certa inefável influência espiritual, fundada numa seriedade nada sombria e numa piedade razoável, embora não faltasse a tudo isso o lado cerimonioso. Pois ali, numa pedra redonda coberta de musgo, estava sentada uma jovem mãe, que retirara de um dos ombros o vestido pardo e saciava a sede do filhinho. E todos que andavam perto dela saudavam-na de um modo especial que resumia tudo quanto ficava tão expressamente inexprimido na atitude geral dessas criaturas. Os jovens, voltando-se para a mãe, cruzavam ligeiramente os braços sobre o peito, num gesto rápido e formal, e inclinavam a cabeça com um sorriso. As moças apenas esboçavam uma genuflexão, semelhante àquela com que os devotos na igreja passam pelo altar-mor; mas, ao mesmo tempo, faziam-lhe cordiais, alegres e vivos sinais com a cabeça, e essa mistura de reverência comedida e de amizade jovial, assim como a vagarosa brandura com que a mãe, que apertava o seio com o indicador, para ajudar o pequerrucho, tirava dele os olhos e retribuía os cumprimentos com outro sorriso – tudo isso arrebatava a alma de Hans Castorp. Não se cansava de olhar e, contudo, se perguntava, angustiado, se lhe era permitido olhar, se esse ato de encarar aquela felicidade civilizada, cheia de sol, não era um crime para ele, o intruso, que se sentia lerdo com seus sapatos, e falto de nobreza e garbo.

Parecia não haver inconveniente. Um belo menino, cuja espessa cabeleira penteada para um lado avançava da testa sobre a fronte, achava-se embaixo do lugar onde Hans Castorp estava sentado. Com os braços cruzados sobre o peito, mantinha-se distante dos companheiros, sem dar mostras de tristeza ou de rancor, senão apenas de perfeita calma. E o rapaz divisou Hans Castorp; fixou nele o olhar, e seus olhos passaram entre o homem que estava à espreita e as imagens da praia, espiando o espia. De repente, porém, levantou a vista, enxergando ao longe, por cima do estranho, e de um instante para outro desapareceu do lindo rosto de linhas clássicas, ainda meio pueris, o sorriso comum a toda essa gente que tinha a sua origem numa consideração cortês e fraternal. Sem que o cenho se tivesse anuviado, assomou-lhe no semblante uma gravidade como que pétrea, inexpressiva, insondável um retraimento frio como a morte, que encheu o mal sossegado Hans Castorp de pálido terror, mesclado de um vago pressentimento da significação dessa atitude.

Também ele virou a cabeça... Poderosas colunas sem base, compostas de blocos cilíndricos e de cujas junturas brotava musgo, erguiam-se atrás dele; as colunas de um pórtico de templo, até o qual conduziam duas escadarias, com um vão entre si. Hans Castorp encontrava-se sentado num dos degraus. Com o coração opresso, levantou-se, desceu a escada, dirigindo-se para o lado, e entrou numa extensa galeria. Atravessou-a e seguiu um caminho lajeado que o conduziu até outros propileus. Passou também por estes e defronte de si viu o templo maciço, cinzento-esverdeado, corroído pela inclemência do tempo. Escadas íngremes guarneciam o fundamento. O largo frontão repousava sobre os capitéis de vigorosas e quase atarracadas colunas, que se adegalçavam para cima, e em cuja estrutura um ou outro dos tambores canelados, que se deslocara, formava uma saliência lateral. Laboriosamente, às vezes recorrendo ao apoio das mãos, por entre suspiros que lhe arrancava a crescente angústia do coração, Hans Castorp galgou os altos degraus e alcançou a floresta das colunas do peristilo. Esta era muito profunda, e o jovem passeou por ela como por entre os troncos de um bosque de faias à beira do mar descorado. Evitou penetrar-lhe no âmago e esquivou-se do centro. Mas terminou voltando-se para ele e chegou ao lugar onde se separavam as fileiras de colunas. Ali deparou com um grupo de estátuas, duas figuras de mulheres talhadas em pedra, sobre um pedestal, mãe e filha, segundo parecia; uma, sentada, mais idosa, mais digna, muito branda e divina, mas com sobrancelhas lamentosas acima dos olhos vazios, sem pupilas, trajava uma túnica flutuante, um manto pregueado e um véu que lhe cobria os cabelos ondulados de matrona; a outra, de pé, abraçada maternalmente pela primeira, com um rosto redondo de donzela, ocultava os braços e as mãos juntas na dobras do vestido.

