A história é que o poeta russo Siérguei Iessiênin, depois de tanto perseguir o Homem Negro, finalmente o encontrou no Hotel Inglaterra e lá, nas paredes de um quarto, escreveu com o próprio sangue dos pulsos cortados, os últimos versos. Foram dedicados ao seu companheiro Anatoli Marienhof, com quem já vivia há quatro anos. Mas antes de morrer de sangrar, conseguiu ainda pôr a corda no pescoço. Suas palavras...
Até logo, até logo, meu companheiro,
Guardo-te no meu peito e te asseguro:
O nosso afastamento passageiro
É sinal de um encontro no futuro.
Adeus, amigo, sem mãos nem palavras.
Não faças um sobrolho pensativo.
Se morrer, nesta vida, não é novo,
Tampouco há novidade em estar vivo.
Tradução Augusto de Campos
Seu amigo, Maiakovski, que também não era afeito à crítica literária do realismo socialista, atribuiu parte da angústia sofrida por Iessiênin aos caras da Massolit, aquela mesma da qual fazia parte o poeta Bezdômny. Sim, o mesmo que foi parar no hospício depois que encontrou Satanás num parque em Moscou. Não eram incomuns coisas desse tipo (digo, não encontros com Satanás), mas nos anos 1930, qualquer deslize fora das linhas do Partido, os artistas pagavam o preço. Por causa de Pôncio Pilatos, na verdade, de um romance que escreveu sobre o Procurador da Judéia, é que o Mestre também foi parar no hospício, onde lá conheceu o já aludido Bezdômny. Aliás, ambos foram pra lá por causa de Pilatos. A crítica não entendeu como um romance desses edificaria o socialismo e aí o pessoal da Massolit caiu matando.
A propósito, se por acaso encontrar um velho esquisito que diz que estava lá quando Jesus foi julgado, não duvide dele.
Mas Maiakovski... ele também foi queimado pelo brilho do sol enganador. (Curioso é que no começo desse filme, as notícias que são lidas no jornal dão conta de fenômenos estranhos em Moscou e que batem claramente com os episódios ocorridos na visita do Demônio à cidade). Maiakovski (que também se suicidou) escreveu o seguinte, em resposta ao último poema do amigo:
A SIERGUÉI IESSIÊNIN
Você partiu,
como se diz,
para o outro mundo.
Vácuo. . .
Você sobe,
entremeado às estrelas.
Nem álcool,
nem moedas.
Sóbrio.
Vôo sem fundo.
Não, lessiênin,
não posso
fazer troça, -
Na boca
uma lasca amarga
não a mofa.
Olho -
sangue nas mãos frouxas,
você sacode
o invólucro
dos ossos.
Sim,
se você tivesse
um patrono no "Posto"(1) -
ganharia
um conteúdo
bem diverso:
todo dia
uma quota
de cem versos,
longos
e lerdos,
como Dorônin(2).
Remédio?
Para mim,
despautério:
mais cedo ainda
você estaria nessa corda.
Melhor
morrer de vodca
que de tédio !
Não revelam
as razões
desse impulso
nem o nó,
nem a navalha aberta.
Pare,
basta !
Você perdeu o senso? -
Deixar
que a cal
mortal
Ihe cubra o rosto?
Você,
com todo esse talento
para o impossível;
hábil
como poucos.
Por quê?
Para quê?
Perplexidade.
- É o vinho!
- a crítica esbraveja.
Tese:
refratário à sociedade.
Corolário:
muito vinho e cerveja.
Sim,
se você trocasse
a boêmia
pela classe;
A classe agiria em você,
e lhe daria um norte.
E a classe
por acaso
mata a sede com xarope?
Ela sabe beber -
nada tem de abstêmia.
Talvez,
se houvesse tinta
no "Inglaterra"(3);
você
não cortaria
os pulsos.
Os plagiários felizes
pedem: bis!
Já todo
um pelotão
em auto-execução.
Para que
aumentar
o rol de suicidas?
Antes
aumentar
a produção de tinta!
Agora
para sempre
tua boca
está cerrada.
Difícil
e inútil
excogitar enigmas.
O povo,
o inventa-línguas,
perdeu
o canoro
contramestre de noitadas.
E levam
versos velhos
ao velório,
sucata
de extintas exéquias.
Rimas gastas
empalam
os despojos, -
é assim
que se honra
um poeta?
-Não
te ergueram ainda um monumento -
onde
o som do bronze
ou o grave granito? -
E já vão
empilhando
no jazigo
dedicatórias e ex-votos:
excremento.
Teu nome
escorrido no muco,
teus versos,
Sóbinov(4) os babuja,
voz quérula
sob bétulas murchas -
"Nem palavra, amigo,
nem so-o-luço".
Ah,
que eu saberia dar um fim
a esse
Leonid Loengrim!(5)
Saltaria
- escândalo estridente:
- Chega
de tremores de voz!
Assobios
nos ouvidos
dessa gente,
ao diabo
com suas mães e avós!
Para que toda
essa corja explodisse
inflando
os escuros
redingotes,
e Kógan(6)
atropelado
fugisse,
espetando
os transeuntes
nos bigodes.
Por enquanto
há escória
de sobra.
0 tempo é escasso -
mãos à obra.
Primeiro
é preciso
transformar a vida,
para cantá-la -
em seguida.
Os tempos estão duros
para o artista:
Mas,
dizei-me,
anêmicos e anões,
os grandes,
onde,
em que ocasião,
escolheram
uma estrada
batida?
General
da força humana
- Verbo -
marche!
Que o tempo
cuspa balas
para trás,
e o vento
no passado
só desfaça
um maço de cabelos.
Para o júbilo
o planeta
está imaturo.
É preciso
arrancar alegria
ao futuro.
Nesta vida
morrer não é difícil.
O difícil
é a vida e seu ofício.
Tradução de Haroldo de Campos
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1. Alusão à revista Na Postu (De Sentinela), órgão da RAPP (Associação Russa dos Escritores Proletários), cujos colaboradores se mostravam muito zelosos em atacar os escritores que lhes pareciam transgredir a moral proletária.2. Referências ao poeta soviético I.I. Dorônin (n. em 1900).
1. Alusão à revista Na Postu (De Sentinela), órgão da RAPP (Associação Russa dos Escritores Proletários), cujos colaboradores se mostravam muito zelosos em atacar os escritores que lhes pareciam transgredir a moral proletária.2. Referências ao poeta soviético I.I. Dorônin (n. em 1900).
3. Hotel em que Iessiênin se suicidou.
4. O famoso cantor L.V. Sóbinov (1872-1934) foi um dos participantes
da homenagem à memória de Iessiênin, que teve lugar no Teatro de Arte de Moscou, em 18 de janeiro de 1926, quando interpretou uma canção de Tchaikóvski.
da homenagem à memória de Iessiênin, que teve lugar no Teatro de Arte de Moscou, em 18 de janeiro de 1926, quando interpretou uma canção de Tchaikóvski.
5. O papel de Loengrim, da ópera deste nome, de Wagner, constituiu um dos grandes êxitos da carreira artística de Leonid Sóbinov.
6. O crítico P.S. Kógan (1872-1932), representante da crítica mais dogmática, com quem Maiakóvski manteve freqüentes polêmicas.