Enquanto Hans Castorp contemplava o grupo, o seu coração, por motivos obscuros, fazia-se ainda mais pesado mais temeroso e mais opresso de presságios. Mal se animava e, contudo, se via forçado a contornar as figuras para franquear, atrás delas, a segunda colunata dupla. Aí encontrou aberta a porta brônzea do santuário, e os joelhos do pobre jovem quase que cederam diante do espetáculo que se lhe oferecia aos olhos estarrecidos. Duas mulheres grisalhas, seminuas, de cabelos desgrenhados, com seios pendentes de bruxa e mamelões do comprimento de um dedo, entregavam-se, lá dentro, no meio de chamejantes braseiros, a manipulações horrorosas. Por cima de uma bacia esquartejavam uma criancinha. Dilaceravam-na com as mãos, num furioso silêncio – Hans Castorp divisou os finos cabelos louros poluídos de sangue –, e devoravam os pedaços. Os frágeis ossinhos estalavam entre as suas presas, e o sangue pingava dos lábios selvagens. Um pavor gélido paralisou Hans Castorp. Fez menção de tapar os olhos com as mãos e não conseguiu. Quis fugir e não pôde. E elas acabavam de descobri-lo, no meio da sua atividade abominável. Agitaram os punhos ensanguentados, ralhando sem voz, mas com extrema vulgaridade, em termos obscenos, na gíria da terra de Hans Castorp. Este se sentiu mal, pior do que nunca. Desesperadamente esforçou-se para sair do lugar – e na mesma posição em que, durante essa tentativa, caíra de lado junto a uma coluna, encontrou-se na neve, ao pé do galpão, deitado sobre um braço, com a cabeça encostada e as pernas providas de esquis estendidas à sua frente. Ainda lhe ecoavam nos ouvidos aquelas vozes surdas, proferindo invectivas medonhas, e o terror glacial que se apoderara dele continuava a possuí-lo.

No entanto, não chegou a acordar, no sentido próprio da palavra. Apenas piscou os olhos, aliviado por se ver livre dessas megeras atrozes. Mas não tinha certeza e também pouco lhe importava saber se se achava estatelado junto a uma coluna de templo ou a um galpão. Em certo sentido prosseguia sonhando, se não em imagens, ao menos em pensamentos, porém de forma não menos atrevida e curiosa.

“Logo vi que isso era um sonho!” devaneou de si para si. “Um sonho encantador e pavoroso. No fundo o percebia desde o começo. Tudo foi concepção minha, o parque de árvores frondosas e a chuva deliciosa e todo o resto, as imagens lindas e monstruosas. Quase que o sabia de antemão. Mas como é possível saber uma coisa dessas e concebê-la para si mesmo, tornando-se a um tempo feliz e perplexo? Donde tirei aquele belo golfo semeado de ilhas e depois o recinto do templo, ao qual me seguiram os olhares do simpático rapaz que se mantinha isolado? Sou tentado a dizer que não extraímos os sonhos unicamente da nossa própria alma. Sonhamos anônima e coletivamente, embora de forma individual. A grande alma, da qual tu não és mais do que uma partícula, talvez sonhe às vezes através de ti, à tua maneira. Sonha com coisas que sempre lhe enchem os sonhos secretos: sua juventude, sua esperança, sua felicidade e sua paz, e também a sua ceia sangrenta. Aqui me acho ao pé da minha coluna e ainda sinto em mim os vestígios reais do meu sonho, o horror frio que experimentei ante a ceia sangrenta, e também a alegria íntima originada pelas cenas anteriores, quando vi a felicidade e os costumes piedosos da humanidade branca. Cabe-me – afirmo eu –, tenho o genuíno direito de me deitar aqui e de me entregar a esse tipo de sonhos. Fiquei sabendo muita coisa no convívio com a gente daqui, sobre a deserção e a razão. Perdi-me com Naphta e Settembrini numa montanha perigosíssima. Sei tudo a respeito do homem; conheci a sua carne; devolvi o lápis de Pribislav Hippe à enferma Clawdia. Mas quem conhece o corpo e a vida, conhece a morte. Isso, entretanto, não é tudo, mas apenas o começo, pedagogicamente falando. É preciso acrescentar a outra metade, o oposto. Pois todo o interesse pela morte e pela doença não passa de uma forma de se exprimir aquele que se tem pela vida, como demonstra a humanística Faculdade de Medicina, que sempre se dirige à vida e à sua enfermidade num latim muito cortês e não é senão um matiz desse grande e urgentíssimo assunto cujo nome pronuncio com a maior simpatia: é o filho enfermiço da vida, é o homem, com seu estado e sua posição. Não o desconheço; aprendi muito aqui em cima; desde a planície, deixei-me arrastar a tamanhas alturas que quase perdi o fôlego. Mas agora, do pé da minha coluna, abre-se-me uma vista nada má... Sonhei com a posição do homem e sua comunidade polida, sisuda e respeitosa, a cujas costas se passava, no interior do templo, a medonha ceia sangrenta. Será que os filhos do Sol se tratavam uns aos outros com tanta cortesia e amabilidade, precisamente na recordação silenciosa daquela atrocidade? Nesse caso tirariam um conclusão muito sutil e elegante. Quero, com toda a minha alma, aderir a eles e não a Naphta, nem tampouco a Settembrini. Ambos são charlatões. Um é devasso e malicioso, ao passo que o outro não deixa de tocar a corneta da razão e imagina ser capaz de desenlouquecer os próprios doidos, o que me parece absurdo. É o espírito filisteu, é mera ética, é irreligiosidade, disso tenho certeza. Mas também não desejo tomar o partido do pequeno Naphta, com sua religião que é apenas um guazzabuglio de Deus e do diabo, do bem e do mal, que só serve para fazer o indivíduo atirar-se de cabeça, a fim de mergulhar misticamente no todo. Esses dois pedagogos! Suas próprias divergências e oposições não passam de um guazzabuglio e de um confuso fragor de batalha, que não pode aturdir a quem tiver o cérebro mais ou menos livre e o coração piedoso. A questão da aristocracia! A distinção! Vida ou morte, enfermidade ou saúde, alma e natureza – há oposição entre elas? Eu pergunto se constituem problemas. Não! Não são problemas, e tampouco o é o tal problema da sua distinção. A deserção da morte está encerrada na vida; sem ela não haveria vida, e a posição do Homo Dei acha-se no meio, entre a deserção e a razão, entre a coletividade mística e o individualismo inconsistente. É o que percebo da minha coluna. Nessa sua posição cumpre-lhe viver de um modo fino e galante, e manter relações de amistoso respeito consigo próprio; pois só ele é distinto, e não as oposições. O homem é o dono das oposições, que existem por seu intermédio, e por conseguinte ele é mais nobre do que elas. Mais nobre do que elas, mais nobre do que a morte, demasiado nobre para ela, e isto constitui a liberdade do seu cérebro. Mais nobre do que a vida, demasiado nobre para ela, e isto constitui a piedade do seu coração. Eis que acabo de fazer um poema, um devaneio poético sobre o homem. Quero lembrar-me dele. Quero ser bom. Não quero conceder à morte nenhum poder sobre os meus pensamentos! Nisso é que consiste a bondade e a filantropia, e em nada mais. A morte é uma grande potência. As pessoas tiram o chapéu e avançam a passo cadenciado, nas pontas dos pés, quando ela está perto. Usa a cerimoniosa golilha do passado, e todos se vestem gravemente de preto em sua honra. Diante dela, a razão parece tola, porque é apenas virtude, ao passo que a morte é liberdade, deserção, amorfia e volúpia. A volúpia – clama o meu sonho – não o amor! A morte e o amor, não, isto não rima; eles dão um poema insípido e falso! O amor enfrenta a morte; só ele, e não a razão, é mais forte do que ela. Só ele, e não a razão, inspira pensamentos bondosos. Também a forma não consta senão de amor e de bondade, a forma e a civilização de uma coletividade sensata e amável e de um belo Estado humano, na recordação silenciosa da ceia sangrenta. Ah, sim, isto se chama sonhar com clareza e “reger” bem! Quero lembra-me disso! Quero conservar o meu coração fiel à morte e, contudo, recordar-me claramente de que a fidelidade à morte e ao passado é apenas malvadez, tenebrosa volúpia e hostilidade aos homens, quando determina os nossos pensamentos e atos de governo. Em consideração à bondade e ao amor, o homem não deve conceder à morte nenhum poder sobre os seus pensamentos. E com isso vou acordar... Pois eu segui meu sonho até o fim. Alcancei o meu objetivo. Há muito que eu procurava esta idéia, no lugar em que me apareceu Hippe, no meu compartimento de sacada, e em toda parte. A minha busca me levou às montanhas cobertas de neve. Agora a possuo. Meu sonho ma revelou com tanta nitidez, que sempre a guardarei na memória. Sim, ela me encanta e me dá calor. Meu coração bate com força e sabe por quê. Não pulsa somente por razões físicas, assim como as unhas de um cadáver continuam crescendo; pulsa de um modo humano e certo, devido ao espírito feliz. É como uma poção, esta idéia do meu sonho, melhor do que vinho do Porto ou cerveja inglesa. Circula pelas minhas veias como o amor e a vida, e me induz a arrancar-me do sono e dos devaneios, que, como não ignoro, põem em gravíssimo perigo a minha jovem vida... Levanta-te, levanta-te! Abre os olhos! Essas pernas aí na neve são os teus próprios membros! Domina-te e coloca-te de pé! Olha só, faz bom tempo!”

MANN, Thomas. A Montanha Mágica. Tradução Herbert Caro. – 2 ed. – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. (p. 668-678).